O Faria Lima 3500, prédio que tem a forma de trapézio invertido. Foto: Raquel Cunha/Folhapress

Por Laisa Stroher, Paula Freire Santoro, Beatriz Rufino, Isadora de Oliveira, Camila Savioli*

Em meio ao contexto de calamidade pública decorrente da disseminação do coronavírus, diversos Projetos de Lei que afetam as políticas urbanas têm sido propostos (veja esse post anterior), entre os quais, curiosamente, o PL n.  203/2020 que prevê a etapa de encerramento da OUC Faria Lima.

Foi com surpresa e indignação que os representantes do grupo de gestão da Operação Urbana Consorciada Faria Lima foram informados que o PL havia sido apresentado à Câmara sem nenhuma discussão prévia. Atualmente o PL está na Comissão de Constituição e Justiça, portanto ainda não foi votado em 1ª instância. O PL foi apresentado em 31 de março de 2020, pelo Prefeito Bruno Covas Neto, com manifestação técnica da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU).

O que motiva a necessidade e a urgência desse PL?

O Prefeito, ao encaminhar, solicita que a proposta seja tramitada em regime de urgência. Na reunião virtual do grupo de gestão, na tarde de 05 de maio, em que o PL foi brevemente exposto, não foi apresentada a razão para a urgência. As perguntas a este respeito foram apenas encaminhadas junto ao processo burocrático interno à Prefeitura, para que sejam respondidas pelos que parecem responsáveis pelo conteúdo do PL, representantes da SMDU, que não estavam presente na reunião.

A justificativa se relacionaria com alguma exigência do Plano Diretor Estratégico/PDE (Lei n° 16.050/2014)? Com o combate ao Coronavírus? Há outros interesses em jogo? No encaminhamento do executivo e no próprio PL é mencionado o artigo 141 do PDE, que fala sobre exigência de se estabelecer regras de transição do regime jurídico ao final de cada Operação. No entanto, tal artigo diz respeito às operações a serem regulamentadas, o que não é o caso da Faria Lima.

O Prefeito Covas justifica o caráter eminente do PL pela intenção de uso dos recursos remanescentes da Operação para o combate à pandemia (previsto no artigo 1°). Como discutiremos, há uma série de indefinições a este respeito, que deixam dúvidas se essa destinação se concretizará. Um estudo mais detalhado do PL também levantou outras motivações ocultas na argumentação do Prefeito.

Encerrar para ampliar?

Um dos pontos mais intrigantes do PL refere-se à proposta de expansão em 250 mil m² de construção destinados exclusivamente a usos não residenciais. Acontece que a operação ainda conta com estoque de potencial adicional construtivo (há 164.322,07 m²  disponíveis para venda, dos quais cerca de 72.000 m² podem ser consumidos com usos não-residenciais).

A argumentação técnica em que se apoia essa proposta é frágil. Baseia-se em Estudo de Impacto Ambiental (EIA) defasado, datado de 1994, que licenciava a possibilidade de  250 mil m² de construção a mais do que a primeira lei da Operação de 1995 acabou disponibilizando (2.250.000 m²). Na manifestação técnica do PL em discussão hoje, a SMDU deixa a entender que uma vez licenciados, bastaria uma autorização legislativa para a disponibilização dos 250 mil m², sem necessidade de reavaliação dos impactos à luz da realidade urbana de 2020. Mas,  a redução de estoque de potencial construtivo em 1995 não aconteceu à toa, quando o PL da primeira lei da Operação foi encaminhado à Câmara, foi apresentado um substitutivo que diminuiu a área de abrangência da Operação, removendo parte da Vila Olimpia do seu perímetro, e por consecutivo seu estoque.

Esta proposta de alteração, a inclusão de mais 250 m², modifica SIM o projeto urbanístico constante na operação vigente, ao contrário do que indica o art. 1º do PL n.  203/2020. Com a revisão da lei da Operação em 2004 (que resultou na Lei n. 13.769/2004), foram incluídos dispositivos que definem uma proporcionalidade máxima de usos residenciais e não residenciais por setor, o que certamente relaciona-se com um receio de que área tornasse apenas um centro corporativo, sem diversidade de usos e sem acréscimo de moradias. O plano urbanístico é alterado tanto ao aumentar o potencial como ao não redistribuí-lo conforme as proporções definidas pela lei de 2004.

O tema do encerramento da Operação Faria Lima e do acréscimo de metragem quadrada já vinha sendo discutido no ano passado pelos vereadores, um dia antes do último leilão realizado. Este leilão, de 05 de dezembro de 2020, captou R$ 1,64 bilhão. Na ocasião foram leiloados 93 mil CEPAC (Certificados de Potencial Adicional de Construção) (já tratamos do significado dos CEPACs aqui) e o valor do título sofreu um aumento de preço de 170%, devido a grande disputa pela compra dos certificados. Com a arrecadação deste leilão estima-se que foi superado o montante de recursos necessário para finalização do conjunto de obras previstas.

Por quê um PL que se destina a regular a finalização da Operação, que já possui recursos suficientes para terminar as suas obras, proporia um aumento de potencial? Ainda mais considerando que há estoque para ser comercializado? Se uma Operação tem por objetivo a transformação urbanística estrutural de uma área (como define o Estatuto da Cidade), a Operação Faria Lima, não alcançará seus objetivos ao executar todo o seu programa de investimentos? Estas indagações se fazem no sentido de avaliar se as ações propostas estão indo sentido ao encerramento ou à abertura de um novo ciclo da operação, o que fugiria ao propósito primeiro.

Como e quando ocorrerá o encerramento da OUC Faria Lima? 

Com já três décadas que estão vigentes, desde os anos 1990, nenhuma operação urbana foi encerrada. A trajetória das Operações tem sido caracterizada por um moto contínuo de expansão de perímetro e/ou escopo de obras e/ou de estoques de potencial construtivo. Tal cenário deixava dúvidas se as Operações se encerrariam e como, o PL igualmente deixa incertezas quanto a isso.

O PL mantém as mesmas regras urbanísticas vigentes durante o período de transição da Operação, até que ela termine; e define prazos longos e indeterminados para discutir as novas regras. O marco temporal para o “começo do fim” da operação é a realização do último leilão. Até 5 anos depois dele, os parâmetros urbanísticos continuarão os mesmos em vigor, mas será proibida a compra de direitos de construir mediante outorga onerosa ou transferência do direito de construir; e em até 5 anos do leilão, deverão ser apresentados estudos urbanísticos pela Prefeitura que verificará a necessidade de alteração dos parâmetros de uso e ocupação do solo para a região, estudos estes que devem ter início quando da integral vinculação dos CEPACs comercializados pelo poder público, o que é difícil prever quando acontecerá, há 103.492 CEPACs não vinculados atualmente.

Este período de transição pode durar muito tempo, não está claro o momento em que deverão ser revistos os parâmetros urbanísticos, nem há um compromisso de fato, de serem revistos. O último leilão pode ser aquele em que se esgote todo o CEPAC, mas pode ser que não se esgote até o encerramento das obras. Nesse último caso, por exemplo, levará pelo menos mais uma década – ou 15, ou 20 anos, tendo em vista o grande escopo de obras a ser terminado – para que se iniciem os estudos que irão averiguar a necessidade de alteração do regramento urbanístico?

O PL define que a OUC só será considerada encerrada quando for finalizado o seu programa de obras, que está previsto em sua lei. Isso porque a venda dos CEPACs está associada às intervenções previstas, ou como dizem os operadores do mercado, o título está “lastreado” nelas. Mas ainda faltam várias obras que estão em andamento ou ainda serão iniciadas (veja a lista abaixo).

Mina de ouro? Recursos para quê?

Como mencionado, essa Operação já arrecadou recursos além do necessário para terminar a lista anterior de obras com o último leilão. Se a continuidade da Operação já era questionável antes desse leilão, pelo efeito excludente decorrente do círculo vicioso de concentração de recursos nessa área extremamente privilegiada da cidade, seria um contrassenso (em termos de reforço das desigualdades socioespaciais) que o recurso remanescente também fosse investido na Operação.

O PL prevê que o recurso que sobrar da operação seja transferido ao Fundo de Desenvolvimento Urbano/Fundurb (art. 3o), e, ao invés de obedecer às destinações previstas para este fundo, determina que sua aplicação deverá ser empregada “no combate ao coronavírus, bem como na implementação de ações sociais, habitacionais e de infraestrutura em áreas de vulnerabilidade” (art. 1o, § 2°). Considerando que o prazo para o encerramento parece bem distante ou indeterminado, certamente não ocorrerá em tempo suficiente para servir ao combate da pandemia em curso. Aliás, esperamos que até lá já tenhamos enfrentado a pandemia!

Ainda que sejam justas e desejáveis as destinações de recursos para intervenções em áreas vulneráveis, o PL não prevê claramente nem como e nem quando este repasse ocorreria. Além disso, a transferência para o Fundurb está condicionada à sobra de recursos ao final da Operação. Muito embora estima-se que isso deverá ocorrer, não é possível afirmar com certeza, seja em virtude da possibilidade de elevação dos custos das obras previstas**, seja por não prever dispositivos que impeçam a inclusão futura de outras obras em seu rol de intervenções.  Assim, a proposta deixa em aberto o direcionamento dos valores excedentes ao Fundurb e as ações em locais de vulnerabilidade social.

Nota-se assim que, o que precisa estar definido para o encerramento está postergado dentro de um tempo indeterminado: tanto os estudos para as regras urbanísticas que incidirão quando a operação estiver finalizada, quando as obras previstas forem finalizadas, bem como a possibilidade de uso dos recursos residuais para a pandemia.

Itaim Bibi foi o bairro onde maior índice de construções em 25 anos. Zanone Fraissat/Folhapress

Lei de combate à Pandemia: blindagem das Operações?

Com argumento de atuar no combate à pandemia, a Prefeitura já tinha aprovado uma lei que autoriza a transferência dos recursos de 11 fundos públicos municipais para a o Tesouro Municipal, desvinculando os fundos das suas obrigações e “carimbos” para determinadas políticas (veja a lista dos fundos no art. 8o da Lei 17.335/2020).

A mesma lei prevê que os recursos disponíveis nas contas das Operações Urbanas possam ser destinados para o Tesouro, desde que as fontes provenientes dos demais fundos não sejam suficientes para fazer frente às destinações previstas na Lei, e que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) autorize, formal e previamente, o desembolso (art. 14). O artigo ainda prevê a necessidade de uma programação para restituição integral dos valores, atualizados, à respectiva Operação Urbana. Ou seja, as Operações possuem status privilegiado nessa lei, como o último dos fundos a ser mobilizado e condicionado à aprovação da CVM – que emerge como a verdadeira instância de participação (ou de decisão)  das Operações.

O decreto regulamentador da lei que autoriza os recursos disponíveis de fundos para os cofres da Prefeitura diz que os recursos que seriam repassados correspondem ao superávit financeiro de 2019 e as receitas totais arrecadadas no exercício de 2020. Segundo falas de técnicos da SP Urbanismo em reunião da Operação, entende-se por “superávit financeiro” como sendo a totalidade dos recursos em caixa, descontados os recursos já empenhados***.

Embora pareça difícil que esta regulamentação atinja de fato as Operações, na hipótese de que isso aconteça, surge uma nova questão: sem os recursos, a operação poderá ser encerrada? A Operação Faria Lima ficaria com o seu prazo de encerramento ainda mais indeterminado, vide que não se sabe quando obteria novamente o dinheiro necessário para terminar as suas obras. A que serviria o PL n.  203/2020 nesse cenário? E por que a necessidade desse PL destinar recursos remanescentes ao enfrentamento da Covid se já há lei aprovada que discute possibilidades do uso de recursos atualmente em caixa da Operação para este fim?

Se tudo parece indefinido e ambíguo, o que está definido no PL é a expansão do estoque do potencial adicional construtivo em 250 mil m² destinados exclusivamente a usos não residenciais, o que pode levar à conclusão de que é o leilão de um novo estoque de potencial construtivo que está em jogo, e que (de fato) justificaria a pressa de se aprovar esse PL em meio a pandemia. Não se sustentam, portanto, os argumentos para aprovação desse PL em caráter de urgência. Sem garantia de que serão efetivadas nem quando, as propostas de contrapartidas sociais do PL (destinação de recursos remanescentes ao Fundurb e ao combate à Covid) configuram manobras para legitimar a expansão de potencial construtivo. A convergência de recursos e esforços para enfrentar a pandemia é necessária e verdadeiramente urgente, mas estes argumentos não podem ser mobilizados de maneira oportunista para aprovação de leis a serviço de outros fins.

* Laisa Stroher é pesquisadora do LePur da UFABC, doutora pela mesma universidade em planejamento e gestão do território, representante titular no Grupo Gestor da Operação Urbana Consorciada Água Branca na vaga destinada a entidades profissionais, acadêmicas ou de pesquisa com atuação em questões urbanas e ambientais, pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB (departamento de São Paulo).
Paula Freire Santoro é professora doutora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, coordenadora do LabCidade, representante suplente no Grupo Gestor da Operação Urbana Consorciada Água Branca na vaga destinada a entidades profissionais, acadêmicas ou de pesquisa com atuação em questões urbanas e ambientais, pela FAU USP.
Beatriz Rufino é professora doutora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, integrante do LabHab, coordenadora do Grupo de Estudos Espaço, Produção e Política Urbana e representante titular no Grupo Gestor da Operação Urbana Consorciada Faria Lima pela FAU USP.
Isadora Borges de Oliveira é mestranda na FAU USP, pesquisadora do LabHab, representante suplente no Grupo Gestor da Operação Urbana Consorciada Faria Lima pelo IAB (departamento de São Paulo).
Camila Savioli é especialista em Planejamento e Gestão de Cidades pelo PECE/ Poli USP (USPCidades), representante titular no Grupo Gestor da Operação Urbana Consorciada Faria Lima pelo IAB (departamento de São Paulo).
** Destaca-se que além de intervenções ainda não contratadas, cujo orçamento é estimado com base em algum estudo existente, algumas obras previstas no âmbito da Operação encontram-se em estágio preliminar, visto que estão condicionadas à finalização do projeto para conclusão da orçamentação, não havendo portanto definições completas quanto ao escopo das mesmas, o que pode vir a ampliar consideravelmente seus custos. Podemos citar como exemplo a intervenção de melhorias habitacionais no Jardim Panorama, no qual o cadastramento das famílias para a elaboração do projeto de regularização fundiária e urbanística ainda não foi realizado, o projeto de melhoramentos da Avenida Santo Amaro, ainda em elaboração, e o próprio projeto do Boulevard JK, para o qual está prevista a realização de um estudo de viabilidade por meio de licitação, que deve apresentar uma proposta de atualização do projeto, ainda a ser debatida e deliberada. Neste último, aponta-se ainda que adequações viárias e transposições em desnível também estão em debate, e podem vir a elevar consideravelmente o custo previsto das obras.
*** Observando o balanço financeiro de março de 2020 da Operação Faria Lima  – quando se dá o prazo máximo para o encerramento dos gastos empenhados em 2019 –, o saldo é de cerca de R$ 2,2 bilhões. Descontados os cerca de R$ 1,3 bilhão a executar, portanto já empenhados, resulta o valor de R$ 900 milhões que podem vir a ser transferidos da operação para o caixa da Prefeitura, referente ao superávit de 2019.  Caso o  PL 203/2020 seja aprovado, serão disponibilizados 250 mil m² a mais para compor o estoque da Operação Urbana, viabilizando um novo leilão que, se seguir a mesma lógica do último leilão, pode vir a arrecadar mais alguns bilhões de reais que poderão ser transferidos na íntegra para o caixa da Prefeitura.