Os caminhos de Dona Nita. Fonte: Acervo do grupo de estudos Margear. Autoria de Zara Rodrigues, 2020. In: CORDEIRO et al., 2021.


Diana Helene, Gabriela Leandro Pereira, Rossana Brandão Tavares, Paula Freire Santoro*

Este texto é um recorte do artigo do editorial da RBEUR, escrito pelas mesmas autoras, apresentando os trabalhos que compõem a revista.

Neste segundo post que traz o conteúdo do dossiê “Território, Gênero e Interseccionalidades” da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (RBEUR) (ver editorial), falamos sobre o segundo bloco de textos do dossiê, que reúne experiências descritas a partir de narrativas situadas e corporificadas. São três os artigos em que vida e ficção se confundem, deslizam entre a narrativa da vida, a literária “e suas dobras”, em diferentes “escrevivências”, usando uma expressão da Conceição Evaristo, usada na tese da Gabriela Leandro Pereira (Gaia).

O primeiro deles, “Trançar histórias, cantar memórias. Narrativas e deslocamentos de uma mulher em situação de refúgio”, de Júlia Motta, traça uma etnografia que acessa memórias, por meio de fotografias, objetos e literatura, para fazer ressoar vozes de mulheres em situação de refúgio. É um texto bonito, poético. É literatura e artigo, ao mesmo tempo, provocando o leitor. Descreve as agruras do exílio forçado repentino na forma e no conteúdo da escrita: “Na correria, a mãe pegou, por engano, o gato que estava enrolado no lençol da cama achando que era a filha. Já distante alguns metros, percebeu o equívoco e voltou para buscá-la”. Relata a rotina de pentear os cabelos e construir memórias, ampliando a noção de cuidado; a criação dos filhos em comunidade, como parte das redes afetivas; a vida de mulher e mãe que se dá nos quintais, junto com os cultos ancestrais, verdadeiros “inzu” (barraca, choça ou cabana num idioma de Ruanda, usado aqui como lugar que contém carga afetiva e emocional) urbanos no Rio de Janeiro.

O segundo aborda a natureza da ficção, de Camila Matos, intitulado “Narrar a Serra, imaginar as cidades: o recurso à ficção na pesquisa sócio-espacial”. Parte de entrevistas com moradoras idosas do Aglomerado da Serra, Belo Horizonte, trazendo a fabulação presente na narrativa de idosas sobre sua vivência na cidade, como questionadora do estatuto de “verdade” inerente aos discursos oficiais, e provocadora das metodologias para lidar com as experiências narradas pelas idosas.

O último do bloco, o “Conversações interepistêmicas: incorporando a perspectiva putafeminista nas pesquisas sobre prostituição e espaço urbano” de Gabriela Pinto de Moura, propõe a incorporação da perspectiva putafeminista nas pesquisas sobre prostituição e espaço urbano. Dialoga com trabalhos sobre as transformações urbanas nos territórios da prostituição de Diana Helene (2015) e apresenta uma contribuição sobre o debate através do putafeminismo – “um campo teórico-prático dentro do feminismo protagonizado por prostitutas que usam suas vivências como forma engajada e política para pensar e repensar conceitualmente a ‘prostituição’”. Discute, a partir de narrativas, vivências e reflexões de prostitutas, como Amara Moira, Gabriela Leite, entre outras, temas como corpo, sexualidade, violências, estigma, política e zonas de confinamento urbano.

Tais trabalhos potencializam narrativas e métodos que valorizam a experiência, a subjetividade e as vozes suprimidas e/ou silenciadas no contexto hegemônico da produção de conhecimento. Colocam os saberes normalmente invisibilizados – como os produzidos por migrantes, mulheres idosas e prostitutas, entre outros – pautando, a partir de seus territórios, formas outras de pensar e construir o mundo. São abordagens alinhadas às epistemes feministas e interseccionais, que criticam e reconstroem as formas tradicionais de ler, planejar e organizar o espaço.

*Gabriela Leandro Pereira é professora adjunta da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia e do PPGAU/UFBA. É integrante do Grupo de Pesquisa Lugar Comum (PPGAU/FAUFBA) e coordenadora do Grupo de Estudos Corpo, Discurso e Território (FAUFBA). Publicou em 2019 o livro “Corpo, discurso e território: Cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus”, adaptação da tese. Atualmente coordena a pesquisa “Narrativas e cartografias da presença negra nas cidades”. 

Rossana Brandão Tavares é professora adjunta da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense e do PPGAU/UFF. Coordena o projeto de pesquisa “Práticas Espaciais Generificadas e Conflitos Urbanos e Socioambientais” com investigações sobre corpo, espaço, vida cotidiana, reprodução social, precariedade, resistências, políticas urbanas, assim como, perspectivas teórico-metodológicas na arquitetura e urbanismo a partir das teorias feministas e queer.

Diana Helene é professora adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas e da pós-graduação em Tecnologia para o Desenvolvimento Social da UFRJ. Desde 2004, atua junto a movimentos sociais de mulheres, moradia e trabalho, coordena projetos de pesquisa sob o tema da interseccionalidade e é autora do livro “Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero: a segregação urbana da prostituição em Campinas”, debatido neste podcast do LabCidade. 

Paula Freire Santoro é arquiteta urbanista, Profa. Dra. da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (FAUUSP) e co-coordenadora do LabCidade. Desde 2014 coordena a pesquisa “Cidade, gênero e interseccionalidades”, com o objetivo de subsidiar a reflexão crítica sobre formas de planejamento urbano, introduzindo conceitos, teorias e práticas generificadas, racializadas, interseccionalizadas na leitura, análise e proposta de transformação do território.