* Por Paula Freire Santoro, Laisa Stroher, Deiny Costa, Paula Victória Santos de Souza e Gabriela Azzolini

Diversos artigos estão apontando para as surpresas do Substitutivo ao Projeto de Lei do Plano Diretor Estratégico de 2014, apresentado na última semana pelos vereadores de São Paulo. Ficou evidente que as audiências públicas não discutiram grande parte deste conteúdo, só apresentado à sociedade civil recentemente. E o que apresentaram vai completamente na contramão do que foi verbalizado nas audiências, nas quais foi exposta a necessidade de limites ao adensamento construtivo que tem se dado de forma concentrada nas regiões mais valorizadas da cidade, sem evitar os impactos urbanos e ambientais desta transformação que chega a demolir quadras inteiras.

O novo Substitutivo dá estímulos e libera para um adensamento construtivo generalizado e indiscriminado, veja o mapa 2 interativo a seguir, que parece atender apenas aos interesses do mercado imobiliário financeirizado, que só tem crescido nos últimos anos. Há várias pesquisas indicando que vivemos um boom imobiliário na cidade de São Paulo. A produção imobiliária duplicou recentemente: subiu de 35 mil unidades lançadas em 2008 para 65 mil unidades lançadas em 2019 (Embraesp) – e segue subindo. Em 2022, foram lançadas 75,7 mil unidades e vendidas 69,3 mil unidades (Anuário Secovi, 2023).

Pesquisa do LabCidade e IEAUSP mostrou que esta produção se intensificou nos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, que são áreas ao longo das linhas de transporte público (ver Gráfico 1), e nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), áreas destinadas à produção habitacional para famílias com renda mais baixa. A produção destinada à média e alta renda concentrou-se nos eixos que atravessam os bairros mais valorizados, enquanto ocorreu uma verticalização mais dispersa nas ZEIS voltada ao público de baixa ou média-baixa renda. Ao mesmo tempo que, espacialmente, notamos uma tendência de enxugamento da produção imobiliária destinada aos extratos de maior renda nos miolos de bairro.

Gráfico 1 – Número de unidades habitacionais lançadas dentro e fora dos eixos de estruturação da transformação urbana na cidade de São Paulo

Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de Embraesp (2020)

Este ponto nevrálgico da proposta de revisão, que é o aumento generalizado e indiscriminado da possibilidade de adensamento construtivo, configura uma mudança estrutural, não apenas uma revisão. Altera princípios básicos que nortearam a lógica de adensamento originalmente proposta, como o adensamento próximo ao sistema de transporte, sem colocar no debate nenhuma outra lógica!

As regras atuais do jogo: adensamento nos eixos e nas áreas de projetos urbanos

O PDE de 2014 instituiu que as áreas onde é possível adensar construtivamente mais são ao longo dos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana ou na Macroárea de Estruturação Metropolitana (MEM). Na MEM o adensamento só seria permitido mediante a aprovação de um projeto urbano por lei que instituísse um Projeto de Intervenção Urbana (PIU) (como o PIU Setor Central, por exemplo). Nestas áreas e nas operações urbanas consorciadas vigentes foi permitido construir prédios de no máximo 4 vezes a área do terreno, enquanto no restante da cidade, que apelidamos de “miolo de bairro”, foi definido o limite máximo de construções com até 2 vezes a área do terreno.

Mapa 1 – Coeficientes de aproveitamento máximos do PDE 2014 de São Paulo. Fonte: elaborado pelas autoras (2023)

O plano diretor vigente reorganizou as áreas mais adensáveis, que pelas regras anteriores ocorriam em áreas dispersas, onde era possível construir de 2,5 a 4 vezes a área do terreno, trazendo-as junto às áreas com maior oferta de transporte público. Também diminuiu a possibilidade de adensamento no restante da cidade que antes variava de 2 a 2,5 para no máximo 2, fortalecendo a ideia de adensamento onde há infraestrutura de transporte.

Confira como essa nova proposta de verticalização geral e irrestrita afeta o seu bairro: 

A proposta do Substitutivo apresentado na semana passada, amplia as áreas adensáveis para patamares superiores à Lei de Zoneamento de 2004, o que ocorre em três direções. Fizemos um mapa interativo, apresentado a seguir, onde você pode ver se sua região teve o coeficiente ampliado. Se clicar na lupa e colocar seu endereço, consegue compreender se houve aumento.

 Mapa 2 – Mapa interativo com os coeficientes de aproveitamento máximos propostos pelo Substitutivo apresentado na Câmara como revisão do PDE 2014 de São Paulo. Fonte: Aluízio Marino; Paula Victória de Souza; Gabriela Azzolini (2023) – clique aqui para visualizar em tela cheia.

A primeira delas é a possibilidade de aumentar o quanto se pode construir de 2 para 3 vezes a área do terreno nas áreas fora de eixo e dos projetos urbanos, nas áreas que apelidamos de “miolos de bairros”, permitindo o adensamento longe das áreas com melhor oferta de mobilidade. Já estávamos encontrando adensamentos na MEM e nas ZEIS, onde outros incentivos construtivos já viabilizaram empreendimentos bastante verticalizados. Agora este adensamento poderá se intensificar com o coeficiente 3 indiscriminadamente, tornando o adensamento mais discricionário. Ainda, acreditamos que este aumento proposto atenderá a um adensamento de extratos de maior renda, pois os para menores renda já estavam acontecendo, por exemplo, em ZEIS.

A segunda delas é a possibilidade de que os eixos existentes e previstos no entorno de estações de metrô e trem ampliem seu raio dos 400m a 600m de hoje para até 1km da estação, e os corredores de ônibus passem de 300m para 450m. Isso significa praticamente uma triplicação do perímetro adensável com coeficiente de aproveitamento igual a 4 vezes a área do terreno, no entorno das áreas de eixo atuais. Como vemos no mapa que simula a situação proposta, como muitas estações distam em média até 1km, na maior parte dos eixos essa alteração amplia quase toda sua extensão para 1km, restando pouca cidade fora dos eixos.

Ou seja, onde a sociedade clamou por uma redução no adensamento nas audiências, poderá ser ainda mais adensado! Essa ideia implode também a vinculação do eixo ao incentivo dos modos ativos de mobilidade, já que os raios menores (de até 450m ou 600m dependendo do modal) guardavam uma lógica de deslocamento possível de se fazer a pé ou de bicicleta até as estações.

Uma terceira é a possibilidade do Arco Tietê, mesmo sem fazer um Plano de Intervenção Urbana, poderá ter seu coeficiente de aproveitamento aumentado para 4. Esta área faz parte da MEM que, como mencionamos, só pode ter seu adensamento ampliado para 4 mediante aprovação de uma lei de um PIU. O PDE de 2014 inclusive determinou prioridade para aprovação do PIU no Arco Tietê, ao estabelecer um prazo para sua elaboração até o ano de 2016, que foi sendo adiado por regulações posteriores.

Como já discutimos em diversos posts – como no caso do PIU Setor Central aprovado ano passado – a elaboração de um PIU não garante um adensamento menos predatório ou com mais equilíbrio entre oferta de infraestrutura e adensamento para diferentes classes sociais – mas sua exigência implicava na necessidade de maior tempo para o debate público e contestação dos problemas acirrados com estes projetos de dinamização imobiliária.

Mapa 3 – Coeficientes de aproveitamento máximos propostos pelo Substitutivo do PDE 2014 de São Paulo. Fonte: elaborado pelas autoras projetando o aumento da área de eixos de acordo com substitutivo proposto pela Prefeitura (2023)

O PDE atual já vem permitindo uma intensa produção imobiliária, estamos vivenciando um boom imobiliário, e ainda há vastas áreas não adensadas, nos anéis intermediários da cidade, seja ao longo dos eixos, na MEM ou nas ZEIS. Esse adensamento já vem apresentando diversas contradições que mereceriam outro post – se dá concentrado nas áreas mais valorizadas, por vezes sobre regiões que não suportam (que alagam, por exemplo), não têm seus impactos urbanos e ambientais medidos, não produzem moradia para quem precisa privilegiando a alta renda, tem produzido imóveis para investidores e não para moradia, ainda estão baseados na mobilidade por carro, não apresentando (até agora) alterações nos modos de mobilidade que mudem o modelo da cidade periférica.

E é este adensamento que estamos ampliando, agora para outras áreas, de forma indiscriminada! Será que o mercado imobiliário financeiro precisa de mais incentivos? Como fazer para que o que é debatido nas audiências públicas seja ouvido e incorporado no Substitutivo? Como fazer para que o planejamento urbano se preocupe com os territórios que precisam de atenção e não apenas para os que querem mais valorização?

(**) Nota metodológica: o mapa de projeção da ampliação dos Eixos considerou as quadras em um buffer de 1km para todas as estações de metrô e trem, e 450m para corredores de ônibus existentes, ativados via decreto e previstos considerando as áreas de ZEIS, ZER, ZEPAM de acordo com a lei vigente. Foi considerado o atual perímetro e CA do PIU Setor Central. E o substitutivo não cita a diferenciação de CA para áreas de preservação ambiental, por isso foi considerado no mapa o CA de 4 em todos os eixos.

 

* Paula Freire Santoro é professora doutora da FAUUSP, pesquisadora do programa sabático do IEAUSP e coordenadora do LabCidade; Laisa Stroher é professora da FAU UFRJ, pós-doutoranda na FAUUSP, pesquisadora do LabCidade, do Perifau da UFRJ e do LEPUR da UFABC; Deiny Costa é arquiteta e urbanista e mestranda na FAUUSP; Paula Victória Santos de Souza é graduanda na FAUUSP e pesquisadora de iniciação científica no LabCidade e Gabriela Azzolini é graduanda na FAUUSP e pesquisadora de iniciação científica no LabCidade.