Por Raquel Rolnik*

A última semana de setembro foi excepcional do ponto de vista do direito à moradia, no Brasil, mas também no exterior. Nessa semana foi derrubado o veto do presidente Bolsonaro ao projeto de lei que havia sido aprovado pelo Congresso Nacional, que suspendia remoções até o  final de 31 de dezembro. Foi nessa semana também que o ministro do STF, Alexandre de Moraes, suspendeu uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que determinou a reintegração de posse de 800 famílias que ocupavam uma grande área abandonada há muitos anos. 

Além disso, um referendo foi aprovado em Berlim autorizando a cidade a expropriar apartamentos pertencentes a proprietários corporativos  que possuem mais de 3000 unidades na cidade. E finalmente, Barcelona avançou mais um passo na direção do controle e regulação do Airbnb na cidade.

Qual é a relação entre todos esses fatos? Tem a ver uma coisa com a outra? Muito! Estamos falando de um processo global, que evidentemente se expressa de forma particular em cada localidade que tem levado a uma verdadeira emergência habitacional mundo afora. Trata-se da intensificação das relações entre a moradia e as finanças; ou mais precisamente, de como a produção,  gestão  e alocação da moradia tem sido cada vez mais subordinada ao papel que essa ocupa em circuitos financeiros globais famintos de ativos.

Depois da crise financeira provocada por esse enlace, a resposta pós crise foi mais do mesmo. Na Europa e América do Norte, a moradia de  aluguel se transformou  na nova fronteira da financeirização e cidades com grande contingente de população moradora de aluguel, como Berlim e Barcelona, viram os preços de aluguéis dispararem após a entrada de grandes proprietários corporativos e plataformas digitais, além do ataque especulativo no mercado residencial por parte  grandes massas de capital excedente. Pandora papers revela que uma parte do capital entesourado em off shores se transmuta em propriedades imobiliárias. Londres e Nova Iorque estão entre os  destinos claros deste fluxo. Mas não somente estas cidades. 

E a suspensão dos despejos no Brasil, o que tem a ver com isso? Ora, para além da crise econômica e sanitária, a explosão de preços no mercado imobiliário, em plena crise e em plena pandemia, tem levado a cada vez contingentes maiores da população simplesmente não ter onde morar. Esse “boom” tem muito mais a ver com os circuitos financeiros do que com um mercado pautado pelas necessidades, ou a famosa oferta e demanda como querem os liberais. As ocupações têm sido a saída de muitas famílias e, na medida em que estas ficam ameaçadas de despejo, temos um enorme contingente sujeito a estar na rua, em uma conjuntura onde ter uma casa para se isolar é o mínimo do mínimo para conseguir sobreviver. 

O projeto aprovado pelo Congresso Nacional visava proteger a possibilidade de isolamento social, já que trata-se de uma condição absolutamente essencial para evitar o contágio, hospitalizações e mortes. Essa iniciativa seguiu vários outros países em que essa medida foi adotada e está em debate há vários meses no Congresso e em vários estados e municípios também. 

No caso dos  Estados Unidos, um estudo realizado por pesquisadores da Duke mostrou que as políticas de prevenção de despejo reduziram a taxa de mortalidade pandêmica em 11%. Outro estudo, publicado em julho no The American Journal of Epidemiology, descobriu que os estados que deram fim às suas próprias moratórias de despejo nos meses antes da moratória federal entrar em vigor, como a Pensilvânia e o Texas, experimentaram taxas de mortalidade significativamente mais altas do que os estados que não o fizeram, como Minnesota e Nova York.

No caso brasileiro, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, já havia determinado em junho a suspensão por seis meses de ordens ou medidas de desocupação de áreas que já estavam habitadas antes de 20 de março de 2020, quando foi aprovado o estado de calamidade pública em razão da epidemia de Covid-19. Barroso deferiu parcialmente a cautelar em ação apresentada pelo PSOL, ADPF 828. Mas, a medida não estava sendo cumprida fielmente pelos juízes.Por isso, essa decisão de Alexandre de Moraes, motivada a partir de uma ação da Defensoria de São Paulo e Centro Gaspar Garcia arguindo o Tribunal de Justiça de São Paulo, evocando justamente esta ADPF, é também muito importante.

Também tivemos um referendo inédito na cidade de Berlim, na Alemanha, que determinou a expropriação dos apartamentos de grandes proprietários corporativos de apartamentos de aluguel. Esse referendo foi fruto de uma campanha  organizada por movimentos de inquilinos e visa empresas com três mil ou mais propriedades. No total, 240.000 propriedades, ou 11% de todos os apartamentos em Berlim, estariam sob os termos da iniciativa, que foi apoiada por uma maioria de 56,4% no referendo. A aprovação do referendo, no entanto, não é vinculante e depende, assim, do governo da cidade decidir  se segue em frente. 

Finalmente, entra em vigor em Barcelona, desde o início de agosto, uma determinação de proibição de aluguel de pedaços dos imóveis para o Airbnb. Imóveis inteiros podem ser alugados, mas só em determinados locais devidamente licenciados. Esta medida é parte do  conflito entre a cidade de Barcelona e a plataforma Airbnb, para que o estoque de residências da cidade não seja inteiramente capturado pelas plataformas de aluguel de curta duração. 

O que estamos vendo com essas situações é que a moradia e o tema da emergência habitacional começa, finalmente, a entrar na pauta do judiciário do nosso país. E não era sem tempo. As notícias do último mês são auspiciosas para detectarmos que, finalmente, apesar de vitórias pequenas e localizadas, o tema da moradia financeirizada, que teve um enorme efeito na piora das condições de habitação em várias cidades do mundo, começa a ser enfrentado.

* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.