Por Raquel Rolnik*

Paraty e uma vasta área de parques, matas e reservas que circundam seu sítio histórico receberam o título de Patrimônio Mundial da UNESCO. Passaram a ser o primeiro sítio misto do Brasil reconhecido como patrimônio mundial em função de seus excepcionais atributos culturais e naturais. Quando a UNESCO adotou a convenção que atribui a lugares do mundo este título, a tradição dita reconhecer estes sítios ou como patrimônio cultural ou natural, mas raramente ambos, como no caso de Paraty. E embora já haja localidades reconhecidas em ambas as categorias, estas ainda são poucas e exigem um processo de tramitação e análise que circula por comissões com culturas e institucionalidades muito distintas.

Esta também foi uma dificuldade que marcou a trajetória de postulação de Paraty a este título, fazendo circular nos meios técnicos e políticos brasileiros há mais de dez anos. Pensada inicialmente de forma restrita ao casario colonial da cidade, a candidatura era questionada até mesmo no interior dos órgãos de patrimônio, que contestavam a autenticidade do conjunto, um dos requisitos básicos para a postulação do título. Entretanto, a candidatura se fortaleceu quando incorporou não apenas o sítio urbano, mas dois elementos essenciais para construir a candidatura: a presença de comunidades tradicionais e de ecossistemas preservados com grande diversidade de paisagens, flora e fauna. Mas esta ampliação também implicou em um aumento dos atores institucionais envolvidos, incluindo não apenas os órgãos municipais estaduais e federal de preservação cultural, mas também aqueles ligados ao campo ambiental e o fórum das comunidades tradicionais, que normalmente atuam de forma isolada.

Na região existem dois quilombos, duas terras indígenas e 28 comunidades caiçaras dentro de um grande perímetro que envolve parques nacionais, reservas estaduais e 187 ilhas. E a preservação destes modos de vida, assim como dos locais onde estes se desenvolvem, é parte integrante das missões de cuidado que devem ser tomadas.

Segundo todas as declarações pós reconhecimento de Paraty pela UNESCO, a expectativa dos governos com a obtenção do título é ampliar o turismo e conseguir mais recursos para poder enfrentar os desafios da gestão do lugar. Por incrível que pareça, Paraty não tem sistema de saneamento, por exemplo. De fato, se tomarmos a experiência concreta de outros sítios reconhecidos como patrimônio mundial, estes têm de fato atraído mais turistas. Alguns casos são notáveis: as pequenas cidades medievais de Albi, na França, ou Lijiang, na China, viram o número de turistas explodir. O mesmo ocorreu com Dubrovnik, na Croácia. A explosão do turismo levou a administração destes lugares inclusive a restringir a visitação. Além disso, estes locais acabam se tornando uma espécie de parques temáticos, esvaziados da vida cotidiana e transformados em espaços puramente turísticos feitos de restaurantes, pousadas e lojas.

No caso de Paraty, onde a turistificação do sítio urbano já ocorreu, a expansão do turismo pode representar uma ameaça para o patrimônio natural e para as comunidades tradicionais. Este é, aliás, um dos conflitos que já está ocorrendo na região, principalmente desde que a abertura da rodovia Rio-Santos, quando o turismo de segunda residência e condomínios foi expulsando as comunidades tradicionais e devastando ecossistemas. A recente declaração do presidente Bolsonaro em relação a uma área de reserva em Angra dos Reis, de que esta deveria se transformar na “Cancún brasileira”, explicita quais poderiam ser os possíveis cenários desta expansão. Mas os conflitos não se restringem a este: as comunidades tradicionais muitas vezes também são ameaçadas pelas próprias restrições presentes nas áreas delimitadas como parques ou áreas de proteção ambiental. É urgente, portanto, e a UNESCO reconhece e prevê esse como um próximo passo, que os envolvidos na construção da candidatura imediatamente estruturem um plano de gestão compartilhada que enfrente a complexidade destes desafios.

Em tempo: pela primeira vez ocorreu a Flip Preta, no Quilombo do Campinho, com programação voltada para a cultura negra. Saiba mais aqui na notícia da EBC.

* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.