* Vitor Inglez, Paula Freire Santoro, Raquel Rolnik, Débora Ungaretti

Enorme debate tem causado as mudanças trazidas pelo Substitutivo da revisão do Plano Diretor de São Paulo, principalmente nos chamados Eixos de Estruturação da Transformação Urbana. Mas o ultimíssimo texto do Substitutivo traz muitas outras. Verdadeiramente relâmpago, o texto foi disponibilizado na quarta à noite (21 junho), debatido na quinta (22 junho), – menos de 24 horas de sua circulação –, está previsto para ser votado nesta segunda (26 junho), e traz alterações em vários instrumentos que estão passando despercebidas, dentre elas nas chamadas ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social).

Em síntese, as alterações modificam o próprio objetivo original das ZEIS ocupadas, que é garantir melhores condições urbanísticas e habitacionais para quem nelas vive, aumentando também o risco de remoção e limitando a capacidade dos atuais moradores de participar na decisão sobre o futuro da área. O texto também claramente enxerga as ZEIS não como espaços de garantia de direitos, mas como frentes de expansão para o mercado.

As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) foram uma inovação incluída em planos diretores e leis de uso e ocupação do solo desde a década de 1980 em diversas cidades do país, existindo em São Paulo desde 2002. Estas reconhecem territórios populares como parte integrante da cidade e propõem a garantia da permanência da população, com melhorias na qualidade de vida, ou reservam terra para a produção prioritária de habitação de interesse social, reconhecendo a luta histórica da moradia no país.

As ZEIS, em geral, são de dois tipos: as “ZEIS de urbanização e regularização”, ocupadas por assentamentos precários ou pela prevalência de formas populares e não proprietárias de ocupações, como cortiços, pensões e ocupações em, que seriam reconhecidos pelo direito de permanecer, urbanizados e regularizados de forma participativa e democrática. E as “ZEIS de áreas ociosas ou vazias”, geralmente marcadas em regiões com boa infraestrutura, baseadas na ideia de que intervir sobre as regras que definem uso e ocupação do solo (zoneamento) poderia operar no sentido de ampliar o acesso à terra para populações que não encontram esta possibilidade no mercado.

O plano diretor municipal de São Paulo vigente, de 2014, prevê nas ZEIS ocupadas por população de baixa renda (ZEIS 1 e ZEIS 3) que é obrigatório formar conselho gestor para aprovar o plano de urbanização. Já publicamos aqui uma nota técnica com pesquisa que avaliou que os conselhos gestores de ZEIS têm sido implementados para aprovar planos elaborados antes mesmo de sua formação. Eles só são constituídos pela Prefeitura quando há um projeto pré-definido, que implica em remoções, como uma etapa formal necessária para validar um projeto elaborado unilateralmente e fazer a gestão das remoções, e das formas de atendimento habitacional emergencial, quando existem.

Através desta prática o sentido próprio das ZEIS é esvaziado, uma vez que não se garante, por meio da instituição de seu Conselho Gestor, a proteção dos moradores contra projetos unilaterais de remoção, e a sua participação, através de seus representantes, na construção de projetos que efetivamente correspondam às necessidades de quem mora nessas áreas (Nota técnica, 2022, pg. 7).

Durante o debate público da revisão do Plano, movimentos de moradia, advogados populares e urbanistas lutaram para serem incluídos dispositivos que explicitamente fortaleçam os Conselhos Gestores de ZEIS, corrigindo estas práticas.

Entretanto, este Substitutivo faz exatamente o contrário, ao permitir agora oficialmente processos como este, trocando o termo “Plano de Urbanização” por “Plano de Ação Integrada” (ver alteração art. 48, § 4º).

Experiências recentes da implantação da PPP habitacional municipal em ZEIS 1 (Lotes 7 e 12) mostraram que o “Plano de Urbanização” tem sido substituído por “plano de intervenção” (ou expressões análogas) cujo conteúdo em vez de partir da hipótese da urbanização e regularização, define intervenções como a implantação de parques lineares, equipamentos públicos ou mesmo empreendimentos não residenciais, que vão além daquelas destinadas à urbanização e regularização fundiária e ameaçam a população de remoção, não garantindo sua permanência. Como é o “Plano de Urbanização” que está claramente vinculado à garantia da permanência da população moradora (ver art. 51 do PDE de 2014, incisos XI e XII e Portaria SEHAB 146/2016), sem este termo esta vinculação se perde.

O Substitutivo também deixa brechas para que o conselho gestor nem venha a ser implementado, seja dispensado (ver alteração do art. 48 do PDE, § 5º), tirando completamente o poder de decisão sobre o processo e a transformação urbana desejada dos moradores destes territórios! Ao invés da previsão atual – que exige a instalação do Conselho Gestor antes da elaboração do plano de urbanização, que por ele deve ser aprovado –, o Substitutivo diz que o poder Executivo irá regulamentar por decreto (e não por lei, e sem debate público) as situações em que será obrigatória a instituição do conselho, podendo, inclusive, unilateralmente, considerar que estes não sejam necessários!

Esta regulamentação também trará regras para sua composição e funcionamento. Ou seja, ele pode não ser montado; pode se dar depois de um plano elaborado sem a participação dos moradores; pode ter uma composição não equilibrada entre poder público e moradores afetados pelo plano; e se criado, pode tornar o conselho consultivo e não deliberativo. É uma ameaça evidente ao processo democrático de planejamento das ZEIS!

Além disso, o Substitutivo inclui a possibilidade do “Plano de Ação Integrada” abranger zonas distintas de ZEIS (ver alteração do art. 50 do PDE, § 3º ao § 5º), ou seja, pode ser mais (ou menos) amplo que a zona demarcada, incorporando áreas que não são ZEIS. No texto apresentado não há critérios para esta expansão de perímetro. Quem acompanhou as críticas ao Lote 12 da PPP Habitacional Municipal sabe que o atendimento de algumas famílias foi sugerido que ocorresse em uma área há cerca de 5 km da área ocupada. E ZEIS justamente é uma zona que deveria garantir a permanência no local para quem mora. Alterar o perímetro pode vir a anular o efeito inclusivo das ZEIS!

E ainda, o Substitutivo propõe que os parâmetros urbanísticos das ZEIS sejam definidos no Plano de Ação Integrada e formalizados por decreto, e não em lei. Novamente, assistimos a mais uma tentativa de fixar parâmetros sem aprovação em lei. No caso dos parâmetros do Plano de Ação proposto pelo Substitutivo, eles deverão ser definidos pela Comissão de Avaliação de Empreendimentos de Habitação de Interesse Social (CAEHIS). Além de soar estranho uma Comissão que aprova empreendimentos passar a dar parâmetros de uso e ocupação do solo em projeto de urbanização, esta proposta levanta a hipótese de que estamos à frente de planos que envolvem a construção de novos empreendimentos, ou seja, o pressuposto é que as formas de morar atuais serão removidas para dar lugar a novos empreendimentos.

Em suma: as alterações previstas permitem que planos sejam elaborados sobre áreas ocupadas – sem a participação dos moradores, pois o poder público pode dispensar a formação dos conselhos gestores nas ZEIS ocupadas –; e de cima para baixo, incluindo conteúdos que não são de urbanização e regularização, que ameaçam remover a população e não garantem a permanência dos moradores. Ou ainda, que as ZEIS possam ter perímetros flexíveis, que podem ser mais amplos que a zona ou descontínuos e longe dela, podendo ofertar solução de moradia para a população longe de onde ela mora.

E finalmente que as ZEIS podem ter seus parâmetros alterados, e virem a ser zonas liberadas para o mercado imobiliário financeirizado, através de projetos urbanos cujos parâmetros serão definidos num “Plano de Ação Integrada”, instituídos por decreto. Este é, sem dúvida, um enorme retrocesso para as lutas históricas das favelas e ocupações.

 

(*) Vitor Inglez é advogado associado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e pesquisador do LabCidade; Paula Freire Santoro é professora doutora da FAUUSP, pesquisadora do programa sabático do IEAUSP e coordenadora do LabCidade; Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do LabCidade e Débora Ungaretti é doutoranda pela FAUUSP e pesquisadora do LabCidade.

 

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