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Ilustração: Mathews Vichr Lopes

Por Luanda Vannuchi*

comentamos aqui sobre a polêmica inclusão da Ponte Raimundo Pereira Magalhães, a Ponte de Pirituba, entre as obras prioritárias da Operação Urbana Consorciada Água Branca (OUCAB). Algumas audiências já foram realizadas para discutir o assunto – a última, em 27 de janeiro – e um Decreto de Utilidade Pública que prevê a desapropriação de 18.727 m2 para as obras da ponte foi publicado no Diário Oficial no dia 4 de novembro do ano passado.

Nas duas audiências realizadas sobre a obra, a apresentação do projeto pelo diretor da SPObras, Ricardo Pereira da Silva, foi sucedida por um debate entre os participantes com foco principalmente no traçado da ponte e suas consequências para o tráfego em ambos os lados do Rio Tietê. Moradores da Lapa defendem a implantação de uma alça de acesso à ponte, de forma a distribuir o fluxo dos veículos e diminuir o impacto sobre o bairro. Mas em meio às discussões, ao serem apresentadas as áreas que deverão ser desapropriadas para a execução do projeto, um detalhe um tanto curioso passou despercebido: as obras da ponte vão desapropriar uma pequena faixa do terreno do Tietê Plaza Shopping.

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Traçado da ponte apresentado pela SP Obras em Audiência Pública em 4 de dezembro de 2014. Fonte: Prefeitura Municipal de São Paulo, 12/2014.

Esse detalhe é curioso porque traz à tona o debate sobre a implantação deste shopping, inaugurado em dezembro de 2013, e o viário da região.

Em 2012, quando o projeto do Tietê Plaza Shopping foi aprovado, havia a expectativa, entre os moradores da região, de que nas obras demandadas para mitigação do impacto gerado pelo empreendimento (que é um Polo Gerador de Tráfego) poderia entrar parte dos custos da Ponte de Pirituba, ou pelo menos a elaboração do seu projeto.

Naquela época, o trânsito já era considerado congestionado nas principais vias de acesso à Pirituba, e análise da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) havia apontado que o novo empreendimento atrairia cerca de 20 mil pessoas por dia, criando aumento de fluxo nas vias do entorno com grande potencial para engarrafar ainda mais o bairro.

Esse impacto é também potencializado pelos vários empreendimentos imobiliários que brotam na região, como o Portal dos Bandeirantes, do outro lado da Av. Raimundo Pereira de Magalhães, o maior condomínio fechado do município de São Paulo, com 27 torres e cerca de 12 mil moradores.

Com o relatório técnico elaborado pela CET, a Secretaria Municipal de Transportes emitiu a Certidão de Diretrizes, documento em que constam os parâmetros a serem seguidos no projeto do empreendimento e as melhorias viárias necessárias para sua aprovação. Só que as melhorias exigidas foram afinal obras menores, como alargamento de trecho da Av. Raimundo Pereira Magalhães e implantação de barreiras, sinalizações, semáforos e câmeras de monitoramento – todas obras que, como o próprio Relatório de Impacto de Vizinhança (RIV) descreve, visam aperfeiçoar o acesso ao próprio empreendimento.

Agora, a ponte será construída com recursos advindos da Operação Urbana Consorciada Água Branca, o que por si só já é bastante questionável, já que ela está a cerca de 3 km de distância do perímetro de intervenção da operação. E com as desapropriações programadas, agora é a Prefeitura que terá que ressarcir o shopping, pois uma faixa estreita do seu terreno será utilizada justamente para outro alargamento da Av. Raimundo Pereira Magalhães.

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Faixa para desapropriação no entorno do Shopping Tietê Plaza. Fonte: Prefeitura Municipal de São Paulo, 12/2014.

Este desencontro entre a expectativa dos moradores, as necessidades criadas pelo impacto cumulativo de tantos empreendimentos e as obras de fato realizadas coloca em pauta os diferentes instrumentos existentes para obrigar os entes privados a se responsabilizarem pelos impactos urbanísticos dos empreendimentos que produzem.

A Lei Municipal 15.150/10 dispõe sobre os procedimentos para a aprovação de projetos e para a minimização de impacto no sistema viário decorrente da implantação de edifícios e atividades consideradas Polos Geradores de Tráfego (PGT). Enquadram-se como PGT edificações com determinada área ou capacidade, ou determinado número de vagas para carros. Nestes casos, a CET faz um prognóstico da demanda futura de tráfego, analisa a situação atual no local e então recomenda, por meio da Certidão de Diretrizes, as medidas mitigadoras de impacto que deverão ser realizadas para aprovação do empreendimento. É importante ressaltar que estas obras não podem custar mais do que 5% do valor total do empreendimento, o que dificulta, por exemplo, que uma obra grandiosa como a Ponte de Pirituba possa ser inteiramente financiada apenas pelo shopping.

O Estudo e o Relatório de Impacto de Vizinhança (EIV/RIV), por sua vez, são instrumentos de política urbana usados para reduzir ou compensar os impactos negativos gerados no entorno de grandes obras e de atividades geradas por elas. Em São Paulo, deveriam ter sido regulamentados por lei, como prevê o Estatuto da Cidade, mas foram regulamentados pelo Decreto 34.713/1994, e alterado por dois decretos posteriores, de 1996 e de 2006.

A atual regulamentação enquadra os empreendimentos de acordo com seu uso e área construída computável, não considerando os impactos cumulativos (o que cria uma brecha para que os proprietários dividam seus terrenos para não terem que apresentar o estudo), e ainda isenta de elaboração de EIV/RIV os empreendimentos em área de Operação Urbana Consorciada, geralmente os mais impactantes, por terem flexibilizados os limites previstos pelo zoneamento.

Desde 2011, tramita na Câmara Municipal o PL 414 que pretende atualizar a regulamentação do instrumento. Enquanto isso, entre os críticos, a avaliação é de que, da forma como estão, os EIV-RIV não realizam satisfatoriamente o que se propõem, criando um verdadeiro vazio jurídico em torno desses instrumentos. O caso do Tietê Plaza Shopping é um tanto emblemático de que os EIV/RIVI talvez não estejam mesmo funcionando tão bem.

Em 2012, o Ministério Público (MP) investigou o tal shopping por licenciamento irregular. O empreendimento havia sido isentado de EIV/RIV porque sua área computável era de 59.973,36 m2, ou seja, 29,64 m2 menor do que o limite previsto para a obrigatoriedade do estudo, que é de 60 mil m2. O MP acabou recomendando a elaboração do EIV/RIV, que foi entregue em setembro de 2013, apenas três meses antes da inauguração do empreendimento e mais de dois anos depois da emissão da Certidão de Diretrizes, quando as obras já estavam praticamente concluídas.

E quais foram as medidas propostas para mitigação do impacto negativo do shopping center no trânsito local? Aquelas mesmas que já constavam na Certidão de Diretrizes de 2011. E isso não é de espantar se considerarmos que este estudo e relatório de impacto foram realizados por uma empresa contratada pela construtora responsável pelo empreendimento. Não é por acaso que as análises que ali aparecem beneficiam a construtora.

Em síntese, num primeiro momento o impacto do shopping não foi devidamente considerado na formulação das medidas de contrapartida, e as obras exigidas pela CET beneficiavam principalmente o acesso ao próprio shopping. Num segundo momento, o EIV/RIV foi elaborado, mas mesmo com um estudo mais detalhado, não trouxe novas exigências com relação ao tráfego – o shopping foi inaugurado sem ter que realizar obras extras àquelas previstas antes da sua aprovação.

E neste momento, a Prefeitura de São Paulo está prestes a realizar uma grande obra viária, cara, e que deve alterar dramaticamente a situação de mobilidade na região – a Ponte de Pirituba – e o shopping deve se beneficiar duplamente, por ter seu acesso melhorado e porque vai ser remunerado pela desapropriação de uma faixa de terreno que deverá dar lugar a um alargamento da Av. Raimundo Pereira Magalhães.

Qualquer empreendimento privado deve dar conta dos impactos que ele mesmo cria, e para isso é importante que existam instrumentos urbanísticos devidamente regulamentados para tanto. Nos parece que, neste caso, o impacto cumulativo de vários empreendimentos em Pirituba será sanado por uma obra da prefeitura, custeada pela Operação Urbana Consorciada Água Branca, antes mesmo de outras demandas tão ou mais prioritárias na região da Operação. Para impedir que práticas assim continuem se perpetuando nas cidades é preciso fortalecer as formas de captação de contrapartidas dos investidores para dividir os ônus – e não apenas os bônus – do desenvolvimento urbano.

*Luanda Vannuchi é geógrafa, mestre em estudos urbanos pela Vrije Universiteit Brussel e faz parte da equipe do observaSP.