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Terminal Itaquera. Foto: Pedro Resende.

Por Davi Martins*, Marina Harkot**, Rafael Drummond*** e demais integrantes do apē – estudos em mobilidade****

A renovação do processo licitatório do transporte público coletivo sobre pneus na cidade de São Paulo, que estava prevista para acontecer dois anos atrás, foi adiada graças às jornadas de junho de 2013. Isso levou a Prefeitura a contratar uma auditoria financeira da Ernest & Young para analisar o sistema. Os resultados da auditoria foram publicados em dezembro de 2014 e, seis meses depois, um novo edital para licitação do transporte público foi elaborado e disponibilizado para consulta pública no último dia 15 de julho.

O edital lançado propõe uma complexa reestruturação do sistema de transporte público sobre pneus e sua reorganização em três macrogrupos que pretendem adotar a lógica do sistema tronco-alimentador[1] como premissa. Mas vimos que, apesar dos significativos avanços nas novas regras propostas pela Prefeitura, também há retrocessos.

Diante de 5 mil páginas de texto e do curtíssimo prazo dado pela Prefeitura para envio de contribuições, apenas um mês, algumas organizações e grupos ativistas se mobilizaram e pediram a extensão do prazo, que foi prorrogado em três semanas, terminando no dia 31 de agosto. Como membros do grupo apē – estudos em mobilidade, entendemos que não podíamos perder a oportunidade de contribuir para o melhoramento do transporte na cidade.

Além da extensão do prazo, foram realizadas uma reunião extraordinária do CMTT – Conselho Municipal de Transporte e Trânsito, exclusivamente para tratar da pauta, e uma reunião com uma equipe técnica da Secretaria Municipal de Transportes e SPTrans, a fim de tirar dúvidas acerca de detalhes do edital. Com os canais abertos pelo poder público e a articulação dos grupos organizados, foi possível promover ações de participação da população e formular propostas relevantes que aprofundariam as mudanças necessárias para trazer maior qualidade ao transporte de ônibus.

Um dos temas mais sensíveis à população nos protestos de 2013 era a forma de remuneração pelos serviços. Segundo a proposta da Prefeitura, ao invés de ser calculada pela quantidade de passageiros transportados – o que permitia um lucro maior do empresário com ônibus mais cheios em detrimento do conforto da população –, agora será baseada nos custos da operação, sendo que para cada linha haverá um número mínimo de passageiros a serem transportados, e o não cumprimento dessa meta resultará em redução da remuneração. Isso não se aplicará quando a meta for ultrapassada. Além disso, essa nova fórmula teria outros índices operacionais que condicionariam a remuneração integral. Se uma empresa não cumprir com os parâmetros de operação estipulados pelo edital, ela não receberá toda a verba destinada para pagar seus serviços.

Apesar do avanço na nova fórmula proposta de remuneração, grupos como o IDEC, o apē e a Rede Butantã entenderam que seria necessária a inclusão de um índice de qualidade que levasse em conta as reclamações dos usuários para também incidir sobre o pagamento das empresas. Assim, se a empresa cumprir padrões mínimos, mas ainda apresentar baixa qualidade dos serviços, seu pagamento será menor e forçará uma mudança de gestão, garantindo que as viagens sejam sempre, pelo menos, aceitáveis.

Porém, a Prefeitura não acolheu a proposta das organizações e ainda garantiu que 15% do valor operacional não sejam condicionados aos índices operacionais, em resposta a uma solicitação das empresas.

Outro ponto chave da reorganização do sistema de transporte sobre pneus é a criação do Centro de Controle Operacional (CCO) e a atribuição de grande parte da responsabilidade da sua administração às empresas concessionárias durante toda a duração do contrato, como já comentado aqui no blog. A Rede Butantã e o apē solicitaram que o controle do CCO e todas as atividades atribuídas a ele sejam de exclusividade da SPTrans ou SMT. Porém, novamente essa foi uma proposta rejeitada pela Prefeitura.

Já dialogando com outras discussões que há tempos acontecem na cidade, entidades como o Greenpeace, o Ciclocidade e a Rede Nossa São Paulo solicitaram modificações no edital que ajudem a construir um panorama com menos emissões de gases de efeito estufa e maior integração intermodal, principalmente no que diz respeito à articulação entre ônibus e bicicletas. Uma das principais preocupações é a convergência com a Lei Municipal de Mudanças Climáticas e suas metas de redução de emissões – que, por exemplo, estipulam que toda a frota de ônibus de São Paulo deixe de usar combustíveis fósseis até 2018. Apesar do pouco tempo hábil para a substituição de toda a frota, as entidades propõem que todos os novos veículos que forem colocados em operação a partir da data estipulada pela lei utilizem combustíveis provenientes de fontes renováveis (biodiesel, etanol, energia elétrica etc.).

Da mesma forma, a preocupação com as oportunidades perdidas na integração com as bicicletas também é grande. As entidades pedem inclusão de bicicletários seguros compatíveis com a demanda existente e potencial da região em cada um dos terminais de ônibus e que, no futuro, haja a possibilidade de o usuário carregar a bicicleta consigo no trajeto dentro dos veículos, assim como acontece em outras cidades do mundo. Nenhuma dessas propostas foi aceita, e nem mesmo aquelas que buscavam o cumprimento da Lei de Mudanças Climáticas foram atendidas.

A mobilização gerada em torno do assunto e a extensão do prazo podem ser avaliadas como positivas. Através delas conseguiu-se, por exemplo, chamar atenção para um tema que, embora de extrema relevância no cotidiano da cidade, não estava recebendo a devida atenção da mídia nem tampouco da população. Porém, é inegável que a resposta da SMT às propostas protocoladas pelo grupo carrega consigo total decepção.

Apesar da tentativa da atual gestão municipal de abrir o debate para a população e, assim, tornar mais participativo o processo democrático, não estamos satisfeitos com as respostas dadas às propostas apresentadas. Consideramos um retrocesso que proposições específicas tenham recebido réplicas com justificativas muito vagas – como aconteceu com relação aos CCO ou à fórmula de remuneração. Com a publicação do edital após a consulta pública, sentimos que São Paulo saiu perdendo.

* Davi Martins é engenheiro mecânico e mestrando na PoliUSP. É também pesquisador-assistente no Greenpeace em mobilidade urbana e clima e energia, e integrante do grupo apē.

** Marina Harkot é formada em ciências sociais pela USP, trabalha e pesquisa no campo dos estudos urbanos, mobilidade e gênero. Milita por uma cidade mais equânime à qual todos tenham direito.

*** Rafael Drummond é jornalista formado pela UNESP de Bauru e planejador urbano pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Atualmente é membro do apē – estudos em mobilidade e participa do GT Mobilidade da Rede Butantã.

**** Fundado em 2012, o grupo apē (do tupi “caminho”) nasceu a partir da vontade em debater a mobilidade urbana na universidade, reunindo estudantes de diversos cursos, com mentalidades distintas. Desde 2014, fora do campus da USP, o grupo atua agregando estudantes e profissionais de origens e formações cada vez mais diversas, a partir do desejo de ampliar a discussão sobre o tema. As atividades realizadas, a partir de seus estudos e projetos, buscam atingir cidadãos e o poder público por meio de discussões, boletins técnicos, projetos educativos, intervenções artísticas e atuação direta junto a municípios para orientação em aspectos relacionados à mobilidade e demais questões urbanas. Recentemente, também vem buscando a educação como ferramenta para repensar a relação com mobilidade, utilizando a cidade como território de aprendizagem.

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[1] O sistema tronco-alimentador tem como premissa a “racionalização” do transporte sobre pneus. Ao contrário do sistema vigente – no qual o sistema direto de organização das linhas é preponderante, ligando diretamente o interior do bairro ao centro –, o sistema tronco-alimentador torna a baldeação intermediária obrigatória. Neste caso, as linhas “alimentadoras” passam a fazer a ligação entre o bairro e o “tronco” – geralmente uma via arterial, na qual existem mais ônibus circulando com mais frequência e maior capacidade, tornando mais rápida a ligação com o centro da cidade.