População abraça terreno onde Grupo Silvio Santos tenta construir três torres residenciais (Foto: Jennifer Glass/Teatro Oficina)

Por Luanda Villas Boas Vannuchi*

O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do estado de São Paulo (Condephaat) apreciará novamente, na próxima segunda-feira, o pedido de aprovação de um grande empreendimento imobiliário ao lado do Teatro Oficina, no bairro do Bixiga, centro de São Paulo. O projeto prevê a construção de três torres de quase trinta andares em um terreno de 11.000 m², dentro da área envoltória protegida de cinco bens tombados pelo próprio Condephaat: a Casa da Dona Yayá, a Escola de Primeiras Letras, o Castelinho da Brigadeiro, o Teatro Brasileiro de Comédia e o Teatro Oficina.  

Já abordamos esse caso no observaSP há cerca de dois anos, e seu enredo merece ser atualizado frente os novos avanços do mercado imobiliário, a emergência de novas resistências naquele território e a atuação polêmica dos órgãos de patrimônio, que parecem patinar entre seu dever de proteger, valorizar e divulgar os bens tombados, e uma pressão política do poder executivo para aprovação veloz de novos empreendimentos.

Saiba mais:  

Na época em que os posts foram escritos, em 2016, o Condephaat havia dado decisão contrárias às torres, considerando a importância de preservar a visibilidade e o destaque dos bens tombados. Com a negativa do Conselho, caberia ao proprietário elaborar um novo projeto, com gabarito mais baixo, adequado às características do bairro, que levasse em consideração os bens tombados e a garantia de sua ambiência urbana. O Grupo Silvio Santos, proprietário do terreno, recorreu da decisão.

Paralelamente, nessa mesma época, o governo do estado interviu no Condephaat, mudando  sua composição; foi ampliada a participação dos órgãos públicos, o que reduziu o impacto dos votos da sociedade civil, como as universidades e as entidades de classe. Sob a justificativa de oferecer ao conselho maior qualificação técnica, a mudança possibilitou um monopólio dos representantes do governo do estado sobre as decisões e um maior enviesamento político. Assim, quando o processo relativo ao terreno no Bixiga voltou à votação no final do ano passado, a aprovação foi garantida pelo conselho. Aquilo que o Condephaat antes havia julgado necessário proteger foi liberado pelo novo Condephaat.  

Por que o processo vai novamente para votação na segunda-feira, então? Porque entre sua primeira recusa e essa controversa aprovação, o Iphan, órgão federal de proteção ao patrimônio, também recusou o projeto, forçando o grupo imobiliário a apresentar algumas  alterações. Ou seja, o projeto que foi recusado e depois aprovado pelo Condephaat, foi também recusado pelo Iphan. Com as alterações realizadas, o Iphan liberou o projeto. Agora, o empreendimento editado precisa passar novamente por votação no Condephaat. Mas a situação é complexa e envolve uma série de interesses, como veremos adiante.

São três camadas de tombamento que limitam as possibilidades de intervenção naquele terreno: municipal (Conpresp), estadual (Condephaat) e federal (Iphan). O tombamento de cada um desses órgãos tem sua especificidade, aspecto importante conhecer para compreender o caso.

Para o Condephaat, cinco bens tombados, mencionados no início deste texto, têm suas áreas envoltórias incidindo sobre o terreno, e essas áreas são delimitadas justamente para garantir a proteção do patrimônio, o que significa que qualquer projeto proposto dentro desse perímetro deve ser analisado a partir da interferência que ele pode ter nessas edificações.

Pelo Iphan, o único bem protegido é o Teatro Oficina, tombado como bem histórico e bem artístico e que segundo seu tombamento também deve ter área envoltória protegida. A regulamentação dessa área, no entanto, se deu já sob pressão da aprovação do empreendimento, e determinou a proteção de uma faixa de apenas 20 metros a partir do janelão de vidro de 150 m2 do Teatro Oficina, o que nem de longe é suficiente para proteger a obra da arquiteta Lina Bo Bardi. Sem a regulamentação do gabarito e da volumetria do que poderá ser construído no entorno do teatro, a pequena distância estabelecida não garante a visibilidade e a ambiência do bem tombado. Ao contrário, simulações realizadas com o projeto proposto mostram como as torres poderão sombrear e comprimir o teatro, escondendo-o.  

Por fim, mas não menos importante, está o tombamento do Conpresp. Seu regramento é amplo e complexo, abrangendo não apenas uma longa lista com 1089 edificações de inegável valor arquitetônico e histórico — um terço de todos os imóveis tombados na cidade de São Paulo —,   mas também uma visão abrangente quanto à importância de proteger as características originais do bairro. Aí incluem-se: o traçado e o parcelamento do solo; elementos estruturadores do ambiente urbano, como ruas, praças, escadarias e largos; a conformação geológica de certas áreas; a ocupação do bairro com sua mescla de uso residencial, cultural, comercial e de serviços; a população residente e a vocação turística.

A abrangência e o detalhamento desse tombamento seriam suficientes para garantir uma negativa ao projeto das torres, se a avaliação fosse feita por um conselho determinado a cumprir sua função de proteger o patrimônio público e preservar as feições mais importantes de um bairro fundamental para a história de São Paulo. Mas o Conpresp parece estar tão aparelhado politicamente quanto o Condephaat.

O aparelhamento dos conselhos foi amplamente divulgado em meados de 2017, quando uma grande leva de negativas em processos de tombamento e de liberações de projetos potencialmente nocivos aos bens tombados levantou a suspeita de que pressões políticas estariam influenciando decisões que deveriam ser técnicas. Nesse mesmo período, dois conselheiros representantes do Instituto  dos Arquitetos do Brasil (IAB) renunciaram às suas cadeiras no Conpresp, afirmando que seu trabalho não tinha sentido em um conselho que descartava estudos técnicos e evitava discussões aprofundadas em nome de decisões aceleradas. A ordem de “liberar geral” nos órgãos de patrimônio chamou a atenção do Ministério Público e alguns casos foram judicializados, como o do Complexo do Anhembi.

No caso do terreno do Bixiga, a análise técnica também tem dado espaço ao jogo político. Todos os pareceres emitidos pelo Departamento de Patrimônio Histórico da prefeitura (DPH), até hoje, foram contrários à construção das torres. Porém, a maior parte do Conpresp, na composição atual, tem se manifestado abertamente em favor do projeto. A votação ainda não ocorreu, graças à mobilização de grupos contrários ao empreendimento. Depois de uma sequência de reuniões conturbadas, o conselho optou por aguardar o parecer final do Iphan antes de votar, considerando que seria inócuo adotar qualquer posicionamento divergente. Essa decisão é, no mínimo, curiosa, e pode ser indicativa do pouco conhecimento dos conselheiros sobre seu objeto, uma vez que os tipos de tombamento são absolutamente diferentes. Relembrando, o Iphan protege apenas o Teatro Oficina e o seu entorno imediato, enquanto o tombamento do Conpresp abrange um amplo perímetro do bairro no qual está o terreno.

Todo esse imbróglio chega agora a um momento crucial. A votação do Condephaat acontecerá na próxima segunda-feira. O Teatro Oficina entrou com recurso contra a decisão favorável do Iphan às torres, e a resposta deverá vir nos próximos dias. Depois disso, será a vez do Conpresp voltar a discutir o assunto.

A população está de olho. Se nos anos anteriores a mobilização contrária à construção de empreendimentos naquele terreno esteve concentrada na ameaça ao Teatro Oficina, esse já não é mais o caso. Desde o ano passado, moradores do bairro e outros grupos voltados à cultura, ao meio ambiente e à proteção do patrimônio histórico e arquitetônico engrossaram a mobilização contra o empreendimento, formulando a visão de que o Bixiga é um bem comum da cidade, que precisa ser protegido da sanha de um mercado imobiliário que se pauta apenas pelos desejos de rentabilidade dos investidores.

Foram vários atos realizados pela cidade ao longo dos últimos meses, inúmeras reuniões de bairro e articulações com movimentos e parlamentares. Para além da recusa às torres, nasceu dessa articulação um projeto ambicioso: a criação de um parque público no terreno, o Parque do Bixiga, a única área livre em um bairro tradicional, popular, densamente habitado, carente de espaços públicos e de áreas verdes e onde, ademais, corre um rio soterrado, o rio Bixiga. O Projeto de Lei propondo sua criação (PL 805/2017) já tramita na Câmara dos Vereadores de São Paulo desde o final do ano passado. Três tombamentos e a força de uma comunidade podem e devem, sim, garantir a proteção um bairro.

*Luanda Vannuchi é geógrafa, mestre em estudos urbanos pela Vrije Universiteit Brussel e doutoranda em Planejamento Urbano na FAUUSP.