Paula Freire Santoro*
Flavia Taliberti Peretto**
Silvio Oksman***

Um dos pontos do debate da proposta do Projeto de Intervenção Urbana – PIU Setor Central, em São Paulo, considerada como processo de revisão da Operação Urbana Centro, consiste na discussão sobre um dos instrumentos urbanísticos utilizados, a Transferência de Potencial Construtivo (TPC).

Este instrumento é um pouco diferente da Transferência do Direito de Construir (TDC), utilizado pelo poder público para autorizar aos proprietários de imóveis tombados e de parques, vender para outro terreno o direito de construir de sua propriedade, total ou parcialmente. Ou seja, atualmente na cidade de São Paulo estão vigentes duas formas distintas de transferência, uma para a Operação Urbana Centro, a TPC, e outra para o restante da cidade, a TDC, prevista pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal n⁰ 10.257/2001) e estabelecido no Plano Diretor Estratégico, aprovado em 2014 (PDE – Lei Municipal n⁰ 16.050/2014).

No caso da TDC, o poder público permite ao proprietário de um imóvel urbano transferir o seu direito básico de construir – aquele definido pelo coeficiente de aproveitamento básico do imóvel – quando este não puder ser exercido, no todo ou em parte no seu imóvel, em virtude de alguma limitação imposta pelo interesse público. Em São Paulo, o PDE permitiu a transferência de toda a metragem até o coeficiente básico, independente do que esteja construído. Nele também foi definido o coeficiente de aproveitamento básico igual a uma vez a área do terreno para toda a área urbana da cidade, isto porque se considera que todo proprietário pode construir uma casa ou um lugar de trabalho sem ter que pagar pelos direitos de construir até uma vez a área do lote. Quando ultrapassa esta metragem, por exemplo para construir um prédio, é preciso comprar os direitos de construir que superem 1 vez a área do terreno. No caso da TDC a negociação, até o limite do coeficiente básico é feita entre privados. Acima, os direitos de construir são considerados públicos. Para saber mais sobre isso, veja o artigo de Sonia Rabello. O recurso obtido, ao transferir o direito de construir é entendido como uma compensação aos proprietários pelas limitações impostas pelo tombamento ao seu imóvel, com o objetivo de incentivar a conservação de imóveis tombados. A TDC é, portanto, uma negociação de direitos de construir entre privados, diferentemente da Outorga Onerosa do Direito de Construir, onde os direitos de construir são públicos e “outorgados” pelo poder público aos empreendedores que querem utilizá-los em suas construções.

A Transferência de Potencial Construtivo, como utilizada hoje na Operação Urbana Centro, difere-se da TDC, pois ela permite ao proprietário do imóvel tombado transferir até a metragem máxima estabelecida pelo coeficiente de aproveitamento da zona em que está inserido. Aí reside uma das críticas mais recorrentes ao instrumento: permite que o proprietário venha transferir o que não é dele, pois os direitos de construir acima do coeficiente de aproveitamento básico são públicos. O próprio Plano Diretor define que “o potencial construtivo adicional é bem jurídico dominical de titularidade da Prefeitura, com funções urbanísticas e socioambientais” (art. 116). É, portanto, uma distorção do instrumento da Transferência do Direito de Construir, ou talvez até, um outro instrumento.

Isto se deu, pois, a lei da Operação Urbana Centro é antiga, de 1997, e assim como outras experiências anteriores à aprovação do Estatuto da Cidade, merece ser revista. A regulação e a utilização da Transferência com objetivo de conservação de imóveis preservados ainda é recente no país, influenciada pelo Estatuto, e experienciada por um número de municípios que dá para contar com as mãos, como mostram Isabela Bacellar e outras autoras, e com diversos objetivos e formas de operacionalização.

A Transferência “virou mercado”

A pergunta que se coloca é se efetivamente a Transferência, da forma como está regulamentada, é parte de uma política pública para preservação do patrimônio ou se virou um mercado de comercialização de direitos de construir nas mãos dos atores privados do mercado.

O emprego da TDC para imóveis protegidos estava previsto no município de São Paulo desde 1984, porém a sua utilização se intensificou apenas após a aprovação do PDE de 2014, momento em que foram revistos os valores dos terrenos do município, encarecendo a Outorga Onerosa do Direito de Construir.

Em 2014, também, a Transferência passou a ser condicionada à anuência do órgão municipal de preservação Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP/DPH). Para que um proprietário de um imóvel tombado possa transferir os direitos de construir conforme o definido pelo PDE (2014) e pela Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS – Lei Municipal n⁰ 16.402/2016), ele precisa de um documento, emitido pela Secretaria da Cultura, que ateste o seu bom estado de conservação. No caso de imóveis mal conservados, é necessário que seja firmado um termo de compromisso, também com a Secretaria da Cultura, vinculando a utilização dos recursos obtidos através da TDC ao desenvolvimento de projetos e execução de ações de conservação e restauro.

Gráfico 1. Emissão de Declaração e Certidão nos diferentes períodos da legislação municipal de São Paulo. Fonte: Peretto, 2018.

Consideramos que, a partir daí, a Transferência “virou mercado”. Assistiu-se a uma preparação para a criação deste mercado de direitos entre privados, que pode ser percebida pela ampliação nos pedidos dos proprietários de imóveis tombados da emissão da Declaração de Potencial Construtivo Passível de Transferência, documento que possibilita a transferência do direito de construir para o outro imóvel. Foram abertas empresas especializadas na operação deste instrumento e surgiram equipes dentro das construtoras e incorporadoras, com profissionais não necessariamente preocupados com a questão da conservação do patrimônio cultural paulistano, mas sim, que buscavam comprar direitos via transferência, mais baratos que os obtidos através da Outorga Onerosa, comprada do poder público. Operadores da área jurídica, economistas e arquitetos, se envolveram na elaboração de planos de conservação a serem apresentados ao CONPRESP, para a obtenção da anuência do órgão, necessária para viabilizar as transferências. Ocorreram pedidos de tombamento de imóveis já conservados, estimulados pela possibilidade de uso do instrumento em situações nas quais o recurso pode ir quase que integralmente para o bolso do proprietário que transfere, uma vez que os custos serão apenas para manutenção dos imóveis, não para seu restauro.

Nesse contexto de expressivo incremento da aquisição de direitos de construir via TDC, buscou-se estabelecer um equilíbrio entre a aquisição de direitos de construir via TDC e via Outorga Onerosa. O Poder Público estabeleceu na Lei de Zoneamento de 2016 que a compra de potencial construtivo via TDC ficaria limitada à 5% do valor arrecadado pelo Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) nos 12 meses anteriores ao mês do requerimento da transferência (LPUOS, art. 24, § 5º).

Embora ainda seja cedo para avaliar os resultados da utilização do instrumento – ainda há poucas transferências, muitos proprietários ainda têm prazo para aprovar plano junto ao Conpresp – sua regulamentação e utilização já permitem apontar algumas análises e diversos desafios de sua utilização para a conservação de imóveis tombados.

A maioria dos imóveis que já utilizaram a Transferência estão fora da Operação Urbana Centro
Dados de março de 2018 mostram que 35 imóveis tombados em São Paulo já se utilizaram da Transferência, desde 1984, totalizando 70 transferências – um mesmo imóvel pode dividir a venda em várias, para diversos compradores. Como a anuência do órgão municipal de preservação só começou a ser exigida a partir do PDE de 2014, apenas 21 transferências tiveram que apresentar a documentação emitida pela Secretaria Municipal da Cultura, envolvendo apenas 12 imóveis tombados.

A maior parte das transferências vem das áreas centrais (mas não da OU Centro) e é utilizada em bairros do Sudoeste paulistano, onde o mercado imobiliário atua há mais tempo (ver Figura 1). Mas já se nota uma expansão para além da área central.

Figura 1. Mapa com imóveis cedentes e receptores de TDC – 1988 a março 2018.
Fonte: Peretto, 2018, a partir de dados da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL), publicados no Diário Oficial da Cidade de São Paulo (DOC-SP). Elaboração: Pedro Mendonça, 2018.

Como vem sendo aplicada na OU Centro, ao permitir transferir um volume grande de direitos de construir, que são públicos
O volume de metragem quadrada passível de transferência na OU Centro é muito maior que no restante da cidade, pois permite um coeficiente de aproveitamento máximo de 12 vezes a área do terreno, enquanto na maior parte da cidade este varia entre 2 e 4 vezes a área do terreno. Nesse sentido, a TPC autoriza o privado a vender direitos de construir até 11 vezes mais do que o coeficiente básico, configurando um subsídio considerável, pois os direitos que são públicos, em tese, deveriam ser aplicados em objetivos e planos de interesse público, como a preservação e conservação. Fica evidente, a necessidade de revisar o instrumento.

Embora a TPC na OU Centro possa transferir maior metragem quadrada que em outras partes da cidade, diferente do que se imaginava, até hoje foram feitas apenas sete transferências a partir de imóveis tombados dentro desta Operação Urbana: dados de setembro de 2018 mostram que seis transferências foram a partir do Mosteiro de São Bento e uma do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Existem mais dois imóveis tombados, entre eles a Igreja de Santo Antônio na Praça do Patriarca, que também estão pleiteando transferir potencial construtivo, porém os processos ainda estão em análise na Prefeitura. Essas transferências estão possibilitando (alguns empreendimentos ainda nem começaram a construir) a construção de 25.050,96 m2 fora do perímetro da OU Centro. Esta metragem corresponde a cerca de 8% da metragem total construída obtida por meio de transferências até agora, e a cerca de 5,42% da média do que é comprado via Outorga Onerosa do Direito de Construir anualmente.

Por sua vez, muitos foram os proprietários que pediram a Declaração, documento que possibilita a transferência do potencial construtivo na Operação, o que sugere que estejam negociando ou esperando para vendê-los para terceiros. Atualmente 66 imóveis possuem Declaração, o que possibilitaria a transferência de mais de 1,2 milhões de metros quadrados, isso sem contar o que já foi transferido pelo Mosteiro de São Bento e pelo CCBB. Considerando que a metragem média anual mobilizada pela Outorga Onerosa em São Paulo é de cerca de 462 mil m2/ano, este volume corresponde a metragem quadrada de quase 3 anos de Outorga, o que só seria possível se não tivesse a limitação do valor a ser transferido em 5% da arrecadação do FUNDURB, como explicado anteriormente.

Percebe-se que há uma reserva de metros quadrados a serem comercializados. Seria essa uma forma de especular com direitos de construir?

Proprietários dentro da OU Centro podem transferir para fora dela
A lei da operação permite a transferência do potencial construtivo para fora da área delimitada pela Operação, ampliando a competição do instrumento com a Outorga Onerosa, e com a própria Transferência do Direito de Construir (cujo cálculo está vinculado ao coeficiente básico), ambas aplicadas fora da Operação. A questão que se coloca é: é justo ter regras diferentes para proprietários em regiões diferentes? Em se tratando de uma operação urbana, que tem como objetivo estimular e alcançar transformações urbanísticas na área onde ela se aplica, que justamente tem muitos imóveis tombados, talvez tenha sentido incentivar mais que no resto da cidade. Não é tão simples de avaliar o fato que regras diversas de transferência – TPC na OU Centro e a TDC na cidade – possam estar competindo fora da área da Operação, o que levanta a dúvida se não seria o caso de restringir a aplicação “diferenciada” da Transferência apenas à área da Operação Urbana Centro.

A concepção inicial que motivou a transferência para fora da Operação parece ter relação com o fato de que o mercado imobiliário não estava atuando dentro de seu perímetro e, portanto, se não tivesse esta possibilidade, acreditavam que não solicitariam transferências. Mas sabe-se que este cenário mudou. Recentes textos publicados aqui mostraram que o centro está com uma dinâmica imobiliária crescente: “os distritos centrais que integram a Subprefeitura Sé – como República e Santa Cecília –, receberam 10% do total de unidades residenciais verticais lançadas nos últimos dez anos (2007-2017) no município. A Sé também está na 7ª posição considerando as Subprefeituras com maior metragem quadrada lançada no período, ficando logo atrás de áreas tradicionalmente ocupadas pelo mercado imobiliário, como Vila Mariana, Pinheiros e Lapa”.

A OU Centro permite descontos que reduzem os valores comercializados, sem critérios
A regulamentação da Transferência do Direito de Construir aprovada nos anos seguintes do Plano Diretor Estratégico de 2014 descreve como será a operacionalização do instrumento e o passo a passo para que os proprietários dos imóveis cedentes e receptores utilizem o instrumento. Corresponde a um conjunto de regramentos que procuram garantir que os recursos obtidos através da TDC sejam aplicados em ações de preservação do patrimônio cultural, tais como a contratação de projetos de intervenção, a execução de obras de restauro e mesmo o investimento para a manutenção permanente do imóvel, tornando o instrumento da TDC um suposto importante aliado na tutela dos edifícios de valor histórico e cultural da cidade.

Alguns destes procedimentos são seguidos nas transferências da OU Centro, mas ela possui particularidades. Um amplo debate puxado pelo mercado imobiliário culminou na aprovação de um fator de descontos para o valor da metragem transferível – que varia entre nenhum, 70% ou 100% de desconto. No entanto, não foram aprovados critérios claros para que a Comissão da Operação aprove qual seria o fator de desconto aprovado. Este desconto é relevante para o cálculo do valor máximo comercializado via Transferência, estabelecido para fixar um valor de referência à contrapartida financeira a ser paga pela aquisição de direitos de construir e também para servir como parâmetro para atendimento do limite de 5% da arrecadação do FUNDURB, estabelecido pela LPUOS. Portanto, quanto maior o desconto, mais transferências podem ocorrer, indo menos recursos para o FUNDURB.

Este valor também seria importante se o poder público continuasse a intermediar mais diretamente as negociações entre privados, o que atualmente não acontece. Hoje o valor do metro quadrado final a ser negociado pode ser decidido entre as partes. Mas porque então aplicar um desconto se o valor será negociado entre as partes? O desconto estabelece um valor para a metragem quadrada a ser recebida, o qual é formalmente anotado e utilizado para a conta do valor total a ser pago pela transferência, com o objetivo de verificar se este não ultrapassou o 5% do valor arrecadado com Outorga Onerosa.

Mas não basta transformar a TPC na TDC que é aplicada na cidade inteira…
Com poucos casos e concentrados em pouquíssimos imóveis, e alguns proprietários especulando com direitos de construir, o instrumento parece não estar servindo para o que foi concebido: preservar e conservar imóveis tombados!

Neste sentido, a discussão da regulação deste instrumento na OU Centro, poderia levar a uma outra discussão: será o caso de aplicar a TDC hoje regulamentada para a cidade inteira sobre a OU Centro?

Ocorre que, a TDC também pode ser aperfeiçoada. É preciso superar os desafios de sua regulamentação e aplicação para que o instrumento atinja seu objetivo.

Um deles é como preservar um conjunto de imóveis cada vez maior, muito diverso e complexo? A TDC, aplicável em toda a cidade, está associada à área do lote do imóvel tombado. Este fato tem direcionado o interesse do mercado na aquisição de direitos a partir de imóveis que possuem grandes lotes. Assim, não tem servido para preservar o casario, ou imóveis que ocupam lotes pequenos, que correspondem a uma grande parcela dos bens tombados. O instrumento não parece estar servindo para preservar e conservar os imóveis que prioritariamente precisariam deste recurso.

Outra, é que a TDC poderia ser mais um instrumento para a conservação, dentre outros que devem ser pensados, portanto não pode ser concebida de forma isolada. E, no caso do PIU Setor Central, a concepção dos instrumentos deve ter relação com o conjunto de imóveis a ser preservado. Por um tempo, a lei de fachadas atuou sobre um perímetro que concentrava vários imóveis tombados mas teve pouquíssima adesão. Será que tem sentido uma política por perímetros específicos? Qual a característica dos imóveis? Por que a proposta do PIU não apresenta estratégias específicas considerando estas características? Não seria o caso de ter uma Comissão de Patrimônio que cuidasse apenas desta região da cidade?

O perímetro da OU Centro tem uma quantidade bastante grande de bens tombados. Sua conservação não deve ser pensada a partir de edifícios isolados, mas da possibilidade de recuperação da qualidade urbana como um todo. Não se deve pensar a preservação do patrimônio como uma política pontual, de indivíduos. Na área central, o conjunto de bens tombados pode ser ator importante de qualificação.

E ainda, o mais importante, é fundamental articular a TDC a uma política de preservação que garanta a conservação dos imóveis. Este mercado parece estar mais interessado, pelo lado dos proprietários dos imóveis concedentes, a obter recursos com caráter indenizatório; e pelo lado dos receptores, a comprar o direito de construir a preços mais baixos. Quem está preocupado em conservar um grande conjunto de imóveis? Estas transações, estimuladas por subsídios públicos revestidos de direitos de construir públicos que são concedidos aos privados, como é o caso da TPC na OU Centro, deveriam estar promovendo o interesse público, que seria a preservação e manutenção dos bens tombados. No entanto, até agora parece ter sido interessante apenas ou prioritariamente para os atores envolvidos.

* Paula Freire Santoro é arquiteta e urbanista, professora de Planejamento Urbano do Departamento de Projeto da FAU USP. Atualmente coordena o projeto ObservaSP no LabCidade FAU USP. Lattes | Academia.edu
** Flávia Taliberti Peretto é arquiteta e urbanista, mestranda em Planejamento Urbano e Regional na FAUUSP. Lattes
*** Silvio Oksman é arquiteto, doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e professor da Escola da Cidade. Sócio do escritório Metrópole Arquitetos. Lattes