Por integrante do Coletivo Aluguel em Crise

De uma maneira geral somos condicionados a enxergar uma dualidade nos conceitos de individual e coletivo, mas eu prefiro olhar para eles como interdependentes. Em última instância uma decisão individual sempre irá tomar alguma espécie de amplitude coletiva; e toda decisão coletiva afetará de forma particular cada um dos indivíduos envolvidos. Acontece que controlar um indivíduo é muito mais fácil do que controlar um coletivo, por isso somos ensinados a buscar saídas individuais e assim vamos nos afastando das construções de espaços coletivos de luta.

É nesse contexto que pretendo inserir minha experiência individual de luta por desconto no aluguel na pandemia pois demonstra bem a interdependência destes termos na prática. A busca por saídas individuais tem seu valor enquanto forma de alívio rápido e direto na sua situação pessoal, mas se negligenciarmos a construção de saídas coletivas estaremos contribuindo para um mundo no qual todos os indivíduos tenham que percorrer os mesmos caminhos separadamente para tentar chegar no mesmo lugar. Não à toa este é o objetivo da burocracia estatal: ser um curral para tomada de decisões.

A pandemia de coronavírus, um evento completamente alheio a nossa vontade, gerou uma crise econômica global que atingiu economicamente boa parte da população, com exceção dos mais ricos e privilegiados, como sempre. No Brasil essa crise tomou proporções ainda maiores por inúmeros motivos que não caberiam neste texto. Dessa forma, tivemos nossa renda comprometida e nos vimos sem condições de arcar com a despesa que representa a maior fração do custo de vida das famílias ou indivíduos: o aluguel. O que fazer então diante de um evento inesperado como esse? Arriscar nossa vida e continuar tentando trabalhar para sustentar nossos compromissos financeiros? Fazer dívidas?

Já que iremos tratar de uma história pessoal, acho importante colocar um pouco do meu contexto de vida. Nasci em uma família de classe média no Recife e tive a oportunidade de estudar, me formar em jornalismo e até fazer uma pós graduação, mas nunca ganhei mais de R$3.000 de salário. Mesmo assim, por ser solteiro, sem filhos e prezar por uma vida simples tenho um pé de meia que uso para diversas finalidades. Esse pé de meia, por exemplo, cobriria todos os meus aluguéis que estão atrasados desde abril. Mas por que eu deveria sacrificar minhas suadas economias para pagar por uma crise que não é minha?

Hoje em dia eu trabalho como bartender em São Paulo e todo mundo sabe que os bares estão fechados por conta da pandemia. Inclusive minha mãe, que me mandava semanalmente uma mensagem perguntando se estava tudo bem e “se estiver precisando de alguma coisa me avise, viu, meu filho?”. Alguns amigos durante a pandemia vieram falar comigo, dizendo que sabiam que meus próximos meses seriam difíceis e que se eu precisasse de grana, eles poderiam chegar junto. Ou seja, mesmo se eu não tivesse minhas economias, eu poderia resolver meus aluguéis pedindo ajuda a minha mãe ou a estes amigos. Mas porque eu deveria fazer dívidas para seguir cumprindo com um contrato que não faz mais sentido?

Levanto esse breve histórico pessoal para dizer que minha escolha foi deliberada. Se meu contrato de trabalho foi suspenso e minha renda foi drasticamente afetada, eu não irei pagar por essa crise sozinho. O argumento que eu mais ouvi ao propor essa abordagem foi: mas você está usando o imóvel, precisa pagar por ele. Então a solução para essas pessoas era eu me endividar ou sair do apartamento para morar de favor. Eu nem vou entrar no mérito sanitário da questão que é deixar sua casa quando o principal meio de se prevenir da pandemia é ficando em casa, porque todo mundo entende esse argumento, mas quase ninguém quer combater de verdade o que faz ele ser relevante: a superioridade do capital sobre nossas vidas.

Algo que comprova isto é a rapidez e facilidade com que foram resolvidos os aluguéis comerciais nessa pandemia, devido ao poder de barganha dos famigerados CNPJs e seu acesso facilitado a um aparato jurídico. Mas aqueles que dizem se ater aos fatos falarão que como o governo proibiu a abertura dos estabelecimentos comerciais, é muito mais fácil argumentar em favor de um desconto ou até abono total do aluguel. Já os fatos que derivam de ficar sem casa durante uma pandemia eles fingem não ver.

Então o ponto de virada foi o ato de dizer não. Quando você impede que as coisas sigam o curso natural é o momento no qual você se transforma em uma pedrinha no sapato de quem dificilmente tem pedras pelo caminho. E a partir desse ato de negação, eu tomei algumas ações. A primeira foi me juntar a um coletivo recém formado de inquilinos do meu bairro. Ali eu descobri que meu caso não era o único, pude compartilhar minha dor e minhas angústias com outras pessoas e o mais importante: transformar isso em ação e luta.

Pouco se fala sobre os espaços de construção política como locais de compartilhamento de vivências e de resistência comunitária aos ataques psicológicos do capitalismo. Nós internalizamos e individualizamos demais os problemas do nosso dia-a-dia e a pandemia do coronavírus, que veio para escancarar as mazelas de nossa sociedade e de nós mesmos, deixa isso ainda mais claro ao nos permitir constatar que mesmo diante de um evento de proporções mundiais, aceitamos a culpa e buscamos nossas saídas individualmente. Nesse sentido, se organizar de forma coletiva é tanto uma ferramenta para catarses individuais quanto para construção de novos modos de vida.

E aqui eu me permito fazer um breve paralelo, para reflexão, entre as pessoas que perderam o emprego por causa da pandemia e outras pessoas que perdem o emprego em ‘tempos normais’. Em que medida uma demissão é um problema individual? Ainda que coloquemos a demissão por justa causa como uma forma de culpabilizar o indivíduo, a fração de demissões nessa modalidade é mínima. Nesse sentido o desempregado, seja na circunstância que for, é um produto da economia capitalista que usa ou descarta nossos corpos de acordo com suas necessidades.

Foi pelo grupo de whatsapp do coletivo de inquilinos do meu bairro que eu recebi um link para uma matéria sobre uma mulher que ficou desempregada durante a pandemia e conseguiu desconto de 70% no aluguel através de uma ação individual feita pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Eu nunca tinha utilizado a justiça para resolver nada da minha vida. Em grande parte porque eu tenho plena consciência que ela não existe para defender os direitos de gente como eu, mas sim de pessoas como o proprietário do imóvel que eu habito e a imobiliária que intermedia essa relação. Mas naquele momento eu decidi tentar enquanto mais um recurso disponível. Mesmo que você não concorde com a minha ideia sobre a justiça, acredito que enxergá-la dessa forma, como apenas mais um recurso disponível e não como único espaço legítimo para tomada de decisões efetivas, pode ser transformador e abrir portas para outras formas mais coletivas de resolução dos problemas.

O retorno da Defensoria veio rápido e eu tive a oportunidade de explicar minha situação. Ainda no fim de março eu enviei o primeiro e-mail para a imobiliária visando iniciar as conversas sobre a negociação. Nenhuma resposta. Sendo assim, não paguei o aluguel que venceu em 15 de Abril. No dia 23 seguinte, ou seja 8 dias após o não pagamento, recebo a resposta ao meu primeiro email: não aceitaram minha proposta inicial e pediram para eu enviar outra. “Aguardo retorno com urgência”, dizia a frase final da mensagem. Não tenho dúvidas de que o ato de não pagar fez com que eles me respondessem. No mesmo dia enviei nova proposta conforme solicitado. Mas até hoje ainda não sei qual era a urgência pois jamais tive resposta sobre essa segunda proposta.

No dia 14 de Maio eu enviei um novo e-mail solicitando os boletos apenas com os condomínios atrasados para eu realizar o pagamento. Sendo o valor do condomínio responsável pela manutenção dos espaços comuns do prédio e pelo pagamento dos funcionários, decidi pagá-los logo antes de conseguir concluir minha odisséia pelo desconto no aluguel. Não obtive nenhum retorno sobre isso também. Será que porque o valor que eu queria pagar não era para a imobiliária? Sem dúvidas.

O próximo e-mail que eu viria a receber da imobiliária foi apenas na data de 1 de Julho, avisando que o sinistro por falta de pagamento tinha sido aberto junto à empresa que opera o meu seguro caução. Três aluguéis não pagos se acumulavam nesse momento e eu não tinha uma resposta sobre o meu pedido de desconto na justiça. Após a retirada deste seguro caução, o próximo passo seria o processo de despejo.

No dia 20 de Julho recebo da seguradora um documento com os valores que eu tinha em débito com a imobiliária, informando que seriam pagos com o resgate do seguro caução por parte do proprietário do imóvel. Para minha não surpresa, os valores referentes aos débitos estavam errados. O quanto estavam errados? Não era cem, duzentos, nem sequer mil reais de diferença. Era cerca de quatro mil reais. De fato pode ter sido erro, mas diante do histórico do processo inteiro de negociação e sabendo o que de fato são as imobiliárias – empresas que lucram com a burocracia jurídica, eu me reservo o direito de acreditar plenamente que foi má fé.

Nesse momento eu enviei um email questionando os valores, mas também decidi enviar novamente outro formulário no site da Defensoria Pública perguntando sobre o andamento do processo. Um fim de semana se passou e no dia 28 de Julho recebo um novo e-mail da defensoria informando que o juiz já havia decidido sobre o meu caso desde o dia 7 de Julho, mas ninguém foi notificado: nem a defensoria, nem eu, nem a imobiliária. Portanto, aqui uma dica para quem está com processo pela defensoria: enviem outro formulário pedindo atualização sobre o processo. O veredito do juiz foi: 50% de desconto nos aluguéis a partir de março até o final da pandemia. Sem precisar pagar depois. Alegria. Comemoração compartilhada na hora com meus amigos e com os meus companheiros de coletivo organizado de inquilinos. Para alguns segundos depois pensar: ótimo, consegui um bom desconto, mas foi só isso; baixa a bola, pé no chão e a luta continua.

Pode parecer altruísmo, mas não é. É só a consciência de que a minha plena liberdade depende da liberdade de cada um dos outros indivíduos que vivem neste mundo. No fundo, quando eu luto para que ninguém mais tema ficar sem um lar, eu estou lutando para que eu mesmo nunca venha a temer novamente por isso. Está mais para um egoísmo comunitário. Quando passamos a dar mais valor às vitórias individuais do que ao contexto coletivo em que elas se inserem, a gente passa a validar que nossa vitória seja exceção, quando deveria ser a regra.

É bizarro você pensar na quantidade de pessoas que estão na mesma situação que eu e não terão o mesmo desconto simplesmente porque não possuem acesso à justiça, simplesmente porque não preencheram um mísero formulário e principalmente porque enxergam a justiça como algo que não está a seu alcance, o que de fato é verdade. E aqui eu adiciono um parênteses para o problema de todos aqueles que não possuem contrato formal de aluguel, portanto sequer poderiam contestar ou solicitar qualquer coisa. É essa sociedade que criamos, na qual o seu entendimento da burocracia estatal é primordial para o seu acesso a direitos básicos. Uma máquina de letrinhas miúdas comandada pelos interesses de políticos e grandes corporações.

Portanto, reforço: se o objetivo da ética majoritária desse mundo doente é nos individualizar, nossa resistência só pode ser coletiva; ou não será. E se você decidir pelo individualismo que seja uma escolha consciente e não um simples condicionamento do sistema. Independente da forma que você instrumentaliza o coletivismo político, seja através de filiação a um partido ou participando de coletivos fora das estruturas tradicionais, ou mesmo como realiza suas ações individuais, o importante é abandonar a lógica de terceirização da política que resume a sua participação a apertar alguns botões em uma urna de 2 em 2 anos (e achar que está agindo diariamente apertando outros botões em redes sociais).

Anexo:

Não citei nenhum dado no texto propositalmente. Não acho que são necessários pois na sociedade que eu quero viver não há nenhum argumento possível para deixar uma pessoa sem casa (e também sem comida, sem saúde, sem arte, sem tempo livre, etc). Antes de política, a saída que eu acredito passa por essa nova ética. Mas, tudo bem, para aqueles que dizem se ater aos fatos, deixo dois dados sobre algo que já é óbvio: a concentração de terra no Brasil.

  • Para cada 2 famílias que recebem renda de aluguel, há 7 que pagam.

  • 12% das famílias que possuem renda de aluguel concentram 44% de toda a renda gerada por aluguel no país.

Dados apresentados por Sérgio Firpo em transmissão ao vivo do Instituto Insper intitulada Direito de moradia na pandemia de COVID-19. 1 de Junho de 2020. Link: https://www.youtube.com/watch?v=KAxjVr5gxd0