Fotografia: Instituto de Administração Penitenciária do Amapá (IAPEN)/Padre Valdir João Silveira

Por Fábio Mallart, Rafael Godoi, Ricardo Campello e Fábio Araújo*

Avisa o IML, chegou o grande dia
(Racionais MC’s, Diário de um detento)

Feridas abertas e mal tratadas, restos de alimentos pelo chão das celas, fezes de ratos, pouca circulação de ar, racionamento de água, insetos por todos os lados. Enquanto alguns presos sequer levantam de suas camas – tamanha a debilidade da saúde –, outros permanecem em cadeiras de rodas. A possibilidade de tomar um banho, lavar as mãos ou higienizar quaisquer objetos, se dá apenas quando escorrem alguns fios de água de um cano na parede, que são armazenados em recipientes improvisados. Em tal local, onde o cheiro é insuportável, um preso nos mostra os pontos mal costurados de seu ferimento; outro jovem, sem conseguir levantar da cama, narra as dores da tuberculose.

Essas condições não são exceção; ao contrário, elas são constitutivas da realidade prisional brasileira. Se a imagem descrita já é intolerável, ela ganha traços ainda mais terrificantes ao constatarmos que se refere a uma enfermaria improvisada, localizada no Centro de Detenção Provisória da Vila Independência, zona leste de São Paulo – espaço que alguns de nós visitamos em março de 2016.

Nas prisões, a morte por doenças assume contornos de um massacre. Em 2017, só no estado de São Paulo, que abriga um terço da população carcerária brasileira, dos 532 óbitos computados pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), 484 foram classificados como “mortes naturais”. Já no Rio de Janeiro, cuja taxa de mortalidade é a mais elevada do país – cinco vezes a média nacional –, de 521 mortes entre 2016 e 2017, 83% decorreram de doenças que evoluíram a óbito em contextos de falta de assistência médica, nos quais, além de diagnósticos tardios, elas não são tratadas adequadamente.

Em ambientes superlotados, com alimentação insuficiente e de péssima qualidade, racionamento de água, falta de produtos de higiene e limpeza, e precariedade de serviços médicos, a proliferação de doenças é letal. Trata-se de espaços propícios às enfermidades infecciosas que atingem órgãos respiratórios como, por exemplo, a tuberculose. Não é em vão que o número de casos nos cárceres do país aumentou significativamente nos últimos anos, chegando à marca de 10.765 em 2018, praticamente o dobro do que fora registrado em 2009 (5.656 casos). Se a epidemia de tuberculose já afeta centenas de presos e presas – que atinge esse público 35 vezes mais do que a população em liberdade –, a chegada do coronavírus tende a acelerar a produção de mortes. Assim como ocorre com a tuberculose, as próprias condições de existência às quais são submetidos presos e presas são ideais para a disseminação da Covid-19, mas também para a impossibilidade de tratamento ou recuperação. Com efeito, a escassez de água potável, a superlotação e a falta de produtos de higiene e limpeza impedem as medidas de prevenção mais recomendadas por entidades e especialistas: lavar as mãos e evitar aglomerações. Em resumo, o mesmo ambiente que faz com que os cárceres sejam polos de disseminação da tuberculose, ao que tudo indica, retroalimentarão o novo coronavírus e, consequentemente, a máquina de morte.

O primeiro estado brasileiro a notificar casos suspeitos de coronavírus no sistema prisional foi o Rio de Janeiro. No dia 16 de março, conforme publicado pelo The Intercept Brasil, a direção da Penitenciária Milton Dias Moreira, em Japeri, na baixada fluminense, enviou um comunicado à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), informando a suspeita de quatro casos em detentos. Em resposta, o governador Wilson Witzel (PSL), determinou que os internos que apresentavam os sintomas fossem isolados, mas permanecessem na unidade – a mais lotada do estado. Na mesma data foi publicada a resolução nº 736 entre a Secretaria Estadual de Saúde (SES) e a SEAP, com indicações para prevenir e controlar infecções pelo Covid-19, tais como: manutenção de ambientes ventilados, higienização das mãos e desinfecção de utensílios e locais de convivência. De uma ironia atroz, essas orientações, em virtude do estado das prisões e de suas dinâmicas de funcionamento, são impossíveis de serem adotadas.

Foto: Reprodução/SAP/Governo de São Paulo

No dia 23 do mesmo mês, devido à resolução conjunta nº 10 entre a Secretaria de Estado de Polícia Civil (SEPOL) e a SEAP, o Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro suspendeu as autópsias em corpos de presos vítimas de “morte natural”, realizadas em todos os mortos sob custódia do Estado antes da pandemia. Salvo em casos de morte por causa externa (por exemplo, homicídio) ou causa suspeita, são os médicos da SEAP que devem atestar as mortes decorrentes de “causas naturais”, sendo que os corpos, já com as declarações de óbitos, são enviados ao IML somente para a retirada dos familiares. Nesse contexto, familiares de presos e presas alegam que há mortos sendo sepultados sem que se saiba a causa do óbito. É esse o caso de Ygor Nogueira do Nascimento, 22 anos, que faleceu na Cadeia Pública Paulo Roberto Rocha (complexo prisional de Gericinó). Além da demora de três dias para a liberação do corpo – tendo morrido poucos dias antes de tal resolução, o caso parece ser emblemático da mudança no fluxo dos mortos –, na certidão de óbito do jovem consta a informação de que a causa da morte é indeterminada.

Em 30 de março, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério da Saúde (MS) estabeleceram novos padrões para o sepultamento e cremação de corpos. A portaria conjunta, que vem sendo questionada por vários órgãos, entidades e movimentos, na falta de familiares ou de pessoas conhecidas do morto, autoriza o enterro ou a cremação sem o registro civil de óbito, requerendo apenas a declaração de óbito, que deve ser arquivada no estabelecimento de saúde juntamente com o prontuário e eventuais documentos.

Tais medidas, a serem acompanhadas no próximo período, fomentam um perigoso campo de indeterminação em relação à morte, em que não há diagnósticos, não se conhece as causas da morte e, no limite, sequer há uma certidão de óbito. Ainda mais quando já se sabe que há corpos que são enterrados como “indigentes” ou “não reclamados”, mesmo que identificados e que os familiares os estejam buscando, simplesmente porque não há comunicação das instituições do Estado com os familiares das pessoas mortas. Se muitas vezes já é difícil para um familiar localizar um preso no sistema prisional, e se, em certos casos, o preso pode ser enterrado sem o consentimento da família, a adoção da cremação ou do sepultamento sem atestado de óbito poderá transformar presos e presas que venham a falecer nos cárceres em pessoas desaparecidas.

Já em São Paulo, em 16 de março, a Secretaria de Administração Penitenciária e a Corregedoria Geral da Justiça (CGJ-SP) suspenderam a saída temporária nas unidades prisionais de regime semiaberto. A decisão desencadeou a fuga de mais de mil presos dos Centros de Progressão Penitenciária (CPP) dos municípios de Mongaguá, Tremembé, Mirandópolis, Porto Feliz e Sumaré. Após as fugas, denúncias realizadas por moradores de Mongaguá reportaram a existência de corpos nos arredores da unidade, que teriam sido executados pelas forças de Segurança Pública.

Ainda no dia 16, o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) anunciou a suspensão das visitas nos presídios federais. No decorrer da semana seguinte, 97% das administrações estaduais também cancelaram visitas e interromperam saídas temporárias do regime semiaberto. Em 18 de março, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) emitiu uma portaria recomendando aos estados que os presos com suspeita ou confirmação de Covid-19 fossem isolados em pavilhões específicos, estabelecendo um centro de segregação dentro de um espaço já segregado. Programática ou não, a estratégia baseia-se na pronta resignação ao contágio confinado. No exato momento em que essas linhas estão sendo escritas, segundo a SAP, as prisões paulistas possuem 48 detentos com suspeita de Covid-19, além de 56 agentes afastados. Evidentemente, esses dados devem ser questionados, sobretudo quando se constata que na madrugada de 29 de março dois internos da Penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos, faleceram depois de apresentar dificuldades para respirar, tendo esses óbitos sido registrados como “morte natural”.

Frente à deliberada negligência das autoridades em tomar providências, setores da sociedade civil têm pressionado o sistema judiciário para que pessoas presas com mais de 60 anos, grávidas, mães e portadoras de outras enfermidades aguardem o julgamento e/ou cumpram as suas penas em prisão domiciliar. Desde então, uma estimativa divulgada pelo DEPEN no início de abril, contabiliza a liberação de cerca de 30 mil reclusos. Embora tal cifra esteja longe de fazer uma diferença substantiva num universo de mais de 800 mil presos, o poder executivo federal, ao invés de apoiar, acelerar e ampliar a aplicação dessas medidas, se empenha em barrá-las, acelerando o massacre.

Ao estabelecer como medida central o reforço do isolamento pela suspensão de visitas e saídas periódicas, as autoridades prisionais demarcam um perímetro no qual o coronavírus poderá se propagar em alta velocidade – afinal, servidores e insumos básicos, potencialmente portadores do vírus, seguirão adentrando o espaço carcerário. Ademais, ao instalarem um núcleo segregado de confinamento, já contaminado, para o qual serão direcionados os parcos serviços médicos disponíveis, a dinâmica que se estabelece nos remete aos leprosários, isto é, a da segregação orientada à morte. Essas medidas tendem a acelerar a matança, que há tempos opera no sistema prisional, com o acréscimo de novas camadas de opacidade acerca das causas dos óbitos e da própria existência dos mortos.

*O texto é resultado do trabalho coletivo de Fábio Mallart, Pesquisador de pós-doutorado pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ (bolsista PNPD/CAPES); Rafael Godoi, Pesquisador de pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ (bolsista PNPD/CAPES); Ricardo Campello, Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, USP; e Fábio Araújo, Doutor em Sociologia. Professor e Pesquisador, IFRJ/Fiocruz. Publicado originalmente no Boletim da ANPOCS.