Mapa mostra comunidades que estão diretamente ameaçadas e que devem ser removidas, de acordo com o projeto, e outras comunidades inseridas no perímetro, o que configura ameaça iminente (Mapa: Aluizio Marino)

Benedito Barbosa¹, Débora Ungaretti² e Douglas Tadashi Magami³

Na primeira semana de maio, foi encaminhado à Câmara Municipal o Projeto de Lei 204/2018, que cria o Projeto de Intervenção Urbana Arco Jurubatuba (PIU ACJ). A despeito das exigências de participação social da legislação de política urbana, e repetindo outros projetos recentes da Prefeitura, o processo contou com pouco diálogo com setores da sociedade civil, conforme já discutido nesta página.

A minuta do PIU ACJ foi colocada em consulta pública pela internet às vésperas do carnaval e em meio ao debate sobre a revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo de São Paulo, a chamada Lei de Zoneamento. Às pressas, foram realizadas três audiências públicas, que foram pouco divulgadas, por omissão da Prefeitura. A atuação conjunta de movimentos sociais com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi essencial para garantir a participação maciça, nas audiências, das populações que serão diretamente impactadas pelo programa de obras previsto neste projeto.

Com isso, a Prefeitura admitiu ser necessário um trabalho intersecretarial e aceitou conversar com as populações moradoras e lideranças de movimentos de moradia, bem como com a Defensoria Pública, o que, no entanto, não foi suficiente para garantir um amplo debate público acerca do que está sendo proposto. A única devolutiva foi o envio do projeto de lei à Câmara com propostas que não atendem às reivindicações colocadas, pelo contrário, ameaçam os territórios populares e diminuem a oferta de moradia para a população de baixa renda no Arco Jurubatuba.

No projeto de lei, estão previstas intervenções em perímetros de Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS (definição no artigo 45, I do Plano Diretor Estratégico), desvinculadas de eventual regularização da área e sem considerar a manutenção da população moradora e a provisão habitacional.

Na prática, o PL institui verdadeiras ZEIS móveis, que pretendem flexibilizar os perímetros de ZEIS existentes por meio da possibilidade de alterar o local demarcado, uma verdadeira distorção jurídica, já que afronta as regras do Plano Diretor Estratégico para as ZEIS. Assim, prevê a possibilidade de deslocamento das famílias em áreas de ZEIS e o atendimento do direito à moradia dessas pessoas em outras localidades. No entanto, não há qualquer garantia de como será realizado esse processo, nem de que haverá atendimento habitacional definitivo, já que o texto afirma que as “famílias atingidas […] serão atendidas, sempre que possível de forma definitiva, nas novas áreas” (§2º do art. 16 do PL, grifos nossos).

Soma-se a isso o fato de que as famílias afetadas poderão ser reassentadas no perímetro expandido do Arco Jurubatuba, ampliado em relação às versões apresentadas e debatidas em audiência pública.

A mera garantia de percentual a ser construído de habitação de interesse social e habitação do mercado popular em outras localidades viola não só eventual possibilidade de participação popular das comunidades por meio da constituição do conselho gestor, mas também a função essencial da ZEIS como instrumento de proteção contra remoções e também contra deslocamentos forçados em decorrência de valorização excessiva do solo.

Nesses perímetros, eventuais intervenções deveriam ser discutidas no âmbito do Conselho Gestor de ZEIS (artigo 48 do Plano Diretor Estratégico), sem o que não se pode falar em gestão democrática da cidade (artigo 2º, II, do Estatuto da Cidade). Tais conselhos, no entanto, não foram sequer criados ou convocados para discutir o PIU ACJ. Outro ponto que merece crítica é que não foi feito levantamento detalhado das áreas e das famílias que serão impactadas, o que impede discussões concretas sobre o que está sendo proposto.

As medidas protetivas do direito à moradia das populações residentes estão sendo substituídas, portanto, por medidas que favorecem deslocamentos forçados.
As duas áreas do perímetro do Arco Jurubatuba que serão mais impactadas, por apresentarem maior vulnerabilidade, estão contidas em Áreas de Intervenção Urbana (AIU) – trata-se da Vila Andrade e de Interlagos. Estas áreas são marcadas, de um lado, pela vulnerabilidade social, e, de outro, pelo aumento da pressão imobiliária que, além de gerar impactos nos preços dos aluguéis, tende a se intensificar com as intervenções que estão sendo propostas.

A Área de Intervenção Urbana de Interlagos abrange o Autódromo de Interlagos, joia da coroa do projeto de desestatização da Prefeitura em curso, e será objeto de transformações por meio do Projeto Estratégico de Interlagos, que poderá prever a transferência de terras públicas para particulares e a desapropriação para reparcelamento e revenda (artigo 27 do PL). Além disso, de acordo com o projeto de lei ora em discussão, não se aplicam a este Projeto Estratégico as regras relativas à cota de solidariedade (artigos 111 e seguintes do Plano Diretor Estratégico), uma afronta direta ao Plano Diretor. Por fim, há previsão de implantação de viários na Área de Intervenção Urbana de Interlagos que implicará na remoção, ao menos parcial, da comunidade Manuel de Teffe, onde moram 350 famílias.

Na área de abrangência da Vila Andrade, por sua vez, a intensificação de incentivos e investimentos públicos favorecem interesses imobiliários já presentes na região, o que fica evidente por meio da camada de outorga onerosa disponível no Portal Geosampa. Isso talvez explique a inclusão desta área no perímetro do Projeto de Intervenção Urbana. A Vila Andrade não está contida nas planícies fluviais do Rio Tietê, Tamanduateí ou Pinheiros, tampouco é abrangida pelas infraestruturas de transporte ferroviário e rodoviário ou por galpões industriais que caracterizam o Setor Orla Ferroviária e Fluvial de que faz parte o Arco Jurubatuba. A implantação de viários atingirá as famílias das comunidades da Olaria, Canto do Rio Verde, Chapada de Minas, Caruxa e Pullman II, que totalizam cerca de 1.839 domicílios, conforme dados disponíveis no Portal Geosampa.

Nesse sentido, tudo aponta que o PIU ACJ é mais uma das parcerias da exclusão (Mariana Fix, Parceiros da Exclusão, Boitempo, 2001) denunciadas em projetos urbanos anteriores: representa o avanço, até as fronteiras com as áreas de mananciais da cidade, de uma aliança do setor público com os setores imobiliário e financeiro que marcou a substituição dos territórios populares por grandes edifícios corporativos na Operação Urbana Água Espraiada.

Conclui-se que as ações da gestão da Prefeitura de São Paulo, alinhadas no tabuleiro da especulação imobiliária às novas estratégias de ganho máximo sobre os territórios, movimentam-se na direção Sul da cidade. A mobilização de recursos e imóveis públicos, contrariando qualquer senso de interesse público e de bem comum, colocará em risco a população mais vulnerável, que tem seus direitos territoriais ameaçados em decorrência das transformações do perímetro do Arco Jurubatuba.

¹ Benedito Roberto Barbosa (Dito) é mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, dirigente da Central de Movimentos Populares, advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da União dos Movimentos de Moradia de SP.

² Débora Ungaretti é mestranda na FAU-USP e pesquisadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade – LabCidade FAU-USP.

³ Douglas Tadashi Magami é defensor público do estado de São Paulo.