Os documentos, informações e dados apresentados neste texto foram coletados através de uma pesquisa em andamento, realizada pela equipe do Observatório de Remoções, que desde 2015 tem acompanhado moradores e ex-moradores da região, em testemunhos sobre os processos de remoção. As fontes de pesquisa são informações colhidas em documentos oficiais de órgãos públicos, partilha com outros pesquisadores e conversas com moradores e ex-moradores.
Historicamente, a região da Operação Urbana Consorciada Água Espraiada (OUCAE), que conforma parte da bacia hidrográfica do córrego Água Espraiada e a área contígua a um trecho do rio Pinheiros e suas marginais, tem sido palco de conflitos e processos de remoção e, simultaneamente, cenário de investimentos públicos e privados que têm procurado transformar a região numa nova centralidade, o “cartão postal” da cidade de São Paulo, conforme têm relatado e acompanhado pesquisadores e ativistas, como por exemplo Mariana Fix, em seus livros “Parceiros da Exclusão” (2001) e “São Paulo Cidade Global” (2007).
As intervenções na região foram pautadas até o momento pelo argumento de que melhorias na mobilidade são de interesse público, coletivo e beneficiariam a cidade como um todo. A criação e ampliação da Avenida Jornalista Roberto Marinho; seus projetos de continuidade para interligação com a rodovia dos Imigrantes e a criação de um parque linear, o Via Parque; e o mais recente projeto da linha Ouro 17 do Metrô (monotrilho) são exemplos dessa primazia. O argumento da universalidade dos benefícios de investimentos em mobilidade funcionam, no caso, perversamente: como justificativa para embasar desapropriações e remoções forçadas de famílias e pessoas cuja permanência na região colide com os interesses dos vultosos investimentos privados de capital imobiliário e de infraestrutura, que vêem na área possibilidade de expansão e retorno financeiro.
Nos anos 1970, por ocasião de um projeto de anel viário, e posteriormente com a construção da Avenida Jornalista Roberto Marinho, terrenos às margens do córrego Água Espraiada foram desapropriados pelo Departamento de Estradas e Rodagem (DER), órgão do Governo do Estado de São Paulo, que se tornou proprietário dessas áreas. Após a concretização da Avenida, alguns dos imóveis previamente desapropriados foram cedidos como moradia para funcionários do DER, outros alugados e alguns lotes foram ocupados irregularmente para fins de moradia.
Em 2006, 60 lotes do DER foram doados para a Fazenda do Estado e, em 2013, esse estoque foi oferecido em leilão público pelo Estado de São Paulo em proposta de venda por licitação, ou seja, compra através do melhor preço.
Os moradores desses terreno e que não tinham relações com o DER, isto é, que ocuparam alguns lotes sem consentimento nem fiscalização do órgão, tomaram conhecimento da ação e, com o auxílio da Defensoria Pública, viabilizaram a suspensão dos leilões. Porém, para as famílias moradoras dessas áreas – conhecidas como Gabriel de Lara, Bernardino de Campos, João Alvares Soares e Arizona –, o risco da remoção continua existindo, uma vez que ainda não conquistaram a garantia da posse de suas moradias.
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Bartolomeu Feio
Mas não são apenas essas famílias que estão sendo removidas ou ameaçadas de remoção. Outras áreas de moradia irregular estão sendo afetadas pelos projetos dentro do perímetro da OUCAE.
No caso das áreas desapropriadas para construção da linha Ouro 17 do Metrô – Monotrilho, em convênio com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU), do Estado de São Paulo, as indenizações foram calculadas a partir do tempo de moradia na região e das benfeitorias feitas no imóvel. Para iniciar a obra do Monotrilho, em 2012, o Estado removeu 421 edificações. Foram identificadas e removidas: a favela do Comando, com 104 Unidades Habitacionais (UHs); a favela do Buraco Quente, com 204 UHs; áreas do DER, com 57 UHs: edificações esparsas, somando 37 UHs; e uma parte da favela do Buté, com 19 UHs.
Consultando o processo administrativo que orientou as providências adotadas pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em defesa dos moradores, percebemos que questões importantes foram colocadas pelos moradores atingidos, começando pela pressão para assinarem o acordo de indenização em dinheiro a partir do tempo de moradia e benfeitorias ou opção pelo apartamento a ser construído pela CDHU. As famílias residentes predominantemente nas favelas do Comando e Buraco Quente se organizaram e procuraram o apoio da Defensoria Pública antes de serem removidas, a fim de impedir a remoção. A CDHU garantiu reassentamento em conjunto habitacional bastante próximo à região das moradias originais, o conjunto habitacional Campo Belo A, B e C (integrando 3 edifícios de apartamentos). No decorrer do processo, algumas famílias optaram pela indenização e foram excluídas, pela CDHU, da lista de famílias a serem contempladas com moradia definitiva.
Posteriormente, em reunião com a CDHU, os moradores foram surpreendidos com uma alteração no projeto e a supressão de um dos edifícios de apartamentos que deveriam ser construídos. A justificativa para a não construção seria a falta de demanda por habitação, já que parte dos moradores terem sido indenizados, como já relatado em post anterior.
Verificam-se várias inconsistências e ambiguidades no processo. Entre elas, a falta da participação dos moradores nas decisões que os afetariam diretamente, o tipo de atendimento disponibilizado e o prazo para a sua escolha, as mudanças no projeto habitacional inicialmente garantido e a imprevisão quanto à sua concretização e entrega das chaves. O projeto habitacional ainda se encontra em processo de licenciamento. Ao mesmo tempo a obra do Metrô encontra-se em morosa evolução.
Outras favelas próximas das intervenções em curso estão na agenda pública de remoção. Os relatos de moradores revelam insegurança a partir de incêndios e despejos realizados. A favela do Piolho já sofreu uma série de incêndios e agora tenta se reerguer e resistir no bairro do Campo Belo e a favela Levanta Saia resiste ao lado do pátio de manobras do Metrô.
Na restante área da OUCAE, a jusante do córrego Água Espraiada com projetos públicos como a Via Parque e o túnel, é a Prefeitura que responde pelas intervenções.
A OUCAE é regida pela lei municipal 13260/2001, que prevê e garante o reassentamento definitivo das famílias removidas. A SEHAB (Secretaria Municipal de Habitação), em comunicado oficial à Defensoria Pública do Estado de São Paulo em 13/03/2014, garantiu que todas as famílias removidas serão reassentadas.
A SEHAB informou à Defensoria Pública ter realizado em 2009 o cadastro de 16 favelas – destas, 09 estariam diretamente afetadas nesta intervenção, ou seja, seriam removidas na sua totalidade. Na mesma fonte de informação, a Prefeitura prevê o atendimento das famílias e a construção das unidades necessárias para os reassentamentos no projeto de prolongamento da Av. Jornalista Roberto Marinho. Esse prolongamento, com previsão de implantação de parque linear, chamado de Via Parque, prevê a remoção de 8.500 famílias, e afetará, segundo informe do órgão municipal, as favelas Rocinha Paulistana, Beira Rio, Henrique Mindlin, Alba-Souza Dantas, Ponte Fonte de São Bento, Babilônia, Americanópolis, Tiquaritiba, Muzambinho, Guian Corruíras e Vietnã. Os moradores das favelas, no entanto, não foram historicamente consultados nem bem informados dos processos.
O Observatório de Remoções solicitou, via Lei de Acesso à Informação, mais informações sobre remoções e atendimentos previstos para a favela Levanta Saia e para a Rocinha Paulistana. No caso da favela Levanta Saia, a resposta que obtivemos foi pouco precisa e um tanto lacônica, pois o chefe de gabinete da SEHAB afirmou que, pelos estudos pré-remoções, 7 famílias deverão ser reassentadas de 2021 a 2024, de acordo com o Plano Municipal de Habitação; e que a favela Levanta Saia, embora incluída no perímetro da OUCAE, não está incluída para regularização. No caso da Rocinha Paulistana, a SEHAB afirmou que as remoções começaram em junho/2015 e seguem em andamento, com previsão de conclusão para o segundo semestre de 2016. Ainda com respeito a esse mesmo caso, afirmou que as famílias cadastradas pela SEHAB em 2009, com atualização de cadastro em 2015, serão atendidas com auxílio aluguel até o recebimento de sua unidade habitacional definitiva. No final de 2014, a SEHAB observou novas ocupações, que não faziam parte do cadastro original da SEHAB. Reproduzimos o informe que obtivemos pela SEHAB via Lei de Acesso à Informação: “Ficou determinado que estas novas ocupações serão atendidas com verba de Apoio Habitacional, por parte da SEHAB. O valor de R$1200,00 (mil e duzentos reais) será pago em uma única parcela, sem a possibilidade de recebimento de Auxílio Aluguel e/ou Unidade Habitacional definitiva. Além desta verba de Apoio Habitacional, foi oferecido o cadastro na demanda da COHAB”.
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Guian Corruíras
Mesmo sem a definição de atendimento para os moradores de favela, nestes trechos mencionados, é notável a existência de remoções de favelas ou parte delas, e a imprevisibilidade de atendimento por parte dos poderes públicos.
O Observatório de Remoções tem acompanhado estes processos e continua a sua pesquisa na coleta de informações e contatos com lideranças locais. Nos importa verificar e analisar como o atendimento habitacional historicamente não tem correspondido ao volume de remoções realizadas. Pairam sobre essa região, há mais de quatro décadas, uma trajetória de indenizações injustas, expulsões violentas, remoções sem processos de consulta e participação respeitosas, grandes deslocamentos de famílias e milhares de atendimentos questionáveis e provisórios. Seguimos observando esses processos e suas contra-narrativas.