Complexo Mauá, Campos Elísios, construído via PPP de habitação do Gov. do Estado de SP. Fonte: Sec. Habitação SP

Por Isadora Guerreiro, Raquel Rolnik e Paula Santoro*

A Prefeitura de São Paulo lançou duas Consultas Públicas chamando parceiros privados para participar da locação social na área central do município, sem estabelecer relação com as necessidades habitacionais da cidade. As Audiências Públicas serão nos dias 23 e 25 de novembro. Conheça nossa análise das propostas em dois textos: sobre o Chamamento Público para Locação Social, e sobre a PPP de Locação Social (este). 

As propostas foram feitas pela Secretaria Executiva de Desestatização e Parcerias (SEDP). Em vez de repensar o lugar da locação social dentro de uma política habitacional com atendimento prioritário às faixas de renda que mais estão sofrendo com a crise, as propostas, viabilizam a mobilização de um estoque de imóveis de aluguel recém lançado nos bairros centrais, garantindo seu mercado e direcionando o instrumento de locação para rendas mais altas sem responder o que fazer para atender às faixas prioritárias – que continuam sendo expulsas mesmo durante a pandemia.

O Programa de Locação Social, em andamento em São Paulo desde 2003, oferece moradia de aluguel em parque de habitação público, para famílias com renda de até 3 salários mínimos, que pagam um valor mensal de acordo com sua faixa de renda e composição familiar (variando de 10% a 15% de seus rendimentos), além de uma pequena taxa de condomínio. Foram entregues até hoje seis empreendimentos desta modalidade, totalizando 903 unidades habitacionais. De acordo com estudo realizado pela Secretaria Municipal de Habitação (divulgado em RIBEIRO et.al., 2019), a Locação Social implica em subsídios mensais da ordem de R$ 670 por família (montante de cerca de R$ 14 milhões por ano), considerando que há uma taxa de inadimplência média de 53%, além de outros problemas de gestão dos empreendimentos que, sendo enfrentados, poderiam reduzir ainda mais este valor. Uma das principais críticas ao programa é a de que estes problemas de gestão o impedem de ganhar escala, avançando lentamente.

As dificuldade de gestão e a necessidade de aumento de escala parecem ser a justificativa – legítima – para o lançamento de uma nova modalidade de locação social, agora gerida pela iniciativa privada: uma Parceria Público-Privada (PPP) de locação social (CP006/SGM-SEDP/2021), em três novos empreendimentos na região central totalizando 1.750 unidades, o que praticamente triplicará a oferta atual desta modalidade. Os empreendimentos serão construídos em três terrenos de propriedade municipal: Rua Porto Seguro nº 281, Bom Retiro (1.056 unidades de 1 dormitório ou quitinete, e 330 de 2 dormitórios); Rua Rodrigo Silva, nº 98, Sé (154 unidades de 1 dormitório ou quitinete, e 49 de 2 dormitórios); e Rua Carnot, nº 900, Pari (119 unidades de 1 dormitório ou quitinete, e 42 de 2 dormitórios). Os apartamentos de 1 dormitório ou quitinetes terão 28 m² e os de 2 dormitórios, 42 m².

Este ganho importante de escala, no entanto, precisa ser problematizado em função da novidade do público atendido, ampliado para HIS 2 – que corresponde à renda familiar mensal de 3 a 6 salários mínimos, faixa que não é prioritária considerando o montante de recursos públicos disponibilizados nesta PPP. A proposta define 35 anos de concessão (terminado o período, os empreendimentos permanecem de propriedade e gestão pública) e incluem: construção dos empreendimentos (previsão de 4 anos); gestão operacional, predial e de carteira; trabalho social pré e pós-ocupação; e provisão e manutenção da linha branca (fogão, geladeira e chuveiro). A seleção de beneficiários fica a cargo da COHAB (embora os critérios não estejam definidos na Consulta Pública), mas sua triagem é por conta da concessionária.

A modelagem financeira da PPP envolve gastos públicos de R$ 993,3 milhões ao longo dos 35 anos, com contraprestação máxima de R$ 2,67 milhões mensais. A previsão da prefeitura (constante no Anexo IV do Edital – Plano de Negócios de Referência) é a de que, do montante total, R$ 182 milhões sejam gastos com a construção, enquanto outros R$ 315,4 milhões seriam destinados aos serviços de moradia (gestão, trabalho social e linha branca) ao longo dos 35 anos – totalizando R$ 497 milhões de custos. Os ganhos da concessionária, subtraindo este valor do montante total, serão de R$ 496 milhões (média de cerca de R$ 14 milhões por ano, de acordo com o Anexo IV do Edital), um ganho de 100% do investimento, que pode ainda ser acrescido dos recursos provenientes da exploração comercial das fachadas ativas dos empreendimentos – além de ganhos financeiros, como veremos abaixo.

Do lado da prefeitura, as contraprestações mensais serão pagas com o aluguel captado dos três empreendimentos, garantindo o pagamento para a concessionária através de uma conta segregada. Não está claro se os aluguéis serão subsidiados, e quanto. No entanto, para honrar as contraprestações mensais apenas com o aluguel captado, estes teriam que ser, em média, de R$ 1.525,80** – um valor que para ser pago exigiria que as famílias residentes tivessem um renda de pelo menos 5 salários mínimos familiares mensais. Ou seja, não está claro ainda qual é o gasto efetivo para os cofres municipais para esta operação, dado que, para atender uma faixa de renda mais baixa que esta, a prefeitura terá que entrar com subsídios para bancar a remuneração e lucros da concessionária. Segundo a documentação apresentada, estes subsídios devem ser cobertos por dotação orçamentária da SEHAB.

A concessionária deve ser uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) formada exclusivamente para esta PPP, estruturada sob a forma de sociedade por ações (com capital social de R$ 36 milhões), “formada por sociedades, fundos e pessoas jurídicas, brasileiras ou estrangeiras, incluídos instituições financeiras e entidades de previdência complementar e fundos de investimento, isoladamente ou em consórcio”. Ela poderá “emitir obrigações, debêntures ou títulos financeiros similares que representam obrigações de sua responsabilidade, em favor de terceiros”. Ou seja, a concessionária pode terceirizar os serviços de seu escopo (após a implantação dos empreendimentos), utilizando seu contrato com a

prefeitura como forma de captação de recursos financeiros – na forma de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs), por exemplo.

Desta maneira, vemos que o que aparece inicialmente como enfrentamento de uma dificuldade relativamente pouco onerosa e passível de melhoramentos – os desafios da gestão do parque público atual de locação social – se transforma na justificativa para transferir muito mais recursos públicos para a iniciativa privada. A situação é ainda mais grave quando não está claro, novamente, os critérios de seleção dos beneficiários – embora a equação financeira seja detalhada nos mínimos detalhes. O que temos visto na PPP Casa Paulista, já em implantação da cidade, é uma seleção de beneficiários que prioriza faixas de renda mais altas – que conseguem garantir a operação financeira –, em detrimento da população que têm sido removida da região (inclusive dos próprios terrenos onde foram construídos empreendimentos da PPP) sem solução definitiva de moradia. Agora é a vez da locação social instrumentalizar este modelo, utilizando mecanismos financeirizados que permitem explorar fluxos de receitas oriundos da transformação da moradia em serviço, realizado no tempo – uma forma temporária e precária de direito.

Outra questão relevante deste modelo, quando se trata da locação social, é o trabalho social pós-ocupação que deverá ser realizado pela iniciativa privada (de acordo com o escopo da concessionária). Preocupa também esta abordagem privatista de assistência social, em particular na relação com a população mais vulnerável, em situação de rua. Inclusive, o maior dos empreendimentos desta PPP será realizado onde hoje se encontra ativo o SIAT (Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica) II Armênia ***, parte do Programa Redenção, cujo público-alvo é de “indivíduos que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas e estejam em situação de vulnerabilidade ou risco social”. Cabe esclarecimento por parte da prefeitura se este público faz parte dos beneficiários da PPP de locação social e que tipo de assistência social terão.

Cabe também questionar por que a opção foi dirigir quase um bilhão de reais a sociedades de propósitos financeiros, ao mesmo tempo em que há uma total ausência de proposta aos movimentos de moradia organizados na região central da cidade que há décadas demandam  recursos públicos para a requalificação e apoio à gestão dos edifícios ocupados. Os movimentos de moradia já executam há mais de 20 anos trabalho de acolhida e de assistência social nestes edifícios e estão requerendo recursos públicos para a restauração e segurança dos prédios, sem resposta da prefeitura, que apenas exige investimentos sem nenhum apoio efetivo. Cai por terra, com tal proposta de PPP, a justificativa de falta de recursos por parte da prefeitura.

Mais uma vez é necessário se perguntar – e a prefeitura esclarecer na audiência pública que ocorrerá em 23 de novembro – qual é a região central que está sendo redesenhada por esta e outras iniciativas atuais do município. Parece que a reestruturação da região pretende se livrar de vez das camadas populares e seus modos de vida, as substituindo por faixas de renda mais altas, cujo perfil de consumo altera as formas de morar e viver o cotidiano do centro da cidade, que também são parte do nosso patrimônio.

* Isadora é professora da FAU-USP e pesquisadora no LabCidade; Raquel e Paula são professoras da FAU-USP e coordenadoras do LabCidade.

** Valor correspondente à divisão da contraprestação mensal (R$ 2.670.149,00) por 1.750 unidades.

*** Os SIATII são unidades de “Acolhimento de curto prazo e de baixa exigência em relação ao usuário; ações de redução de danos em saúde e assistência social; tratamento e acompanhamento em saúde e elaboração do Projeto Terapêutico Singular; trabalho social visando a autonomia do usuário. O serviço oferece alimentação, orientação quanto à higiene pessoal e atividades socioeducativas, como artesanato, oficina de leitura, ioga e exercício físico. Os equipamentos possuem área de lazer e socialização, banheiros, refeitório e bagageiro”.