Foto: Divulgação USP

*Por Raquel Rolnik e Vera Telles

Lúcio Kowarick, professor aposentado do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, faleceu aos 82 anos, em 24 de agosto deste ano. Deixa um imenso legado no campo dos estudos urbanos. Como professor e pesquisador, formou toda uma geração de pesquisadores. Sua obra ganhou circulação internacional, ultrapassou fronteiras ganhando enorme repercussão na América Latina. A constituição do campo de estudos urbanos no Brasil, também na América Latina, é muito devedora de suas pesquisas e, sobretudo, ao modo inovador, polêmico e sempre politicamente engajado pelo qual pautou as questões relativas aos nexos entre cidade, economia e política. Com ele aprendemos a pensar – e pesquisar – a cidade como campo de conflitos, como espaço de lutas, trazendo para nossas agendas acadêmicas – e também politicas – o amplo espectro de questões implicadas no “direito à cidade”.

Pois é esse lado do legado de Lúcio que gostaríamos aqui de enfatizar. Como professor e pesquisador, formou gerações de pensadores do urbano, mas também de ativistas e de figuras politicas empenhadas e comprometidas na construção de agendas democráticas e igualitárias da/para a cidade.

Em 1975, junto com Vinicius Caldeira Brandt, Lúcio organizou um livro que teve imensa repercussão e impacto na época. Eram os anos de chumbo da ditadura militar. Sob o título “São Paulo, crescimento e pobreza”, com capítulos escritos por pesquisadores do Cebrap, contando com o apoio da Pontifícia Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, o livro trazia a público e ao debate o engendramento expansivo da pobreza urbana sob a lógica de um padrão de “modernização” (leia-se: acumulação econômica e urbanização) que só fazia aumentar as desigualdades e segregações urbanas, precariedade nas condições de vida e moradia. “Lógica da desordem” é o titulo do artigo de Lúcio neste livro, formulação sintética e expressiva de questão que ele irá desdobrar em suas pesquisas e escritos posteriores, fio condutor de uma investigação empírica e reflexão teórica que busca deslindar os nexos entre superexploração da força de trabalho e precariedade das condições urbanas de vida. Em 1979, Lúcio iria cunhar a expressão “espoliação urbana” em livro que leva este título, que circulou amplamente nos debates da época e até hoje é referência para quem queira entender e pesquisar as desigualdades e segregações plasmadas nos espaços de nossas cidades.

Naqueles anos, desde meados da década de 1970 e no correr da década seguinte, os escritos de Lúcio eram referência obrigatória nas discussões e embates que então se faziam sobre o futuro das nossas cidades em meio às movimentações e agitações das lutas contra a ditadura e em torno de agendas democráticas que então estavam em gestação e discussão. Seus escritos eram lidos. E ele sempre esteve presente nos debates, fóruns diversos nos espaços universitários e fora da academia. Um imenso trânsito e inúmeras trocas entre pesquisadores e ativistas, entre agendas acadêmicas de pesquisa e agendas políticas de movimentos sociais que então agitavam a cena política do país, com suas demandas por melhor qualidade de vida, urbanização de seus espaços, moradia, acesso a serviços públicos de qualidade (transporte, saúde, educação). Nessas trocas e interações, nesses trânsitos entre a pesquisa e os engajamentos políticos, foi-se também formando toda uma geração de figuras políticas e gestores urbanos que iriam se engajar na formulação de politicas urbanas e definição de prioridades que iriam pautar o chamado “ciclo das gestões democráticas populares” nos anos 1990.

Lúcio Kowarick foi presença constante nesses debates (e embates), interagiu e deixou suas marcas nesse período que foi dos mais interessantes e inovadores de experimentação no campo das políticas urbanas no país. Ele fez parte e marcou toda uma geração que se formou num tempo no qual a universidade ultrapassava seus muros, em que pesquisadores dialogavam com movimentos da sociedade, em que agendas de pesquisa e agendas políticas se comunicavam e repercutiam também na formulação de políticas públicas e formação de gestores urbanos empenhados em agendas democráticas para a cidade. Lúcio Kowarick se empenhou nessa aposta política, e com ela se comprometeu ao longo de toda sua história acadêmica.  Seu livro “Viver em Risco”, publicado e ganhador do Prêmio Jabuti em 2009,  recolheu e atualizou suas pesquisas anteriores dialogando com os novos desafios postos no cenário urbano. Neste livro, escrito após décadas de exercício da democracia formal no pais , ele cunha a expressão “subcidadania”para definir e sintetizar o sentido da vulnerabilidade urbana, a condição de viver em risco permanente das maiorias.

É este um legado que será preciso reativar agora sob novos termos, termos afinados com os desafios imensos postos pelos tempos sombrios em que estamos mergulhados, sob uma constelação política de governo que faz da destruição de direitos, garantias e serviços públicos um programa, mas também se empenha no apagamento dos rastros e memória dessa história. Por isso mesmo, é importante, neste momento, para as novas gerações de pesquisadores, que se empenham em compreender o novo momento em que vivemos na economia politica das cidades, o legado de Lúcio: o brilho de sua inteligência, a radicalidade de sua generosidade, e, sobretudo, o profundo compromisso de um saber comprometido com desafios políticos (e incertezas, imensas) postos no cenário das nossas cidades.

*Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.  Vera Telles é professora livre-docente sênior do Departamento de Sociologia da USP. Coluna originalmente publicada no UOL.