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Que modelo de transformação as operações urbanas estão construindo? Ilustração: Luisa Kon

Por Pedro Lima* e Paula Santoro**

Este texto refere-se à pesquisa de iniciação científica desenvolvida por Pedro Lima, com bolsa FAPESP, sob orientação da profa. Paula Freire Santoro, no LabCidade FAUUSP, junto ao observaSP.

O planejamento do território através das parcerias público-privadas, as PPPs, tem sido proposto como principal ou talvez a única alternativa para intervenção em áreas urbanas face à crise de financiamento público. Neste sentido, as Operações Urbanas, uma modalidade de PPP, foram escolhidas nas últimas duas décadas em São Paulo como principal instrumento urbanístico para viabilizar intervenções em uma parcela do território em que se pretende realizar substituições de formas e usos urbanos, bem como intervenções urbanísticas estruturais para esta transformação.

Muito já foi escrito sobre as experiências de implementação deste instrumento. Grande parte das críticas acadêmicas admite a dificuldade de promoção de interesses públicos de forma prioritária. As Operações Urbanas parecem estar sempre sujeitas à lógica de determinados interesses privados – especialmente do capital imobiliário e financeiro –, reforçando a concentração de investimentos e infraestruturas, e a supervalorização de algumas regiões da cidade.

Isso porque o instrumento funciona com a arrecadação de recursos, para o Poder Público, por meio da venda de potencial construtivo adicional, necessário aos empreendedores para a construção de edifícios maiores e mais altos. Esses recursos são arrecadados em determinado recorte da cidade, o perímetro da Operação, e só podem ser investidos em obras dentro desta mesma região. Se por um lado, o investimento público em um lugar fica condicionado à atuação do mercado imobiliário, as gestões, como veremos, enxergam com bons olhos sua utilização como instrumento de recuperação da valorização da terra.

A OUC Água Branca surgiu em 2013 como revisão de uma Operação Urbana que vigorava há quase 20 anos na região, sem promover transformações consideráveis em seu perímetro. Mesmo após a consolidação das críticas, este instrumento foi mantido porque os gestores consideraram que, incorporado o mecanismo dos Cepacs – Certificados de Potencial Adicional de Construção, que antecipam a arrecadação -, operação urbana poderia continuar sendo uma possibilidade de financiar intervenções, e que se bem desenhada, poderia regular a atividade imobiliária e direcionar os recursos arrecadados para a implementação de interesses públicos e garantia de direitos.

Nossa pesquisa de iniciação científica intitulada “Desafios e perspectivas de utilização do instrumento Operação Urbana Consorciada para a produção de habitação de interesse social“, se propôs então a observar as implicações destas mudanças e se, de fato, as reformulações do instrumento são perspectivas positivas para concepção, planejamento, gestão e financiamento de intervenções em habitação de interesse social e para a promoção do direito à moradia e a permanência das populações mais vulneráveis. Esta pauta é importante porque tem se mostrado um dos principais nós das operações urbanas, no sentido da promoção de interesses públicos.

Com um ano e meio de trabalho, percebemos que ocorreram avanços significativos propostos nesta Operação, mas que estes precisam ser relativizados à luz dos impasses observados na sua implementação e, sobretudo, quando buscamos compreender os entraves intrínsecos à lógica de funcionamento das Operações Urbanas. Assim, identificamos que a OUCAB:

Possui grupo de gestão democrático, paritário e deliberativo
O Grupo de Gestão diversificado e eleito de forma direta, como previsto na Lei da Operação Urbana Consorciada Água Branca, é uma instância de controle social que se contrapõe à tradição centralizadora e seletiva das intervenções urbanas em São Paulo. Ao menos em tese. Neste espaço, nossa pesquisa conseguiu levar leituras e propostas ao debate. O diálogo que estabelecemos junto aos representantes da sociedade civil organizada do Grupo de Gestão foram muito importantes para o acompanhamento, a resistência e a construção de alternativas.

Prevê reserva de recursos para habitação
Em oposição à lógica de construção de grandes infraestruturas não prioritárias, rodoviaristas e com intenção de atratividade ou suporte ao desenvolvimento imobiliário, que tem sido o principal legado das Operações Urbanas, a OUC Água Branca inova ao trazer metas de atendimento e, sobretudo, reserva de 22% dos seus recursos para habitação social. Algumas propostas para esta pauta estão incluídas num programa de obras reformulado, com diretrizes, objetivos e metas melhor determinados e mais diversificados que na operação anterior.

Mas não tem projeto urbano
É verdade que há um programa de intervenções que vai além de um conjunto de obras viárias, mas os poucos parâmetros urbanísticos e a lista de obras propostas não parecem ser suficientes para enfrentar a complexidade deste lugar e seus processos históricos de ocupação. O solo pouco parcelado, mas com grandes áreas de propriedade pública; a baixa densidade (construtiva e populacional) e a ruptura do tecido urbano imposta pelas infraestruturas de mobilidade historicamente implantadas, que resultam em ausência de vida urbana e em espaços fragmentados; as mudanças de usos relacionadas à reestruturação produtiva; e o conflito de escalas – local e metropolitana – destes usos e das infraestruturas implantadas exigem um projeto urbano para este lugar que extrapole a simples definição de alguns parâmetros de uso e ocupação do solo e uma lista de intervenções pouco articuladas. Não conseguimos enxergar isso como um projeto urbano consistente.

Nem um plano de habitação
Um dos pontos que reforça esse argumento é o fato de que a Operação não contem um planejamento habitacional. Isso mostra que a OUC Água Branca, assim como as demais, continua tratando na prática a pauta habitacional como coadjuvante – em um território central, de caráter metropolitano, oportuno para adensamento populacional, e com várias situações de necessidade habitacionais.

Verificamos, através de uma leitura alternativa, que a lei da Operação não reconhece todas condições de necessidade habitacional, sequer todas as favelas já mapeadas pela Secretaria Municipal de Habitação. A omissão dificulta a elaboração de estratégias de atuação, já que seria muito importante, além de produzir novas unidades, a urbanização de favelas, regularização fundiária, reforma de conjuntos habitacionais, e atuação em cortiços preexistentes, como possibilidades de garantir localização para a população de baixa renda em regiões potencialmente de mercado aquecido. E também o dimensionamento de uma meta numérica coerente. A meta de 5 mil atendimentos habitacionais colocada em lei é insuficiente mesmo para as necessidades internas da área da Operação, portanto não foi embasada em um quadro de necessidades habitacionais reais. É muito mais uma construção política e consensual do que técnica.

Porém, há terra pública ou reservada em Zonas Especiais de Interesse Social, as Zeis, para as quais fizemos ensaios de possibilidades de produção habitacional. Os ensaios mostram que este banco de terras virtual é fisicamente suficiente para enfrentar o déficit do território e quem sabe atrair novos moradores para a região. Os desafios estão relacionados, portanto, ao desenho do instrumento Operação Urbana Consorciada, cujos mecanismos têm sido pouco compatíveis com seu discurso, e com as soluções habitacionais necessárias.

E o que se fez, afinal, até agora?
Ainda não se conseguiu induzir a produção habitacional via mercado na OUC Água Branca, apesar da reserva de terra em Zeis, e da reserva de recursos arrecadados para compra de terras. Possivelmente isso se deu em função da falta de recursos financeiros suficientes, uma vez que a Operação arrecadou muito pouco no seu primeiro leilão de Cepacs; pela estruturação da política com base no Programa Minha Casa Minha Vida, cujas iniciativas tardaram a chegar; ou ainda, pela ausência de outros instrumentos com este fim, como a Cota de Solidariedade, que obriga a produção de HIS em grandes empreendimentos.

De todo modo, algumas iniciativas relacionadas à habitação foram iniciadas, todas promovidas pelos agentes públicos. Desde o início desta fase da Operação, projetos habitacionais estão sendo discutidos, destacando-se a importância de sua implementação em área valorizada e bem localizada. O que é um ponto positivo, já que na primeira versão da OUCAB e em operações urbanas precedentes, essa pauta não teve espaço no começo nem em nenhum outro momento.

Uma das iniciativas foi o início de parte da reforma emergencial dos conjuntos habitacionais, conquistada pela Comunidade Água Branca, utilizando os recursos reservados para habitação de interesse social. A outra foi a realização de um concurso de projeto urbanístico para o Subsetor A1, terreno público hoje ocupado pela Companhia de Engenharia de Tráfego – CET, com previsão de no mínimo 1.385 unidades habitacionais de interesse social. Está prevista uma transformação importante para esta área, com substituição de usos institucionais e morfologias de baixa densidade que podem se reorganizar, por um bairro com usos urbanos diversificados – comércio, espaços públicos e institucionais e moradia, em atendimento à demanda das favelas do Sapo e Aldeinha, removidas há mais de cinco anos.

Mas o modelo adotado ainda pouco enfrenta os principais desafios que estão colocados para a política habitacional. A quantidade de unidades prevista é pequena em relação às grandes dimensões do terreno. Além disso, ainda é incerta a demanda de todas estas unidades, sendo este assunto tratado sempre como algo a parte do projeto urbano. As propostas não conseguem apontar muitas alternativas de acesso, concepção, produção e gestão do espaço, tendendo a cair fatalmente nos mesmos resultados das políticas habitacionais tradicionais, com todos os seus problemas. A discussão sobre o projeto tem acontecido em espaços formais de participação, embora muito enfraquecidos frente ao esforço constante pela concretização rápida, que atropela processos naturalmente mais difíceis de entendimento, debate e construção coletiva.

Uma operação urbana não avança sem dinheiro
O fracasso financeiro do primeiro leilão de CEPACs, porém, impossibilita que a reforma emergencial dos conjuntos seja integral e que o plano de urbanização do Subsetor A1 seja mais que um projeto ou uma obra incompleta. Se a Operação não vende potencial construtivo, não tem dinheiro, e, portanto, não consegue se concretizar. Assim, os poucos recursos arrecadados mantêm, pelo menos a princípio, a condição de incapacidade desta Operação em promover mudanças estruturais no território, sejam elas quais for.

E, ainda, isso nos permite cogitar que as alterações promovidas nesta Operação e suas perspectivas positivas podem funcionar de forma a bloquear sua capacidade de arrecadação de recursos e, consequentemente, de viabilizar as intervenções previstas para a transformação urbana. Em um momento de desaquecimento da economia e havendo outras opções, por que o mercado optaria por uma região relativamente deslocada de seus vetores de maior interesse e onde os valores gastos com potencial construtivo podem ser investidos em habitação social nas proximidades e estar sujeitos aos debates de uma instância presente de controle?

O problema está no instrumento
Embora haja avanços, o estudo de caso da Água Branca, mais recente OUC implantada em São Paulo, não dá evidências que consigam nos convencer da capacidade real das operações urbanas para a promoção de um desenvolvimento urbano que garanta não somente rentabilidade, mas direitos, especificamente a realização de uma política habitacional consistente, inclusiva e diversificada. As pautas de resistência, em prol principalmente da habitação, as modificações introduzidas pela nova lei e a gestão não avançaram com força suficiente para reverter a subordinação do projeto ao mercado. E, neste caso, onde avançam, podem estar engessando o mecanismo único de arrecadação, explicitando as contradições do instrumento.

Nossa crítica, no entanto, não é especificamente à regulação do mercado em prol do interesse público ou da produção habitacional, nem à escala dos projetos urbanos. Pelo contrário. O que precisam ser estudados, questionados e revistos são os instrumentos pelos quais estes projetos são implementados e suas consequências sociais e territoriais. A fragmentação do território, o modelo hegemônico de cidade-empresa e de mercantilização dos processos de projeto, produção, ocupação e decisão no espaço são mesmo a única alternativa possível para o desenvolvimento urbano? Insistir nesses moldes continua levando a caminhos conhecidos: ou a inércia resultante do fracasso financeiro ou a construção especulativa de lugares.

O relatório com as discussões completas do trabalho, de julho de 2014 a dezembro de 2015, está disponível aqui, dentro da biblioteca de textos do LabCidade FAUUSP.

* Pedro Lima é estudante de graduação do curso de arquitetura e urbanismo da FAUUSP, bolsista de iniciação científica no LabCidade FAUUSP e integra a equipe do observaSP.

** Paula Santoro é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAUUSP) e uma das coordenadoras do observaSP. É também representante da sociedade civil no Grupo de Gestão da OUCAB.