Diásporas, ancestralidades negras e lutas urbanas. Fonte: Acervo do grupo de estudos Margear. Autoria de Aleida Batistoti, Ingrid Pita e Yago Souza, 2019. In: CORDEIRO et al., 2021.

Rossana Brandão Tavares, Paula Freire Santoro, Gabriela Leandro Pereira, Diana Helene*

Este texto é um recorte do artigo do editorial da RBEUR, escrito pelas mesmas autoras, apresentando os trabalhos que compõem a revista.

Neste quarto post que traz o conteúdo do dossiê “Território, Gênero e Interseccionalidades” da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (RBEUR) (ver editorial), discorremos sobre o quarto bloco de textos do dossiê, que reuniu dois artigos que tratam das lutas, o reposicionamento no território e a potência transformadora.

Este bloco parte dos conflitos, apropriações, negociações, processos de deslocamento territorial para afirmar que estes implicam em processos de insurgência e de reposicionamento no território por parte das sujeitas. Entende os deslocamentos de forma alargada, como os deslocamentos os diaspóricos, ou os “displacements” como proposto por Nina Schiller e Ayse Çaglar (2016), mas também as despossessões e violências, entre outros processos descritos nos textos anteriores deste mesmo dossiê. Em contraposição aos deslocamentos, há os “emplacements”, outro termo de Nina Schiller e Ayse Çaglar (2016), que pode ser traduzido aqui como reposicionamentos no território representados pelas formas de (re)construção de redes no interior dos processos que obstaculizam, e também nas brechas que o território oferece. São os aquilombamentos, as estratégias de resistência através do cuidado e da solidariedade, lidas aqui como “potência transformadora” (expressão que é título do livro “A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo” de Verónica Gago, 2020).

Os textos se inserem nos estudos que consideram a diáspora não apenas como resultado do deslocamento e dispersão do povo africano, mas também como expressão da dimensão transcultural e cosmopolítica da formação de uma identidade negra fora do continente africano, como propõe Paul Gilroy (2012).

Neste bloco encontra-se o artigo “O ativismo das mulheres negras escravizadas no Brasil colonial e pós-colonial, no contexto da América Latina”, escrito por Maria Amoras, Solange Maria Gayoso da Costa e Luana Mesquita de Araújo, que procura responder a pergunta: quais as condições de vida e as estratégias de resistência das mulheres quilombolas do Norte da Amazônia e Sul do Brasil no contexto pós-colonial e colonial, compreendidas como negras africanas escravizadas? Imerge no tema da diáspora forçada e atroz da população africana escravizada para as Américas, do processo de subalternização e dos anseios da ancestralidade. Recupera estudos sobre Cuba, Colômbia e Equador, procurando dialogar com situações análogas na América Latina colonial.

As autoras contam que no Equador, as mulheres fugiam em busca de alforria para o “cimarronismo” (fuga para os “palenques” nas montanhas, espécie de quilombos com estratégias coletivizadas de vida); ou como “zapacos” (que conseguiam escapar dos feitores, continuando a viver nos arredores das cidades); ou em “quadrilhas”, insurgências femininas. Também as mulheres se articulavam e resistiam à escravidão, negociando cartas de liberdade através da compra direta do escravo, amizade ou paternalismo e/ou relações interpessoais. E desenvolviam estratégias coletivizadas de vida, marcadas pela solidariedade, cooperação, respeito, marcadas pela cosanguinidade.

Ainda neste bloco, o artigo “Mulheres em Ação e Categorias em Movimento. A luta pelo território na Comunidade Ribeirinha do Porto do Capim”, escrito por Helena Gonçalves, dá protagonismo a uma associação de mulheres na luta por moradia e pelo território, às margens do Rio Sahauá, em João Pessoa. O texto mostra o apagamento da presença das comunidades ribeirinhas na leitura urbana da colonização e do centro histórico; processos de “revitalização” – que envolvem, inclusive, a preservação através do tombamento – que substituem a população que mora e vive em áreas ameaçadas ou já removidas pelo Estado.

A autora descreve a presença de elementos naturais, a beira rio, o mangue a pesca, a coleta de marisco, as saídas para o passeio nas “croas” (ilhas que se formam com a maré), o “silêncio”, acompanhado de vida com a movimentação das madeireiras, a chegada dos pescadores, a sociabilidade das ruas, o caminho para igrejas. Resgata como as mudanças, ressonâncias e “fricções” que provocam o ordinário, e se desdobram em exigências em torno da reordenação de suas vidas cotidianas.

E, como “caranguejo que dorme acorda na corda”, a comunidade acordou. Está organizada desde 2011; reflete sobre a intersecção de gênero, violência e subjetividade recuperando histórias individuais e coletivas, trocando experiências; organiza-se para que “sejam ouvidas” pelo poder público; reposiciona o debate sobre o projeto de cidade que queremos inserindo-o nos debates interseccionais, generificados e racializados. Organiza-se em um movimento social em defesa da permanência, composto prioritariamente por mulheres e, solidariamente, desenvolvendo estratégias locais articuladas e integradas para o combate à pandemia de Covid-19.

É assim que fechamos o Dossiê enquanto um espaço de reflexão contra-hegemônico, atento à produção de conhecimento que visa à transformação social, não interditado ou constrangido por conservadorismos. Em tempo de acirradas lutas em torno das representações, asseguramos voz, denunciamos silenciamentos. Desejamos que as discussões que vislumbramos neste Dossiê cresçam e ganhem novos espaços, não marginalizados, desvalorizados e/ou invisibilizados. Marielle, Presente! Marina Harkot, Presente!

*Rossana é professora adjunta da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense e do PPGAU/UFF. Coordena o projeto de pesquisa “Práticas Espaciais Generificadas e Conflitos Urbanos e Socioambientais” com investigações sobre corpo, espaço, vida cotidiana, reprodução social, precariedade, resistências, políticas urbanas, assim como, perspectivas teórico-metodológicas na arquitetura e urbanismo a partir das teorias feministas e queer.

Paula é arquiteta urbanista, Profa. Dra. da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (FAUUSP) e co-coordenadora do LabCidade. Desde 2014 coordena a pesquisa “Cidade, gênero e interseccionalidades”, com o objetivo de subsidiar a reflexão crítica sobre formas de planejamento urbano, introduzindo conceitos, teorias e práticas generificadas, racializadas, interseccionalizadas na leitura, análise e proposta de transformação do território.

Gabriela é professora adjunta da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia e do PPGAU/UFBA. É integrante do Grupo de Pesquisa Lugar Comum (PPGAU/FAUFBA) e coordenadora do Grupo de Estudos Corpo, Discurso e Território (FAUFBA). Publicou em 2019 o livro “Corpo, discurso e território: Cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus”, adaptação da tese. Atualmente coordena a pesquisa “Narrativas e cartografias da presença negra nas cidades”.

Diana é professora adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas e da pós-graduação em Tecnologia para o Desenvolvimento Social da UFRJ. Desde 2004, atua junto a movimentos sociais de mulheres, moradia e trabalho, coordena projetos de pesquisa sob o tema da interseccionalidade e é autora do livro “Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero: a segregação urbana da prostituição em Campinas”, debatido neste podcast do LabCidade.