Foto: Divulgação CPTM

Andar no transporte público de São Paulo pode ajudar a transformar seu direito à mobilidade pela cidade em ativo no mercado financeiro 

Leonardo Foletto, Isadora Guerreiro e Raquel Rolnik*

No início de novembro, o Governo Estadual de São Paulo lançou o TOP, novo aplicativo de mobilidade para trens e ônibus intermunicipais gerenciados pela EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo) na região metropolitana de São Paulo. O novo aplicativo (que também é um cartão) vem substituir o atual BOM, que deixará de funcionar gradativamente até março de 2022. Também faz parte do pacote o fechamento gradual das bilheterias até o final de 2021.

O novo cartão TOP, no entanto, é também um cartão de banco. Por trás da solução “inovadora”, o que estamos vendo aqui é a financeirização da cidadania, processo no qual os direitos a um serviço urbano – como é o caso do transporte – só podem ser acessados através dos circuitos do mercado financeiro. E mais: além de bancarizar a totalidade dos usuários de transportes, trazendo-os para os circuitos do endividamento, esta solução privatiza os dados dos usuários, deixando-os à disposição da empresa, sem sabermos exatamente para quem e para quê estes dados serão passados. Vejamos como tudo isso está sendo amarrado na nova solução “TOP”.

Em 2022, com o fim das bilheterias físicas, a compra de bilhetes será feita exclusivamente a partir do aplicativo de celular TOP, via WhatsApp, em máquinas de autoatendimento nas estações de trem e metrô ou em rede comercial cadastrada (denominada de “rede parceira”). Se o usuário não tiver nenhuma conta bancária, poderá comprar com dinheiro o novo bilhete nas máquinas e rede parceira. No entanto, se quiser ter desconto na integração de transporte (R$1,50), terá que ter o Cartão TOP. O Cartão TOP, no entanto, não é apenas um cartão de transporte, mas uma Conta Digital operada pela fintech Pefisa, a financeira das Lojas Pernambucanas, com bandeira Mastercard. É para ela que vão os valores carregados no cartão de transporte, que podem vir também de outras instituições financeiras onde o usuário tenha conta.

Se o usuário não é bancarizado, no entanto, pode optar por desbloquear a função débito do seu Cartão TOP direto no aplicativo, ativando a Conta Digital. Com isso, além da função de cartão de transporte, o TOP passa a oferecer, de modo opcional (e inicialmente  gratuito), as funções de cartão de débito na rede credenciada, recarga de celular, pagamento de boletos, PIX e transferências na mesma instituição bancária. Além disso, pagando tarifas específicas, ele também tem as funções de Vale Transporte, saque (nas Lojas Pernambucanas de graça, na “rede parceira” taxa de R$ 6,99), conta salário e cartão de crédito (anuidade de 12X R$ 16,90). Com a Conta Digital, também é possível fazer investimentos de pequenos valores e prazo curto de resgate (Investe Fácil – com um mínimo de R$ 30 e resgate de 3 meses).

A Conta Digital pode ser acessada pelo mesmo aplicativo (disponível para iOS e Android) que emite o bilhete em QR-Code, implantado a partir de abril de 2021, quando o serviço de bilheteria do transporte público em São Paulo passou a ser administrado pela empresa gestora da bilhetagem eletrônica metropolitana, a Tranpass. Foi ela que transformou a passagem em um um código QR-Code que é lido (digitalmente) pelas catracas.

Na opção do Cartão TOP como Conta Digital, os dados que foram cadastrados obrigatoriamente para poder circular no transporte público metropolitano são cedidos diretamente à fintech, administradora da conta – que com isso pode ter, sem muito esforço, a sua disposição as informações sobre mobilidade e consumo – de mais de 20 milhões pessoas que circulam diariamente na região Metropolitana de São Paulo.

Print do site do TOP, https://www.boradetop.com.br/

Qual é o problema da “modernização”, afinal? 

A substituição de um cartão de transporte por um aplicativo como o TOP em São Paulo faz parte de um movimento comum às cidades nesse momento: o de oferecer às pessoas que circulam no transporte coletivo serviços como integração e descontos em diversos tipos de “parceiros” e facilidades de pagamento a partir de um aplicativo digital. Em vez de investimento em mais e melhores linhas de ônibus, por exemplo, terceiriza-se a bilheteria para que tanto o dinheiro ali depositado seja disponibilizado para o mercado financeiro quanto os dados coletados no aplicativo possam ser relacionados a outros e, assim, gerar ainda mais recursos para a financeira – que funciona exatamente na junção entre as duas funções: a operação de serviços no mercado financeiro e  o uso dos dados coletados em aplicativos digitais para “aperfeiçoar” a experiência financeira dos usuários.

O uso de um aplicativo como o TOP para o transporte público é mais uma  exemplo de como funciona o “solucionismo tecnológico”, a ideia de que basta um software, um aplicativo, mais tecnologia, para resolver e consertar todos os problemas do mundo – inclusive das cidades. É a busca de “uma saída mágica, rápida e supostamente indolor que descarta as alternativas institucionais ou construídas pela organização da sociedade civil, mais lentas e complexas, e que pode ser comprada pronta, oferecida por empresas criadas ou de alguma forma relacionadas aos serviços fornecidos pelas big techs”. (Foletto, 2021, p.184).

Além disso, por trás da solução “inovadora”, com “praticidade e eficiência para a população”, como declarou  o Governador João Dória em anúncio no Twitter, esconde-se um forma de financeirização da cidadania (Lavinas, 2018). É um processo no qual uma pessoa que necessita de serviços urbanos –  situados no campo dos direitos, como  poder utilizar o  transporte público da cidade – deve passar, obrigatoriamente, a acessá-lo a partir de um mediador, uma plataforma gerida por um agente financeiro, que utiliza a cidadania como campo de expansão de seus negócios. O usuário – que é obrigado a usar o cartão – passa a ser então objeto permanente de oferta de serviços bancários, de empréstimos, de seguro etc, fisgando-o para o circuito do endividamento.

Devemos também  ficar atentos também às “facilidades” prometidas pelo aplicativo, que prometem solucionar todos os problemas da cidade a partir de uma tecnologia aparentemente neutra e eficiente, mas que podem criar outros problemas, como a discriminação das pessoas a partir dos dados gerados por elas e o  o oferecimento de serviços e produtos a partir do cruzamento dos dados coletados com outras bases. É importante percebermos que isso não é uma lógica de direitos universais, mas um mercado de cidadania. O novo TOP faz parte deste processo.

*Leonardo é pós-doutorando na FAU-USP e pesquisador do LabCidade; Isadora é professora na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade; Raquel é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.