Imagem do distrito da Vila Andrade com destaque na linha de transmissão de energia elétrica da CTEEP ao centro, obtida na plataforma Geosampa

Benedito Roberto Barbosa, Débora Ungaretti, Douglas Tadashi Magami, Eduardo Abramowicz, Guilherme Lobo, Marília Müller, Tereza Arrais, Ulisses Castro e Vitor Inglez*

A Zona Sul de São Paulo, que vem se tornando uma importante frente de expansão do mercado imobiliário nos últimos anos, tem sido palco de conflitos fundiários com potencial de levar milhares de famílias à perda de suas casas. Segundo dados do Observatório de Remoções, da Defensoria Pública de Santo Amaro e do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, há pelo menos 298 ameaças de remoção distribuídas pelo território, que conta com uma população de 2.315.779 pessoas e uma extensa área de 617,2 km2 de contundente desigualdade social. O Observatório registra ainda 19 remoções totais ou parciais realizadas desde 2017, num total de pelo menos 10.458 famílias removidas de suas casas nos últimos três anos. As ameaças atuais têm potencial de remover pelo menos 76.025 famílias, número que pode ser ainda maior se for considerado a dificuldade em se fazer esse tipo de levantamento e a falta de dados atualizados sobre os domicílios. Esse cenário envolve situações socioterritoriais distintas, com ameaças mais ou menos iminentes: existem desde casos em que está prevista intervenção pública sem data para acontecer, até casos em que há decisão judicial para desocupação. 

Mapa Ameaças, Remoções e Lançamentos Imobiliários na Zona Sul de São Paulo. Fonte: Dados da Defensoria Pública e Centro Gaspar Garcia integrados aos do Observatório das Remoções. Elaboração: Ulisses Castro, 2020.

Vila Andrade, na Zona Sul, é o distrito que mais atraiu e concentrou interesses imobiliários nos últimos 25 anos em São Paulo. Se por um lado é o maior alvo do mercado, o Mapa da Desigualdade 2020, divulgado pela Rede Nossa São Paulo, aponta que é um dos distritos com mais domicílios irregulares em favelas em relação ao número total de domicílios: quase 35% do total de moradias do distrito é considerada “irregular” pelo poder público. 

A região abriga situações diversas, por vezes diametralmente opostas, ainda que geograficamente próximas. Parte dela, a leste, é alvo de empreendimentos destinados à classe alta, como o Panamby e o Modern Morumbi, envoltos pelo parque Burle Marx e shoppings centers. Enquanto outra, a oeste, é composta por favelas com grande parte dos moradores em situação de alta ou muito alta vulnerabilidade social

Nesta região, o Estado também está presente de maneiras diversas. Por um lado, exerce ostensiva atividade policial para garantir segurança patrimonial dos moradores dos condomínios. Por outro, a mesma polícia é marcada por casos de violência contra os moradores pobres no distrito; um dos casos mais emblemáticos foi a violenta invasão da polícia militar em um baile funk em Paraisópolis, no dia 1 de dezembro de 2019, em que nove jovens morreram e dezenas ficaram feridos, um verdadeiro massacre que, até o momento, tem apenas um inquérito de investigação em andamento, sem responsabilização formal dos autores da violência. 

Um dos projetos recentes mais emblemáticos da Prefeitura para esse território foi a proposta do Projeto de Intervenção Urbana Arco Jurubatuba (PIU ACJ) (Projeto de Lei n. 204/2018), já analisado anteriormente aqui, e que pretendia expandir o eixo Faria Lima – Berrini em direção à Zona Sul da cidade. Em outubro deste ano, o projeto de lei foi considerado inválido pela justiça, fruto do trabalho da Unidade da Defensoria Pública de Santo Amaro, Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria, da União de Movimentos de Moradia, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e do Observatório de Remoções. Dentre outros motivos, considerou-se inválido o projeto por prever a remoção de centenas de famílias que moram em comunidades com o intuito de implantar obras viárias ou parques lineares. Essas comunidades são demarcadas como Zonas Especiais de Interesse Social – 1 (ZEIS-1) no Plano Diretor de São Paulo de 2014 e, por isso, as intervenções previstas deveriam não só priorizar a permanência da população moradora dessas áreas, como também ser discutidas previamente em Conselhos Gestores dessas ZEIS, com a participação de representantes eleitos pela população moradora.   

A Vila Andrade é uma das Áreas de Intervenção Urbana (AIU) do Projeto invalidado, áreas em que o recurso obtido com a venda de direitos de construir para o mercado imobiliário vai para uma conta segregada do Fundo de Desenvolvimento Urbano destinada ao financiamento das intervenções urbanas previstas dentro do perímetro. Apesar da ameaça do PIU Jurubatuba ter sido provisoriamente contida com a anulação do projeto, ainda há muitas ameaças de remoção em curso no território. O PIU ACJ invalidado previa a construção de um “muro verde” que separaria a área rica da pobre na Vila Andrade, no perímetro ao redor da linha de transmissão da Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP), o que foi objeto de críticas inclusive por parte da Defensoria Pública nas audiências públicas. Mas mesmo com a nulidade do PIU ACJ, persistem os processos de reintegração de posse da CTEEP, e, com isso, as ameaças de remoção. No mapa a seguir é possível visualizar a concentração das ameaças ao longo da linha de transmissão, bem como a forte presença do mercado imobiliário na região mais rica, limitada pela área de ZEIS predominante a oeste. 

Mapa Ameaças e Remoções por proprietário, Lançamentos Imobiliários e ZEIS em Torno da Linha de Transmissão da CTEEP na Vila Andrade. Fonte: Dados da Defensoria Pública e Centro Gaspar Garcia integrados aos do Observatório das Remoções. Elaboração: Ulisses Castro, 2020.

Segundo o Observatório de Remoções, que mapeou os dados da Defensoria Pública de Santo Amaro e do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, há 19 processos judiciais em trâmite que incidem na Vila Andrade, totalizando pelo menos 2.500 famílias em risco de sofrerem remoção forçada no Distrito. Entre os agentes desses processos, destacamos a Prefeitura de São Paulo e a CTEEP, entidades ligadas à promoção do interesse público, mas que nesses casos colaboram com o processo de expansão dos empreendimentos de alta renda em detrimento da permanência de milhares de famílias, por vezes estabelecidas há décadas na região. 

Uma das principais justificativas mobilizadas para promover as remoções é a de que as famílias se encontram em situação de risco devido a potenciais deslizamentos ou, nas ocupações próximas a linhas de transmissão de energia elétrica, devido à potencial eletrocussão. Chama atenção o fato de que há casos em que as residências foram instaladas há mais de 15 anos e que apenas recentemente, em sincronia com o ”boom” imobiliário, surgiu a preocupação com a segurança das famílias por parte dos proprietários. De qualquer forma, o procedimento determinado pela lei para esses casos não é o ajuizamento de ação de reintegração de posse, o qual tem como principal requisito a perda da posse diante de um esbulho. A Lei Federal nº 12.340/2010, em seu artigo 3º-B, prevê que a remoção das famílias seja medida adotada somente se não for encontrada possibilidade de manejo dos riscos por meio de obras de segurança e, ainda, caso seja esse o caso, que a remoção somente ocorra se houver oferta de alternativa habitacional concreta antes de sua ocorrência. Nesse sentido entende também a comissão de peritos autora do Relatório do Centro de Apoio aos Juízes da Fazenda Pública 2020 (CAJUFA), que indica diretrizes para a análise de risco geológico-geotécnico em áreas urbanas. Não é nesses termos, porém, que a Prefeitura e as concessionárias de serviços públicos de energia do Estado de São Paulo têm tratado as habitações populares da Vila Andrade. Alega-se o risco muitas vezes sem consideração dos riscos sociais potencialmente ainda mais graves que a violência da remoção pode ocasionar ao não oferecer solução habitacional definitiva, constrangendo as famílias à situação de transitoriedade permanente entre ocupações, sob contrapartida nenhuma ou, quando muito, de um auxílio aluguel precário e muitas vezes emergencial, concedido por um período de 3 a 6 meses.

Ainda há o fato de que grande parte da área que está ameaçada de remoção, seja por risco ou justificativa diversa, ter sido definida como área de ZEIS, o que obriga os particulares a não removerem a população dessas áreas. As ZEIS são regiões em que a permanência das famílias no território deveria ser priorizada e garantida por instrumentos jurídicos como a regularização fundiária. A tendência, no entanto, é a preferência imediata pela remoção das famílias em detrimento do esforço em proporcionar melhores condições de moradia no território em que essas famílias já têm inúmeros vínculos e afetos constituídos. Importante destacar também que a Prefeitura, em 2014, chegou a criar um Conselho Gestor – Pirajussara 7 – da ZEIS que abriga boa parte das comunidades que estão sendo ameaçadas de remoção. Diante da omissão e desinteresse da Prefeitura em levar o respectivo projeto de urbanização adiante, no entanto, as eleições subsequentes e outras disposições do regimento interno do Conselho não foram realizadas.

Tanto nas situações de risco, quanto nas outras, poderiam ser mobilizadas outras estratégias pelo poder público que não a expulsão das famílias, de modo a não violar seus direitos fundamentais. As concessionárias estaduais, porém, em consonância com a Prefeitura e agentes privados, persistem na preferência pela remoção sem provisão habitacional. 

Em suma, a estridente desigualdade que se vê na Vila Andrade tem recebido como reação do poder público, no geral, medidas que se posicionam em favor da expansão do mercado interessado na região e da expulsão de milhares de famílias incapazes de usufruir desse mercado, seja por meio dos processos judiciais da CTEEP – além de outros propostos pela Prefeitura, Eneel, Transpetro e Viamobilidade -, seja pelo PIU Arco Jurubatuba, ou mesmo pela Polícia Militar, que protege os condomínios de alta renda mas é recorrentemente hostil aos moradores de assentamentos populares da região. 

* Benedito é advogado da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo e do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Coordenador da Central de Movimentos Populares SP e Pesquisador do LabJuta – Laboratório de Justiça Territorial da UFABC; Débora é doutoranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade; Douglas é defensor público do estado de São Paulo. Eduardo é Advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos; Guilherme é graduando em Direito na USP e pesquisador do LabCidade; Marília é arquiteta e urbanista; Tereza é do Conselho Gestor de Zeis Viela da Paz – Segmento Sociedade Civil / Assessoria Vereador Donato; Ulisses é graduando na FAU-USP e pesquisador do LabCidade; Vitor é advogado associado ao Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.