Por Raquel Rolnik

A retirada da chamada “escada azul” do Teatro Oficina e o emparedamento dos Arcos do Beco, na fachada posterior à arena cênica, ordenada pelo Grupo Silvio Santos, abriu no início desta semana mais um capítulo numa das disputas mais longevas da cidade de São Paulo. Uma verdadeira guerra urbana que, há mais de 40 anos, coloca o grupo Oficina, artistas, sociedade, instituições e coletivos do bairro do Bixiga, na região central, na trincheira de uma batalha para transformar um terreno encravado ao lado do teatro no Parque do Rio Bixiga.

O local é uma das últimas áreas remanescentes ainda vazias de um bairro altamente adensado, onde sobrevive também o rio Bixiga, hoje condenado ao subterrâneo mas que reserva possibilidades paisagísticas e ambientais para a região como um todo. A criação de um espaço de fruição pública e manifestações artísticas é prevista desde o início do projeto que ergueu o Teatro Oficina, de autoria de Lina Bo Bardi e Edson Elito, patrimônio tombado e reconhecido nacional e internacionalmente pela importância arquitetônica e histórica cultural, como palco das obras disruptivas dirigidas por José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso.

No meio do caminho, porém, os movimentos que se aglutinaram em torno da defesa da transformação do território em área de fruição pública e reserva natural, encontraram o proprietário do terreno, o Grupo Silvio Santos que, sistematicamente, também luta com todas suas forças políticas e jurídicas para impedir que a área se transforme num parque, afirmando a incorporação imobiliária como destino do local.

A mais recente cena desse embate foi a retirada da escada construída pelo Teatro Oficina e o fechamento da passagem aberta no muro na divisa para dar acesso ao terreno. Desde 2014, o Grupo Silvio Santos trava na Justiça uma disputa para fazer essas mudanças. Em meio ao processo, a Justiça e o Ministério Público de São Paulo atenderam parcialmente a demanda do Grupo Silvio Santos, autorizando a retirada da escada, mas condicionando o emparedamento à autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uma das instâncias, – além da municipal e estadual –, que reconhecem o Teatro Oficina como um patrimônio tombado.

Sem ter solicitado esta licença ao IPHAN, o Grupo Silvio Santos realizou as intervenções no último dia 5 de fevereiro, justamente após ter sido formalmente solicitado a se manifestar a respeito do acordo assinado pelo MP e a Prefeitura de São Paulo, em dezembro de 2023, que definiu recursos para o pagamento da desapropriação e implantação do parque naquele terreno. O montante, de R$ 51 milhões, deverá vir de um termo de ajustamento de conduta assinado pela Uninove relativo a uma ação civil pública na qual a instituição era ré. Um mês antes, os vereadores também aprovaram, em primeira votação, o Projeto de Lei (PL) 877/2021, que dispõe sobre a criação e o funcionamento do Parque Municipal do Rio Bixiga, de autoria do hoje deputado estadual Eduardo Suplicy (PT).

Para além dos argumentos jurídicos e urbanísticos de um lado e de outro desta trincheira, na verdade, esse é um conflito central para a capital paulista. Não pelos personagens envolvidos, mas por se tratar fundamentalmente de uma discussão sobre o destino do município. O Grupo Silvio Santos ao longo desta guerra já anunciou a construção de um shopping center, depois um complexo multiuso e até torres residenciais, a versão atual.

Enquanto as organizações do Bixiga afirmam que a cidade precisa neste momento não mais de torres, shoppings ou complexos multiuso, mas de espaços públicos aonde a cidade possa respirar e que sejam espaços de cura e reparação na relação da pólis com a natureza, fundamentais neste momento de emergência climática, em que o modelo e a forma de ocupação do solo e de construção de infraestruturas devem ser profundamente questionadas.

Tratar desse embate como uma guerra entre celebridades (Zé Celso versus Silvio Santos) é por isso uma redução do que de fato significa esse conflito: uma disputa em torno do destino da cidade, um debate aberto sobre direitos e as formas de uso e ocupação do solo que, aliás, deveriam pautar também a discussão sobre nosso Plano Diretor e Zoneamento. É sobre o direito à cidade, é sobre os direitos da natureza, é sobre o futuro.

 

(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade