* Por Gisele Brito, Pedro Rezende e Vanessa Nascimento
(Texto originalmente publicado no Ecoa UOL)

A aprovação da revisão do PDE (Plano Diretor Estratégico) de São Paulo, nesta segunda-feira (26), deixou evidente que para o prefeito e vereadores interessam apenas planejar o futuro do mercado imobiliário da cidade, tornando tangíveis e seguros seus lucros.

Depois de uma minuta muito ruim apresentada pelo Executivo, o documento substitutivo apresentado pelo vereador Rodrigo Goulart (PSD) e aprovado por 42 parlamentares na primeira votação, e 44 na segunda – incluindo cinco dos oito parlamentares do PT que compõe a oposição da casa -, não representa melhoras efetivas.

O problema vai muito além dos impactos na paisagem que prédios mais altos causarão ou do incômodo que mais moradores trariam para bairros hoje considerados tranquilos. Esse compromisso (ou dívida) com construtoras e incorporadoras agrava a crise ambiental, a desigualdade e o racismo que caracterizam a capital paulista. O amplo incentivo à verticalização, com aumento da rentabilidade para os empreendedores que a revisão do plano propõe expandir, significa o agravamento da segregação racial da cidade. A aquisição de apartamentos empilha uma série de elementos que tornam essa mercadoria inacessível para consumidores negros, pobres e periféricos. O resultado é o aumento das áreas de exclusividade branca da cidade, sendo que em regiões como Higienópolis, Perdizes ou Jardim Paulista, essa população branca ultrapassa 95% do total de habitantes. Assumir a proposta aprovada como sendo a ideal para a cidade, portanto, é uma política racista.

O incentivo à verticalização, com concomitante barateamento dos custos de construir, aponta um conluio claro entre mercado e Estado. A destinação de fundos públicos e investimento privado para a política habitacional realmente popular, observando mecanismo de equidade racial no atendimento, seria, em tese, uma forma para enfrentar os efeitos racistas dessa forma de expansão.

Duas emendas que se propunham a uma perspectiva antirracista foram apresentadas pelo movimento negro e pela comunidade que tem discutido memória e permanência no bairro do Bixiga, mas nenhuma delas foi levada em consideração.

Mas a revisão do Plano Diretor, pelo contrário, abre caminho para mudanças perversas, com a transformação da habitação social em fonte de renda por meio da locação, beneficiando os investidores imobiliários – via de regra brancos – proprietários dessas unidades. E o que sobra desses recursos públicos, para provisão de habitação popular, raramente se reverte em moradias nas áreas com melhores condições de infraestrutura.

Dessa forma, o novo plano mantém o padrão de desigualdade e segregação racial. É bom lembrar que, desde a aprovação do atual Plano Diretor em 2014, há incentivos para construir ao redor dos eixos de mobilidade – como estações de metrô e grandes corredores de ônibus – , e o que resultou disso foi a produção de microapartamentos, com metro quadrado caríssimo ou apartamentos destinados para famílias de classe média alta.

Sem objetivos claros no Plano Diretor que pudessem propor um enfrentamento à desigualdade, a função de interesse social das habitações, que deveria atender a população de mais baixa renda, foi totalmente corrompida e manipulada pelo mercado e vereadores, que têm adotado esse rótulo apenas como um recurso de Social Washing.

Os impactos ambientais dos instrumentos que sustentam o Plano Diretor sequer são considerados. Quando são supostamente considerados, expulsas para cada vez mais longe são apenas, e novamente, as pessoas negras, pobres e periféricas, que pagam com suas vidas a partir de quem o Plano realmente vai amparar.

Portanto, em São Paulo, planejar a cidade virou sinônimo de intermediar a organização para a moradia branca de classe média e alta. Vertical ou horizontal, os vencedores – moradores ou investidores imobiliários – sempre foram brancos.

Um plano antirracista deveria, ao menos, considerar o perfil racial da população e medir o sucesso ou fracasso de seus instrumentos em assegurar o acesso da população negra e periférica à moradia e a cidade.

A população negra e periférica reconhece muito bem como essa estrutura afeta sua vida cotidiana, apesar de os vereadores eleitos votarem indiferentes ao agravamento dessa segregação. Trata-se de um nó cego causado pela resistência em tratar do racismo na estruturação da cidade. Quem é antirracista precisa trabalhar para desatá-lo.

 

*Gisele Brito é mestra em Planejamento Urbano e Coordenadora da área de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto de Referência Negra Peregum; Pedro Rezende é arquiteto e urbanista, membro do Instituto de Referência Negra Peregum e pesquisador do LabCidade; Vanessa Nascimento é presidenta do Instituto de Referência Negra Peregum.