Por Vitor Inglez, Matheus Martins, Renato Abramowicz Santos, Aluízio Marino, Lara Giacomini, Benedito Barbosa (*)

Após a pandemia, o Supremo Tribunal Federal (STF) instaurou para realização de remoções um “regime de transição”, assim nomeado porque marcaria a transição de uma fase de proteções jurídicas contra as remoções durante a pandemia – estabelecidas pela ADPF no 828 do STF – para um momento “pós-pandemia”, em que uma série de protocolos e instâncias de regulação e negociação dos conflitos fundiários deveriam ser estabelecidos e seguidos para evitar um “tsunami” de remoções represadas durante o período pandêmico.

O que temos verificado na Região Metropolitana de São Paulo, com os mapeamentos realizados pelo Observatório de Remoções, é uma situação marcada pela retomada de remoções realizadas fora das instâncias formais de negociação, assim como pelo retrocesso de alguns (e insuficientes) protocolos e garantias mínimas anteriormente conquistadas (como, por exemplo, a realização de procedimentos prévios e obrigatórios de diagnóstico da realidade social e busca de soluções alternativas à remoção), e pela “invisibilização” (sempre presente e operante) como norma geral em torno dos dados, informações e métodos empregados para realização das remoções.

No nosso último post, a partir da análise via Lei de Acesso à Informação (LAI) dos dados da Comissão Regional de Soluções Fundiárias de São Paulo (o antigo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse – GAORP) observamos, por um lado, a inércia do poder público em mediar e solucionar conflitos fundiários que chegam até essa instância, ao mesmo tempo em que, por outro lado, os casos que conseguem alcançar esse espaço têm também represada e atrasada a efetivação de remoções.

Neste post, avançamos um pouco mais o quadro geral de análise da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), apresentando os dados do nosso mais recente mapeamento colaborativo, que incluem os casos dos processos com audiências na Comissão Regional de Soluções Fundiárias de São Paulo, divulgados no nosso último post, mas também os casos de ameaça e remoção que se deram fora dessa arena de negociação (e de disputa), revelando que existem remoções e ameaças que seguem ocorrendo fora dos protocolos e trâmites estipulados para o “regime de transição” estabelecido pelo STF.

Ao todo, entre os meses de julho e dezembro de 2023, nosso mapeamento colaborativo registrou cinquenta e cinco (55) conflitos, dentre ameaças e remoções realizadas, dos quais onze (11) casos resultaram em remoções das famílias (oito remoções totais e três parciais). Dessas, quatro remoções contaram com a mediação do antigo Gaorp. O restante não teve o mesmo desfecho: das sete que não passaram pelo antigo Gaorp, três remoções ocorreram de forma extrajudicial e violenta.

Nos parece importante destacar que três dessas remoções mapeadas no período foram de ocupações de edifícios no centro da cidade de São Paulo, organizadas e habitadas sobretudo por migrantes transnacionais. No caso de uma delas, na Liberdade, recebemos fotos e vídeos de policiais efetivando a remoção de migrantes haitianos, com relatos de que os moradores estavam sendo impedidos de retirarem seus pertences.

Referente ainda ao centro de São Paulo, cabe registrar a permanência e intensificação de conflitos na região central (a tendência de acirramento apontada no balanço anterior se verificou), com atuação conjunta entre segurança privada, polícia militar e GCMs, muitas vezes sem qualquer ordem judicial. Para dar alguns exemplos: foram removidas 40 famílias da ocupação Praça do Patriarca que, sem nenhum tipo de amparo estatal, foram acolhidas temporariamente em outra ocupação na Bela Vista. Na mesma região da Bela Vista, outras 200 famílias, segundo apuração do Brasil de Fato, foram removidas durante a noite pela polícia militar logo após ocuparem um prédio que daria origem à ocupação Quilombo Saracura, organizada pelo Movimento de Moradia do Centro (MMC), em julho de 2023, todas com o mesmo “modus operandi” – despejo violento com uso excessivo de força, mesmo quando a ocupação já se encontrava consolidada.

Essa circunstância verificada no balanço semestral anterior – a tendência de acirramento dos conflitos na região central – continua nos chamando a atenção, valendo o destaque para uma aparente intensificação, que vem se tornando recorrente, da repressão a novas ocupações, assim que essas são feitas: por parte dos batalhões de polícia militar da região, verificamos a continuidade de uma ação sistemática no sentido de coibir imediatamente o surgimento de novas ocupações, com emprego de violência nos primeiros momentos de sua formação, sem ordem judicial, sob alegação de estarem em período de flagrância. Igualmente, a ação mais incisiva e aparentemente organizada de forças privadas, articuladas pelos próprios proprietários ou possuidores, para tentar impedir a consolidação de novas ocupações.

Essas dinâmicas de presença e atuação de forças privadas em momentos de conflito e repressão não são novas, porém há a impressão – que ainda precisa ser mais bem investigada e aprofundada – de que está havendo outros e rearranjados métodos e configurações de funcionamento. Essa percepção nos remete também para algo que vem sendo observado no campo e em outros estados e regiões, que é a reação paramilitar armada e organizada, autointitulada como “invasão zero”, uma espécie de formação e prática de milícias rurais que vem se fortalecendo e espalhando pelo país. O nome é uma evidente referência – e reação – à campanha Despejo Zero que conseguiu se organizar e incidir nacionalmente mobilizando e pressionando por proteções durante a pandemia contra remoções nas cidades e no campo.

Retomando nosso mapeamento colaborativo: em relação a causas das remoções mapeadas, a maioria delas (nove) foram motivadas por conflito possessório, outras duas por obras públicas associadas à presença de risco – ambas no extremo Leste: as comunidades Rodoanel e Morumbizinho, em São Rafael; e a Favela do Caboré, no Iguatemi. Por exemplo, na Favela do Caboré (em São Matheus, Zona Leste), 83 famílias foram removidas pela prefeitura para obras de canalização de córrego, que têm sido feitas a todo vapor em São Paulo, por vezes sem oferecer solução habitacional adequada aos removidos.

Referente ao número total de pessoas removidas neste mapeamento, podemos afirmar que pelo menos 1.262 famílias foram removidas, sendo que em um dos casos (a remoção parcial no Sítio Joaninha) não temos informações sobre o número de famílias impactadas.

Já em relação aos casos de ameaças de remoção para o mesmo período (junho a dezembro de 2023), foram mapeadas quarenta e quatro (44) ameaças. Trinta e três (33) desses casos foram identificados a partir de nossa solicitação via LAI dos processos judiciais que passaram pelo antigo GAORP (atual Comissão Regional de Soluções Fundiárias de São Paulo) – mais uma vez destacamos a importância dessa fonte de dados para esses últimos mapeamentos que estamos realizando. Quanto ao total de famílias ameaçadas, mapeamos que ao menos 6.944 famílias estão ameaçadas, sendo que em oito (8) casos não possuímos informações sobre o número de pessoas ameaçadas.

Por fim, vale a pena mencionar que no clipping de notícias deste período – que sempre realizamos como uma das fontes de nosso mapeamento colaborativo – nos chamou a atenção a quantidade de notícias captadas relacionadas a eventos climáticos no país e a consequente evacuação de áreas urbanas ou remoção de famílias de suas casas em decorrência desses eventos. Os fortes temporais em novembro de 2023, por exemplo, impactaram cidades em todo território nacional, com grande ocorrência de enchentes, deslizamentos, transbordamento de rios, e a consequente perda ou comprometimento de moradias, sobretudo para as famílias que vivem em áreas mais vulneráveis, repetindo assim cenas dramáticas vividas em São Sebastião, no começo daquele mesmo ano, no litoral paulista.

Em relação a esses casos, observamos com preocupação as remoções e ameaças de remoção no litoral norte do Estado de São Paulo que, articuladas à crise climática, tem mobilizado a categoria de “risco” – associada aos processos geotécnicos e hidrológicos que a mudança climática potencializa, e às dinâmicas locais de valorização imobiliária e racismo ambiental. Cento e setenta e quatro (174) famílias moradoras do Morro do Fórum, em Ubatuba, sofreram uma remoção judicial, realizada em operação policial no dia 28 de novembro de 2023. O argumento do risco geotécnico foi utilizado, inclusive, para reverter a proteção que o “regime de transição” da ADPF nº 828 assegurava, acelerando assim a remoção. Na Vila Sahy, por sua vez, o governo estadual, às vésperas do fim do ano e do início do período de chuvas, moveu uma ação judicial – da qual recentemente desistiu – buscando a remoção de quase 900 famílias.

É nessa conjuntura difícil de ameaças, remoções e violações de direito que se junta este começo do ano com as fortes chuvas que o acompanham, gerando situações de ameaça e de novas remoções e tragédias – não anunciadas onde exatamente acontecerão, mas que costumam atingir territórios, formas de morar e realidade socioeconômicas e raciais recorrentemente semelhantes.

 

LabCidade

Mapa 1 – Territorialização dos registros de remoção e ameaça de remoção feitos pelo Observatório de Remoções entre junho e dezembro – clique aqui para conferir o mapa em tela cheia.
Fonte: Observatório de Remoções/ Elaboração: Lara Giacomini

 

 

(*) Pesquisadores do Observatório de Remoções