Por Isadora Guerreiro (*), Raquel Rolnik (**), Paula Freire Santoro (***)

Comentamos recentemente sobre a Medida Provisória nº1.162, que trata sobre o novo Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), chamando a atenção e alertando para três pontos inseridos no novo programa: inserção de áreas comerciais e equipamentos públicos nos conjuntos habitacionais, contratos via Parcerias Público-Privadas (PPPs), e novas modalidades de atendimento para além da construção de novas unidades habitacionais. Neste texto, gostaríamos de desenvolver uma destas alternativas propostas: a inclusão da modalidade “locação social” no programa, que ainda precisa ser melhor detalhada. 

Nesta MP não está clara a forma como o aluguel entrará no novo MCMV. Temos observado três formas de inserção da locação nas políticas públicas no Brasil: 1. Locação social em parque público; 2. Locação social através de PPPs; 3. Locação em parque privado disperso – geralmente viabilizada através de benefícios dados pelo poder público às famílias, uma espécie de “vale aluguel”, em inglês conhecido como voucher. Imaginando que estas possam ser possíveis versões do Programa, a partir de nossos estudos sobre o tema alertamos sobre suas possíveis implicações, cuidados e efeitos perversos, para contribuir com o debate em torno de sua regulamentação. 

No caso do modelo de parque público de locação social – programa que o município de São Paulo experimenta há cerca de 20 anos – o MCMV teria que ser proposto diretamente pelos entes públicos, em imóveis de sua propriedade e com sua gestão (o que não é a forma de funcionamento original do programa, que é baseado em oferta privada). Esta gestão envolve o controle de demanda – controle sobre quem terá acesso ao aluguel subsidiado –, a manutenção dos edifícios e unidades, a gestão condominial e da carteira de locação, o que envolve custos ao longo do tempo e capacidade administrativa. Fica a questão: o MCMV financiaria apenas a construção de unidades de locação ou ajudaria os municípios, permanentemente, com os subsídios de aluguel e custos de manutenção destes empreendimentos? Que estrutura seria necessária para os municípios terem capacidade de gestão permanente destes empreendimentos? 

As dificuldades de gestão deste modelo de locação social em parque público (decorrente das dificuldades administrativas de compra e contratação de serviços impostas cada vez mais sobre os entes públicos) têm feito São Paulo procurar alternativas, ensaiando desenhos que envolvem PPPs Habitacionais que permitiriam que os imóveis produzidos fossem alugados – algumas inclusive com público focalizado, como pessoas em situação de rua.

Neste modelo, a construção de empreendimentos habitacionais é realizada via de regra em terras ou imóveis públicos; a gestão – manutenção predial, gestão condominial, social e de carteira são privadas – e os inquilinos poderiam ser indicados pelo poder público (controle de demanda público), que subsidiaria os aluguéis, ou poderiam ser indicados pelo privados, com ou sem subsídio público do aluguel. A concessionária recebe ao longo do tempo um valor contratual de contraprestação de serviços habitacionais relativos à gestão e pode explorar por um período de tempo (geralmente em torno de 20 anos) os aluguéis pagos pelos moradores, complementados ou não pelo poder público.

Há duas formas principais de implantação de PPP de locação que têm sido propostas: na primeira, o empreendimento permanece sempre como propriedade pública (proposta da PPP de locação em São Paulo); na segunda, benefícios públicos – como terra, flexibilidade de regulação urbanística, incentivos fiscais ou subsídios diretos para construção – são incorporados ao empreendimento depois de um período de carência do empreendedor privado, que pode depois dispor integralmente do mesmo, inclusive vendendo as unidades. Funciona como privatização de terras públicas, evitando os trâmites desafiadores que envolvem dispor destes ativos.

Este último modelo é o que estava sendo proposto pelo governo federal no Programa Aproxima, parte do Casa Verde e Amarela, e não chegou a ser implementado. São evidentes os seus problemas, que devem ser motivo de cuidado no novo MCMV, que esperamos não enveredar por este caminho: com ele, recursos públicos – de terras a incentivos urbanísticos – são transferidos para a iniciativa privada diretamente depois da carência, e os inquilinos ficam despejados. 

No entanto, mesmo a primeira opção de PPP de locação (a que mantém a propriedade pública) precisa ser olhada com cautela: como dito anteriormente, o modelo de PPP tem como pressuposto a garantia de lucratividade das concessionárias, inclusive através de fundos garantidores, o que significa uma contrapartida cara do poder público – que imobiliza terras e recursos para dar segurança a estes contratos. Além disso, o “equilíbrio econômico dos contratos” acaba por definir um público alvo de renda média, capaz de arcar com valores maiores de aluguel, subsidiado ou não.

Desta forma quem mais precisa de uma locação social subsidiada fica fora do programa, e este termina sugando recursos para dar moradia a famílias com rendas mais altas, que não são prioritárias na política habitacional. Além disso, permanece a pergunta do modelo anterior: o MCMV financiaria apenas a construção para locação ou ajudaria os municípios com os subsídios ao aluguel a serem pagos às concessionárias? Esse apoio será suficiente para permitir que famílias de baixa renda ou sem renda acessem estes empreendimentos?

Por fim, um último modelo que São Paulo está propondo, depois de duas décadas de um Auxílio Aluguel em massa bastante desregulado, é uma política de locação em unidades privadas dispersas, cadastradas pelo município e bem localizadas. Em um formato de solução “assistida” pelo poder público, mas que historicamente tem sido realizado sem esta assistência. É importante recordar que o Auxílio Aluguel acabou por colaborar com um grande mercado imobiliário informal nas periferias, favelas e pensões  – algo que deve ser evitado a qualquer custo no novo MCMV, inclusive pelo incentivo às remoções que o instrumento representa, já que basta a disponibilização de um voucher (sem nenhuma perspectiva de acesso à moradia adequada) para que famílias removidas sejam consideradas “atendidas”.

Esta política de auxílio aluguel hoje demonstra suas consequências: cerca de 22 mil famílias apenas no município de São Paulo recebem o benefício, algumas há 15 anos, sem nenhuma perspectiva de moradia definitiva. Além do custo mensal exorbitante para o município, essa massa de valor é jogada no mercado informal de aluguel, cuja dinâmica acaba sendo incentivada, com seus preços aumentados e, por vezes, induzindo a novas ocupações de áreas de risco, “garantidas” através dos fluxos de renda do benefício. 

Ao contrário do Auxílio Aluguel, este novo modelo de locação em unidades dispersas pretende ter mais controle de habitabilidade, formalidade e de localização das unidades. O município seria o locatário dessas unidades privadas, e sublocaria aos beneficiários finais, com subsídio – chamado de voucher. A questão é que estes contratos não são realizados caso a caso diretamente com os proprietários: são feitos por meio de gestores de carteira – imobiliárias, gestoras de ativos, fundos imobiliários – e os aluguéis são pagos em bloco, ficando a cobrança da parte dos aluguéis das famílias a cargo do poder público.

Como o novo MCMV atuaria neste modelo? Quem vai financiar o aluguel? Os fundos federais que hoje financiam imóveis para compra (FGTS ou FAR faixa 1)? Quem faria a gestão destes benefícios e do parque de imóveis disponíveis para locação: a CAIXA e os municípios? 

Por fim, se o novo MCMV for por este caminho, vale a pena deixar a discussão sobre as consequências deste modelo para as cidades. Em algumas cidades metropolitanas estamos assistindo à produção de microapartamentos em áreas valorizadas (de alto custo de aluguel), não compatíveis com as necessidades habitacionais de famílias de baixa renda, mas interessantes para alugar imóveis de propriedade de investidores. Estes imóveis são geridos por gestoras especializadas em aluguel, direcionando o fluxo de recursos para este formato, que privilegia os aluguéis mais rentáveis, muitas vezes temporários, turísticos, que competem com aluguéis para quem precisa e muitas vezes ficam vazios muitos dias por mês.

Além disso, incentivam o monopólio do aluguel por proprietários corporativos, que podem gerar aumento generalizado dos valores dos aluguéis e controle do capital especulativo internacional sobre eles. É o que tem acontecido em cidades do Norte Global que adotaram este modelo – e que estão agora discutindo a estatização de seus parques locatícios devido ao custo exorbitante dos aluguéis, como foi o caso de Berlim, que fez inclusive um plebiscito sobre o tema. Discutimos estes temas do aluguel como nova frente de financeirização da moradia em artigos recentes: aqui e aqui.

Desta maneira, adotar a locação como modalidade do novo MCMV, por um lado, é muito bem-vinda, para compor uma política pública nacional de habitação. No entanto, a forma de sua aplicação precisa levar em conta não apenas as dificuldades operacionais em relação à capacidade de gestão e manutenção do parque edilício pelos municípios, mas também o significado do aluguel atualmente para agentes imobiliários ligados ao mercado financeiro, pois o aluguel se transformou na mais nova fronteira da financeirização da moradia. 

O incentivo a formas rentistas de captação de recursos públicos pode acarretar em problemas habitacionais sérios para as cidades, relacionados principalmente ao encarecimento do acesso à moradia bem localizada, ou seleção de demanda de renda média em detrimento da baixa renda. No caso de parque público de locação, o poder público colabora com o controle dos preços de aluguel, porém no modelo de voucher acontece o contrário: há incentivo para o aumento dos preços, considerando que não há regulação pública dos valores de aluguel no Brasil. E todos são prejudicados pelo encarecimento generalizado do preço da terra, que pode acontecer quando se opta pelo modelo de voucher. 

Assim, indica-se que o novo MCMV privilegie, do ponto de vista da locação, o modelo de parque público ou construído e administrado por Entidades e organizações sem fins lucrativos, inclusive autogeridas, disponibilizando recursos de forma permanente para sua manutenção e gestão. Há experiências internacionais exitosas neste sentido, que deveriam ser analisadas antes da decisão pela solução privada – e financeirizada. Considerando a pressão que o mercado imobiliário tem feito pelo modelo de locação, resta a mobilização de setores da sociedade civil organizada e movimentos sociais para que a boa proposta não seja mais um giro no processo de extrativismo rentista urbano.

* Isadora Guerreiro é arquiteta e urbanista e professora doutora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do LabCidade 

** Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista e professora doutora da FAUUSP e coordenadora do LabCidade 

*** Paula Freire Santoro é professora doutora da FAUUSP e coordenadora do LabCidade