By / 24 de novembro de 2022

‘Bom Retiro é o Mundo’: projeto Korea Town exclui outros povos e ignora problemas reais

Raquel Rolnik*

Bom Retiro sempre contou com uma multiplicidade de histórias que remetem aos mais variados grupos que ocuparam e ocupam esse território (Foto: Manuela d’Albertas)

O Bom Retiro é um dos bairros mais antigos da cidade de São Paulo. Por estar localizado entre duas estações ferroviárias centrais e as várzeas dos rios Tietê e Tamanduateí, foi uma região que historicamente funcionou como porta de entrada de imigrantes, constituindo um dos eixos de expansão industrial e popular da cidade no início do século XX.

Inicialmente habitado por italianos e portugueses, a partir dos anos 1930 passou a receber uma grande leva de judeus, vindos sobretudo do leste europeu, que se instalaram e constituíram um importante polo comercial e de pequenas indústrias de confecção de roupas. Aliás, foi nas lojas da Rua José Paulino que pela primeira vez foi adotada a prática da venda à prestação na capital paulista.

Décadas depois, estabelecimentos, oficinas e fábricas viraram abrigo, destino e negócio para coreanos, bolivianos e paraguaios. Esta onda mais recente se sobrepõe, mas jamais apaga ou substitui inteiramente as camadas anteriores. Além disso, assim como outras regiões da cidade que foram marcadas por uma grande presença “estrangeira”, o Bom Retiro, ou “Bonra” para os íntimos, é terra nordestina, brasileira, branca, parda e negra. 

Neste momento estamos assistindo a uma tentativa de captura simbólica e material que procura identificar o Bom Retiro como “Korea Town”, através de iniciativas lideradas pelo consulado da Coreia do Sul em parceria com autoridades municipais.

O bairro já conta com algumas intervenções nesta direção, como a mudança da denominação da Rua Prates para “Rua Prates – Coreia”, aprovada em março de 2022 (lei nº 17.760). Há mais projetos de lei que pretendem alterar o nome de outros locais, como rebatizar a Rua Três Rios para “Seoul” (PL 609/2021) e a estação Tiradentes da linha azul do metrô para “Estação Tiradentes – Coreia do Sul” (PL 737/2021). Outras iniciativas envolveram a pintura de murais e a instalação de uma nova iluminação pública decorada como lanternas coreanas. 

Este conjunto de ações, defendidas por seus promotores como “presentes” para a cidade de São Paulo, tem várias implicações negativas. Bom Retiro não é nem nunca será uma Coreia, porque é um lugar de múltiplos povos e é exatamente esta sua característica mais importante e marcante que deve ser preservada.

Ainda, o projeto vem sendo implementado sem ter sido objeto de política pública e nem sequer ter passado pela prefeitura, muito menos pelos atuais moradores do Bom Retiro, que nunca foram consultados a respeito das intervenções propostas para seu território.

Se o consulado da Coreia do Sul deseja presentear a cidade e um de seus bairros com ações de melhorias, é extremamente bem-vindo. Mas a discussão é sobre que ações devem ser essas e também se o que o bairro mais precisa neste momento são estas intervenções cenográficas. Apesar do Bom Retiro ser um bairro central e consolidado, a região tem vários problemas urbanísticos, como a presença de pensões, cortiços, pontos de alagamento e vários outros temas que carecem de investimentos e soluções. 

Na direção de preservar a diversidade cultural e social do bairro, o coletivo “Bom Retiro é o Mundo” une moradores e frequentadores e tem se mobilizado não apenas para resistir ao projeto “Korea Town”, mas também para imaginar coletivamente um plano popular que dialogue com as múltiplas demandas do local. A iniciativa pode ser acompanhada no perfil do Instagram.

* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.


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