Stela Da Dalt*

Existe uma antiga estratégia para forçar a aprovação de projetos com interesse público questionável: a do fato consumado. Primeiro faz, depois pede permissão, alegando que o prejuízo “público” de desfazer seria maior do que o de dar continuidade.

Há pouco mais de dois meses, no post Cidadania pelas frestas: como monitorar a concessão do Pacaembu?, anunciamos a suspeita de que a construção de uma laje de concreto sobre o gramado do Estádio Municipal do Pacaembu acontecia sem aprovação pelos órgãos de tombamento. Hoje, entretanto, a suspeita ganhou nome e forma, é o  “Pavilhão Pacaembu”, feito pela concessionária para abrigar shows e eventos.

Captura de tela de reportagem transmitida no SP1 em 30 de março de 2022. Fonte: Reprodução/Globoplay.

E essa estratégia do fato consumado tem descaracterizado o patrimônio arquitetônico e cultural da cidade de São Paulo. Existem alguns exemplos na história recente do município que seguiram essa lógica, como a destruição do Anhangabaú, a demolição de casarões na região do Campos Elíseos sem a aprovação dos Órgãos de patrimônio e a implantação de uma escultura dourada à frente da B3, sem a aprovação da CPPU (Comissão de Proteção à Paisagem Urbana), órgão colegiado que decide sobre a aprovação de ações publicitárias na cidade.

A recorrência da aplicação desse modus operandi sem que haja nenhum tipo de sanção ou punição aos infratores vem sendo denunciada no âmbito de espaços concedidos para a iniciativa privada, como é o caso, por exemplo, do Parque do Ibirapuera, atualmente administrado pela concessionária Urbia, que vem continuamente desrespeitando o tombamento do parque ao instalar rodas-gigantes ou ao modificar o paisagismo sem pedir autorização dos órgãos competentes.

E já suspeitávamos da preparação do Pacaembu —  tombado pelos órgãos de preservação municipal, CONPRESP, e estadual, Condephaat — para receber eventos, em detrimento de sua preservação e restauro. A hipótese do post era que a construção de uma laje de concreto sobre o gramado aparentava servir a interesses econômicos particulares em detrimento de sua preservação como patrimônio da cidade e de todos os paulistanos, principal objetivo da concessão, de acordo com documentação elaborada pelo Poder Público no contexto de lançamento do Edital de Concessão.

Não foi preciso investigar muito. A mídia já vinha informando sobre a recepção de eventos no Estádio e a página de Instagram da feira de arte ArPa anunciava o evento no Pacaembu.

Não é difícil entender a rentabilidade desejada pelos concessionários, que veem neste uso temporário para eventos a possibilidade do que chamam de “esquentar o terreno”, ou seja, obter rentabilidade em eventos temporários ou provisórios enquanto o imóvel espera a sua transformação em definitivo. Estes usos permitem a especulação imobiliária – quantos estacionamentos não vimos serem instalados enquanto os projetos de edifícios não começam a ser construídos? É esta mesma lógica. E fazem com que o imóvel tenha rentabilidade e não apenas custos para os concessionários.

Essa solução é compreensível somente do ponto de vista da concessionária e seus objetivos de lucrar durante todos os 35 anos de concessão. Não seria razoável alegar desconhecimento das limitações que a legislação de tombamento impõe ao Pacaembu, uma vez que toda a documentação foi publicada na página da Prefeitura elaborada no âmbito do processo de concessão.

A concessão do Pacaembu contou com basicamente dois momentos. O primeiro foi a instauração de um procedimento preliminar voltado a acolher propostas dos interessados. A fase chamada Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), ocorreu em 2017 e é comum em concessões ou privatizações. O segundo momento foi a publicação do Edital e a convocação para a Concorrência Internacional Nº01/SEME/2018, processo licitatório propriamente dito que ocorreu a partir de 2018, já considerando parâmetros de preservação, projeto arquitetônico referencial, modelagem econômica etc.

Em agosto de 2019, o desdobramento do certame licitatório consagrou vencedor um consórcio, denominado “Patrimônio SP”, que não havia participado do PMI. Posteriormente o grupo foi renomeado de concessionária Allegra Pacaembu. O fato acabou gerando um novo “pedido de intervenção em bem tombado” para o projeto arquitetônico da concessionária, submetido em fevereiro de 2020 aos conselhos CONPRESP e Condephaat. O novo protocolo iniciou as tratativas, que duraram pouco mais de um ano e, por fim, em meados de 2021 o projeto foi aprovado com ressalvas, ainda precisando aprimorar certos aspectos que seriam dirimidos no detalhamento dos Projetos Executivos de arquitetura.

Desde então, vêm sendo realizadas reuniões entre técnicos responsáveis por analisar o projeto, a arquiteta Sol Camacho, autora do projeto, representantes da concessionária e diretores das Unidades de Preservação. Ocorre que, ao que tudo indica, a edificação provisória “Pavilhão Pacaembu” nunca foi submetida à aprovação dos Conselhos. A legislação de tombamento do Estádio protege integralmente toda sua estrutura interna e externa, ou seja, o Estádio de Futebol e complexo esportivo, composto por ginásio poliesportivo, quadras de tênis abertas e cobertas e piscina olímpica. Um dos motivos que justificaram seu tombamento no âmbito estadual, foi a “importância do Conjunto Esportivo do Pacaembu para a história do esporte paulista, cujas origens remontam a iniciativa de educação pelo esporte de jovens paulistanos, a realização de campeonatos e competições esportivas de caráter nacional e a solenidades cívicas”.

A construção de um pavilhão em cima do campo de futebol evidentemente inviabiliza o uso do espaço para sua função tradicional: receber jogos de futebol. Deste ponto de vista, incorre na eliminação do uso que consagrou o espaço como a casa de todos os times, “o seu, o meu, o nosso Pacaembu”. Seu caráter provisório não deixa de configurar uma destruição, inutilização ou deterioração temporária de um bem protegido por lei; ou mesmo, as alterações de aspectos estruturais de edificação protegida em razão de seu valor paisagístico, histórico, cultural, entre outros, sem a autorização dos conselhos de preservação que a protegeram. Isso é proibido pois é considerado crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (artigos 62, 63 e 64 da Legislação Federal).

Nosso acompanhamento do assunto indica ausência de discussões ou aprovações de alteração de estruturas pautadas junto ao Condephaat. As reuniões realizadas desde o ano passado tratavam de aprovar outras intervenções no complexo e, apenas recentemente, encontramos uma menção ao Pacaembu na pauta da 2.038º Sessão Ordinária do Condephaat que ocorreu hoje, 04/04, em sessão virtual transmitida pela plataforma Youtube. Consta da pauta da segunda parte da reunião, para deliberação em bloco, a “aprovação para o fechamento externo da área do complexo esportivo do Pacaembu”, assunto que, ao que tudo indica, não se refere à construção de um pavilhão para receber eventos, mas sim da modificação de seu muro de fechamento. O item foi aprovado sem discussão nem relatoria de Conselheiros. Acontece que o muro já começou a ser demolido há mais de um mês, seguindo a anunciada lógica de fazer antes de aprovar.

O que podemos fazer frente a estes fatos consumados?

    • Pedir para os conselheiros de patrimônio que, na próxima reunião, dia 18 de abril, tragam estas intervenções estruturais (impermeabilização do gramado e construção de cobertura) para o debate e aprovação (ou não), agindo de forma pró-ativa. É importante que seja impedida a destruição do patrimônio arquitetônico e cultural da cidade sem aprovação legal. E que sejam criados novos precedentes de sanção e punição às empresas privadas que desrespeitam contratos, ignoram restrições e agem à revelia da Lei. A suposta “boa fé” de seus atos (ativação do complexo, reforma, investimento) não pode mascarar o fato de que construções, provisórias ou não, não podem infringir a legislação.  Ignorar esta “ausência de aprovação” pode abrir precedente para sabe-se lá quais outros tipos de irregularidades, além de poder, eventualmente, culminar na responsabilização de agentes públicos que fazem vistas grossas para esses problemas.
  • A Prefeitura também deveria estar montando um conselho do PIU Pacaembu. Para além do debate junto aos conselhos e órgãos de patrimônio, no âmbito de concessões como as do Pacaembu e do Ibirapuera, que são fruto de Projetos de Intervenção Urbana (PIUs), todas as ações deveriam estar sendo monitoradas por representantes da sociedade civil eleitos para fazer o controle social das concessões viabilizadas pelos PIUs. Entretanto, como já havíamos alertado anteriormente, o governo tem se esquivado dessa responsabilidade, alegando ausência de objeto que justifique fiscalização. Esse posicionamento foi defendido por representantes da SP Urbanismo, empresa pública à frente da elaboração dos PIUs, em reunião em agosto de 2021 entre representantes da sociedade civil, Poder Público e um Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo que pondera sobre eventuais irregularidades na não instauração do órgão de controle social, conforme previsto pelo Plano Diretor Estratégico, principal legislação urbanística da cidade.
  • Se liga, Gal! Vimos que a inauguração do “Pavilhão Pacaembu”, de acordo com informações anunciadas em reportagem do SP1 do dia 30 de março de 2022, será consagrada por um show da cantora Gal Costa. O convite à cantora da MPB é uma forma de mobilizar a simpatia da população frente à polêmica construção que, além de aparentemente ilegal, “provisoriamente” destrói um dos maiores patrimônios do Pacaembu, o campo de futebol. O valor dos ingressos também indica mudança no padrão dos eventos que ocorriam dentro do Pacaembu. Lembremos que os ingressos no Tobogã eram os mais baratos da cidade, possibilitando assistir jogos pagando 20 reais nos ingressos. De acordo com a plataforma de venda dos ingressos, o show da Gal Costa no campo de futebol concretado custará entre 195 a 345 reais.

* Stela Da Dalt é mestranda em Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo pelo IAU-USP, com formação em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP (2007-2012). Atua também como Conselheira Participativa Municipal pelo Conselho Participativo da subprefeitura da Sé (CPM-Sé). É representante da Macrorregião Centro pelo segmento dos CPM no Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), no Comitê Intersecretarial de Monitoramento e Avaliação da Implementação do PDE (CIMPDE), e no (ainda não formado) Grupo Gestor do PIU Pacaembu.