BLACK FRIDAY!

Por Paula Santoro*, Leticia Lemos**, Pedro Lima*** e Raquel Rolnik****

Durante o ano passado, a Prefeitura de São Paulo se manifestou diversas vezes, por meio da imprensa, e em eventos fechados de entidades ligadas ao setor imobiliário, sobre ajustes pretendidos em relação à Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, a chamada Lei de Zoneamento (Lei Municipal no 16.402/2016). Apenas no final do ano, justamente no período de festas e durante o recesso do Judiciário, foi apresentada uma minuta de Projeto de Lei com propostas de alteração no zoneamento, com prazo para considerações até 19 de janeiro deste ano, sem que tenham ocorrido audiências públicas regionais e gerais sobre o tema, nem consultas aos conselhos municipais com representação da sociedade civil. Para que a população saiba e possa participar deste processo, que ainda deverá passar pela avaliação dos vereadores, é importante esclarecer o que está em jogo.

Com apenas um ano de idade, o zoneamento precisa ser revisto?

As razões apresentadas pela Prefeitura para alterar o zoneamento envolvem “promover ajustes pontuais” para “conferir maior aplicabilidade da lei” e “ajustá-la à cidade real”. No entanto, parte significativa das propostas apresentadas recai sobre aspectos estruturantes da política urbana definidos no Plano Diretor (Lei Municipal no 16.050/2014) e na lei de zoneamento vigente.

Grande parte destes ajustes promove uma verdadeira liquidação dos valores que o setor imobiliário deveria pagar à Prefeitura para adquirir potencial construtivo adicional. Qual o sentido de abrir mão de valores a serem obtidos a partir da atividade imobiliária se a Prefeitura precisa justamente de recursos? A realidade das áreas vulneráveis que receberiam investimentos que poderiam ser realizados por meio destes recursos fica em segundo plano em relação à “realidade” do setor imobiliário.

Como se dá esta verdadeira “Black Friday urbana”?

– Primeiro, está previsto um desconto geral de 30% no valor da Outorga Onerosa do Direito de Construir em toda a cidade. Isso significa que os empreendedores pagarão menos pelos metros quadrados de que precisam para suas construções (art. 54), e este “desconto” não vai para o consumidor das unidades à venda. Com isso, diminui a arrecadação de recursos com a venda de direitos de construir, usualmente destinados ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) para promover melhorias urbanas, especialmente em áreas de maior vulnerabilidade (algo que de fato vem ocorrendo, conforme mostramos em post anterior). Ganham os empreendedores, perdem os moradores de áreas mais vulneráveis.

– Como se não bastasse o desconto geral, há uma redução do valor da Outorga Onerosa do Direito de Construir de até 20% para incentivar a construção de “edifícios sustentáveis” ou “edifícios-conceitos”. Com isso, os descontos podem chegar a até 50% do valor que deveria ser pago pelo setor imobiliário para ocupar o permitido pelo zoneamento em vigor (art. 42). Os “edifícios-conceitos” (art. 02), uma nova categoria criada nesta minuta, permitem que prédios com floreiras arborizadas ou ajardinadas, por exemplo, recebam benefícios de terem áreas consideradas não computáveis, ou seja, que não são computadas como área construída!

Dados do Sistema Municipal de Monitoramento do Plano Diretor de março de 2017 revelam que o Fundurb arrecadou em média, nos últimos anos, aproximadamente R$ 300 milhões por ano. Isso significa que, com estes descontos, caso o comportamento do mercado se mantenha, a Prefeitura renunciará a até R$ 150 milhões por ano e, se considerarmos o prazo de vigência da lei (mais 15 anos), a soma pode chegar a valores próximos a R$ 2,2 bilhões de reais! Estudos como estes precisam ser apresentados pela Prefeitura, o que até agora não foi feito. Lembramos que esta gestão da Prefeitura utiliza justamente a falta de recursos como argumento para justificar a privatização de imóveis e serviços públicos.

– Há outra perda de arrecadação que passa quase desapercebida, relacionada com a aplicação do instrumento da Transferência do Direito de Construir. Aqueles interessados em empreender podem comprar direitos de construir diretamente da Prefeitura, através da Outorga Onerosa do Direito de Construir, ou dos proprietários de imóveis cuja transferência desses direitos é permitida, geralmente os preservados pelo patrimônio histórico e ambiental. A transferência havia sido ajustada na Lei de Zoneamento em vigor para não competir com a arrecadação da Outorga Onerosa. Com isso, o valor permitido para a transferência de direitos de construir ficou limitado a 5% do valor total arrecadado pelo Fundurb. A proposta apresentada agora é aumentar esse limite para 15%, o que, certamente, diminuirá ainda mais a arrecadação do Fundurb, pois haverá um volume maior de potencial construtivo disponível para aquisição via Transferência, fato que reduzirá as receitas com Outorga Onerosa, que alimentam este fundo.

Em termos urbanos, há também diversos retrocessos na minuta do projeto de lei apresentado, e não fica claro se há ou não avanços.

Um importante retrocesso diz respeito a uma das principais diretrizes do Plano Diretor, que é direcionar a transformação imobiliária para as áreas próximas à rede de transporte público de massa, como estações de metrô e corredores de ônibus, onde é permitido construir mais, desde que com adensamento populacional mínimo e com características urbanísticas que estabeleçam uma relação mais saudável entre os novos edifícios e o entorno.

– Para alcançar esse objetivo, o Plano Diretor aprovou (e o Zoneamento em vigor reforçou) o limite de gabarito nas Zonas Mistas e Zonas de Centralidade dos miolos dos bairros. A alteração proposta na minuta retira a limitação de gabarito nos miolos dos bairros (art. 17), possibilitando construir mais unidades longe das áreas com maior oferta de transporte, o que reduz a capacidade do Plano Diretor de orientar os processos de transformação urbana para as áreas bem-servidas de transporte.

– O Plano Diretor prevê também que sejam construídos edifícios com um número maior de unidades nos Eixos de Estruturação Urbana, através da aplicação de um instrumento chamado Cota Parte Máxima de Terreno, que estabelece um número mínimo de unidades habitacionais. A ideia é possibilitar construir mais, desde que abrigando mais gente, adensando as áreas no entorno do transporte público de massa. A minuta propõe a redução da Cota Parte e, com isso, poderemos ter menos pessoas morando em áreas com boa oferta de infraestrutura (art. 49).

– Ainda em relação à mobilidade urbana, entre as alterações propostas na minuta, mantém-se uma regra que deveria ser transitória. Trata-se da permissão para que se construa um maior número de vagas de garagem não computáveis em imóveis localizados nas áreas próximas ao transporte público coletivo de massa, os chamados Eixos de Estruturação Urbana. A proposta do Plano Diretor era justamente limitar essa regra para desestimular o uso do automóvel (art. 19), de forma a reduzir o trânsito e a poluição atmosférica.

Em relação à habitação, também há retrocessos para favorecer o setor imobiliário.

– A minuta propõe a eliminação da possibilidade de utilização da Cota de Solidariedade – instrumento que aumenta a oferta de moradia sem onerar o Estado, pois prevê que um percentual de habitação de interesse social seja construído em cada novo grande empreendimento imobiliário localizado nas áreas de Operação Urbana Consorciadas. É justamente nestes locais que tais empreendimentos têm sido implantados, diante da oferta de grandes terrenos que anteriormente eram ocupados por indústrias. E são também essas áreas, onde deve ocorrer parte significativa da produção imobiliária, que receberão investimentos públicos para a transformação urbana (art. 44). Ou seja, são áreas estratégicas para receber parte do déficit habitacional.

– Também desobriga a construção de habitação de interesse social em Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) 3, no caso de reforma de edificações regulares (art. 4). Nestas zonas, a prioridade é construir habitação de interesse social. Mas o controle do que é aprovado pelo poder público como reforma é sempre delicado. Para ficar em dois exemplos: a construção da arena Allianz Parque e, também, a do Templo de Salomão, ambos localizados em Zeis 3, foram aprovadas como reforma. É preciso ter regras mais precisas em relação às reformas para que a medida não seja utilizada como um subterfugio, como uma exceção, justamente dentro da zona onde a prioridade deve ser construir habitação para a população de baixa renda.

Outra mudança problemática é a dispensa de limite de lote máximo para shoppings, universidades e futuros hospitais. A limitação de tamanho máximo é importante para a cidade porque sua transformação urbana tem sido acompanhada da aprovação de empreendimentos muito grandes, em terrenos que são ocupados sem que sejam abertas ruas, nem passagens para ciclistas e pedestres. Isso faz com que, para circular, tenhamos que dar grandes voltas em torno destas verdadeiras “ilhas urbanas”, geralmente muradas, que criam espaços ermos e inseguros. Especialmente os pedestres são os mais penalizados. Além disso, no zoneamento em vigor, a limitação está associada a outras regras que não valeriam mais com a aprovação da minuta, como a necessidade de doar áreas para uso público, por exemplo, para a construção de ruas, entre outras.

Se há preocupação com o meio ambiente, não está evidente a motivação da proposta da Prefeitura de redução da área de abrangência da Cota Ambiental, aplicável atualmente em terrenos maiores que 500 m2. A proposta amplia o limite mínimo para 1.000 m2, reduzindo o número de novos edifícios que terão incentivos para construir tetos e fachadas verdes, mais arborizados e com mecanismos para retenção de água da chuva, essencial para a redução de enchentes em algumas regiões da cidade (art. 24).

Ainda assim, o processo participativo de discussão desta minuta apresenta um conjunto de falhas. Para além da ausência de estudos técnicos que, desde o início, justifiquem a motivação da realização desta revisão do zoneamento e das propostas apresentadas, o debate sobre o tema tem se mostrado precário. Foi feita uma consulta genérica sobre aspectos que deveriam ser ajustados, no início do processo. Os órgãos colegiados em que há participação da sociedade civil não debateram o assunto, que, muitas vezes, foi objeto de reuniões fechadas de entidades ligadas ao setor imobiliário.

O Ministério Público já se manifestou sobre a necessidade de que este processo não se dê às pressas. E recomendou que a minuta do Projeto de Lei fique disponível para consulta por mais 90 dias.

De todo modo, em tempos de crise fiscal, a renúncia de recursos obtidos com a venda de direitos de construir, com a consequente redução de investimentos em áreas de vulnerabilidade urbana, social e ambiental, e a redução da capacidade indutora do Plano Diretor são aspectos que merecem atenção da sociedade. Impactos dessa magnitude devem ser debatidos com profundidade e não podem representar exclusivamente o interesse do setor imobiliário. São Paulo não está em liquidação!

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* Paula Santoro é arquiteta e urbanista, doutora em Habitat pela FAU USP com bolsa na Universidade Politécnica da Cataluña e professora de Planejamento Urbano do Departamento de Projeto da FAU USP. Atualmente coordena o projeto ObservaSP junto ao LabCidade FAU USP. Lattes | Academia.edu

** Letícia Lemos é arquiteta, urbanista, mestra e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela FAU USP. Possui especialização em Mobilidade Sustentável em Países em Desenvolvimento pela United Nations Institute for Training and Research. Pesquisa mobilidade sustentável com foco nos modos ativos, particularmente a bicicleta, como modo de transporte urbano, e regulação urbanística e políticas públicas urbanas que influem sobre esses modos. Atualmente trabalha como pesquisadora do ObservaSP junto ao LabCidade da FAU USP. Lattes | Academia.edu

*** Pedro Lima é estudante do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP e bolsista de iniciação científica. Pesquisa as políticas habitacionais no contexto das operações urbanas em São Paulo e trabalha na produção de ferramentas de contranarrativa aos processos de reestruturação urbana. Integra a equipe do ObservaSP desde 2014. Lattes

**** Raquel Rolnik é urbanista, professora de Planejamento Urbano da FAU USP e coordenadora do LabCidade. Livre-docente pela FAU USP e doutora pela New York University, foi coordenadora de urbanismo do Instituto Pólis, diretora de Planejamento Urbano da cidade de São Paulo, secretária de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. É autora dos livros “O que é a Cidade”, “A Cidade e a Lei”, “Folha Explica São Paulo” e “Guerra dos Lugares”. Lattes