Proposta de ordenamento urbanístico, no PIU Vila Leopoldina (SP Urbanismo/Prefeitura de São Paulo)

Por Débora Ungaretti e Larissa Lacerda*

A Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) realizou, nas últimas semanas, quatro encontros temáticos para subsidiar a elaboração do Projeto de Intervenção Urbana (PIU) para a Vila Leopoldina, cuja principal entidade proponente é a Votorantim. A ideia era conseguir aprofundar o projeto em quatro frentes: plano urbanístico; estudos jurídicos e econômicos; habitação de interesse social e meio ambiente. No entanto, as discussões deixaram mais incertezas do que esclarecimentos, em especial no que tange ao atendimento habitacional das mais de mil famílias que perderão suas casas com o projeto, o que interfere diretamente nos estudos jurídicos e econômicos apresentados.

De maneira geral, a proposta de atendimento habitacional apresentada pela Prefeitura, através da SP Urbanismo, responsável pelo desenvolvimento do projeto, suprime áreas de ZEIS dentro do PIU e utiliza terrenos fora dele para construção de novas unidades. Além disso, não está discutindo o plano das ZEIS junto a um Conselho de ZEIS, como previsto pelo Plano Diretor Estratégico de 2014 (art. 48), e não mostra como será garantido o atendimento habitacional e a permanência das famílias em novas unidades ofertadas, considerando as condições de vulnerabilidade que conformam a realidade das favelas da Linha e do Nove e do conjunto habitacional Cingapura-Madeirite.

As intervenções estão sendo discutidas desde agosto de 2016, quando o braço imobiliário da Votorantim – que é dona de parte dos terrenos da área – junto com a SDI Desenvolvimento Imobiliário e o Instituto Urbem apresentaram, por meio de Manifestação de Interesse Privado (MIP), a proposta do PIU Leopoldina, numa região que fica entre o Parque Villa-Lobos e a Ceagesp. Previsto no Plano Diretor de 2014, o PIU é um projeto urbano que, combinado com outros instrumentos, permite alterações de zoneamento e regras urbanísticas em determinadas áreas da cidade.

As propostas para a área já passaram por duas audiências públicas e duas consultas públicas online ao longo desses dois anos. Mesmo assim, as famílias atingidas pelo projeto continuam sem uma alternativa habitacional adequada às suas necessidades. Sabe-se que serão construídas novas unidades, mas não se sabe se as famílias conseguem se enquadrar na política habitacional proposta. A favela da Linha, que ganhou esse nome por ter se estabelecido sobre um ramal ferroviário, e a favela do Nove, localizam-se nos arredores da Ceagesp há mais de 40 anos. De acordo com levantamento da SMUL, elas abrigam, juntas, 776 famílias. No entanto, esse número pode ser ainda maior, chegando a mais de mil famílias atingidas, conforme vêm sugerindo os moradores nos grupos de trabalho e os resultados parciais da selagem realizada pela Secretaria Municipal de Habitação (Sehab).

Há um consenso de que a urbanização das favelas enfrentaria inúmeras dificuldades técnicas e envolveria um grande número de remoções. No entanto, a única alternativa habitacional apresentada é a realocação das famílias em conjuntos habitacionais construídos pelas empresas autoras do PIU, como contrapartida por poderem usar os terrenos ocupados hoje pelas favelas e aos ganhos pelo aumento do potencial construtivo da área.

Até o momento, as discussões estão restritas à distribuição das unidades em dois terrenos: um localizado dentro do perímetro, onde seriam construídas 250 unidades, e outro situado no entorno, um terreno público da SPTrans que funcionava como garagem da CPTM – área que será compartilhada com a PPP Habitacional Casa da Família. As áreas ocupadas hoje pelas favelas, ambas demarcadas como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), seriam transformadas em ruas. Aqui, uma afronta ao Plano Diretor é a supressão destas duas ZEIS, que totalizam mais de 14 mil metros quadrados que deveriam ser utilizados para atendimento das famílias no local. E ainda, utilizam 1/3 de um terreno de uma outra ZEIS, para o atendimento que deveria acontecer sobre estes terrenos.

zeispiu

Em vermelho, o perímetro do PIU Vila Leopoldina e as áreas de ZEIS na região, com destaque para o terreno da SPTrans. (Fonte: Diagnóstico Socioterritorial/ Prefeitura de São Paulo)

Marcadas pela extrema precariedade, as duas favelas abrigam pessoas que tiram o seu sustento de bicos e trabalhos no maior entreposto atacadista de frutas e verduras do país, o CEAGESP, mas também de pequenos comércios locais dentro da favela, da renda de um cômodo ou de um barraco ou do trabalho doméstico na região. Algumas vezes, uma e outra forma ao mesmo tempo; outras vezes, nenhuma delas. Grande parte das famílias não tem estabilidade na renda familiar para arcar com os custos da moradia em outros locais – especialmente nos conjuntos habitacionais de interesse social, sobre os quais recaem parcelas de financiamento e condomínio.

A alternativa, que prevê o financiamento dos apartamentos, foi apresentada sem o levantamento das condições socioeconômicas das famílias atingidas. Como relata uma moradora da favela da Linha, muitas pessoas ali vivem em situação de grande vulnerabilidade, “vão se virando da melhor forma que dá, mal conseguem pagar a taxinha d’água”. Apesar da proposta colocada para consulta pública apontar a possibilidade de combinar locação social por autogestão com programas de geração de renda, nenhuma alternativa que não a compra das unidades foi discutida durante as reuniões.

A Sehab não tem se colocado de forma responsável pelo atendimento das famílias. Durante um dos encontros, o secretário Fernando Chucre colocou a secretaria como uma “beneficiária do empreendimento”, tal como seriam as favelas – isso porque, a construção dos novos empreendimentos habitacionais representaria um investimento que não estava previsto no orçamento. Ainda segundo Chucre, o grande problema habitacional de São Paulo é o financiamento da construção dos empreendimentos, um problema que o PIU, tal como as Parcerias Público-Privadas, podem minimizar. Dessa forma, parecia deixar claro que, sem os recursos do PIU, não faria nenhuma intervenção na área, o que claramente influenciou os moradores a apoiarem o projeto.

Ainda, grande parte dos questionamentos não foram respondidos sob a alegação de que seriam amplamente debatidos no âmbito do Conselho Gestor das ZEIS da favela da Linha e do Nove. De fato, pelas regras do Plano Diretor de São Paulo, qualquer intervenção em área de ZEIS deve ser discutida e aprovada pelo Conselho Gestor, formado por representantes dos moradores, do Executivo e da sociedade civil organizada. Contudo, até o momento, o conselho não foi constituído pela Prefeitura, o que contraria o Plano Diretor e dificulta a participação das famílias no processo. O Secretário Municipal de Habitação, endossado por representantes da SP Urbanismo, sugeriu que a constituição do Conselho Gestor seja feita apenas quando o projeto de lei que instituir o PIU já tiver sido aprovado. Além disso, colocou a preocupação de que os conselhos das ZEIS e do PIU entrem em conflito, sugerindo que seja definida uma forma de subordinação de um conselho ao outro para que isso não aconteça.

Tais questões apresentam dois riscos às famílias: o primeiro, de que a questão da moradia precise se adequar às determinações dos estudos jurídicos e econômicos, que estarão definidos em lei, sem que haja um debate real sobre as necessidades de atendimento habitacional; e, segundo, de que as decisões que venham a ser feitas no Conselho Gestor da ZEIS estejam subordinadas ao Conselho do PIU, a depender do desenho de gestão que seja definido na lei.

Soma-se a isso o fato de que o debate foi constantemente reduzido à dicotomia simplista de viabilizar ou não o projeto. Houve um tom de ameaça de inviabilização do projeto, por parte da SP Urbanismo, caso continuassem sendo discutidas medidas que pudessem colocar em risco as métricas das planilhas de cálculo de viabilidade econômico-financeira do grupo proponente. O interesse privado parecia estar no centro do debate, não o interesse público.

A discussão precisa ser aprofundada já, com a imediata criação do Conselho Gestor das ZEIS e ampla participação das famílias da favela da Linha, do Nove, e do Conjunto Madeirite.

* Débora Ungaretti é advogada, mestranda em Planejamento Urbano e Regional na FAUUSP e pesquisadora do LabCidade. 

Larissa Lacerda é socióloga, mestra em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ e doutoranda em Sociologia na FFLCH/USP. Atualmente, é pesquisadora do LabCidade.