baixo viaduto julio de mesquita filho credito Max Zolkwer
Baixo do viaduto Júlio de Mesquita Filho. Foto: Max Zolkwer.

Por Bianca Tavolari* e Luanda Vannuchi**

Como já comentado antes aqui no blog, a Subprefeitura da Sé lançou uma concorrência pública para concessão de uso onerosa e requalificação das áreas do baixo do viaduto Julio de Mesquita Filho e de seu entorno, no bairro do Bixiga. Lançado no dia 28 de dezembro, o edital foi uma surpresa para os grupos artísticos e pequenos comerciantes que já ocupam o espaço e que, apesar de manterem diálogo estreito com a Subprefeitura, sequer foram informados de sua elaboração.

No dia 3 de fevereiro, o edital foi publicamente apresentado, não em audiência pública devidamente divulgada, mas em reunião convocada pela Subprefeitura, por meio do seu site, com exigência de confirmação antecipada dos participantes e controle de entrada no auditório. Mesmo assim, estiveram presentes vários grupos interessados, incluindo representantes do Teat(r)o Oficina, do Terreyro Coreográfico, da Rede Social Bela Vista, do movimento negro, de escritórios de arquitetura, do Conseg Bela Vista e do Secovi.

Na reunião, falou-se sobre a necessidade de requalificação dos baixos dos viadutos na cidade de São Paulo, cerca de 150 conforme mapeamento da SP-Urbanismo, sendo 51 deles apenas na região central. Dentre estes, existem 15 ou 20 que poderiam ser revitalizados por meio de parcerias público-privadas, por terem potencial para atrair investidores e comportar comércios e atividades culturais ou educativas. O viaduto Julio de Mesquita Filho teria sido escolhido como experiência-piloto inovadora, pensada não exatamente por seu contexto territorial próprio, mas a partir de uma série de referências internacionais de cidades holandesas e norte-americanas.

Como este edital deverá servir de modelo para a concessão dos baixos dos demais viadutos da cidade, parece essencial discutir algumas das armadilhas jurídicas contidas na proposta. A seguir, apontamos algumas questões que nos parecem relevantes.

  • Maior preço

O eixo estruturante do edital é o critério de maior preço, ou seja, vence quem paga mais. O texto da proposta deixa isso bastante claro:

“este edital tem como finalidade de (sic) escolher a proposta com o maior valor de investimentos privados” (item 1.2.);

“A Comissão Especial de Licitação selecionará e classificará a proposta com o maior valor de investimentos privados no local e na região; para proporcionar a melhor ocupação do complexo privilegiando o interesse público” (item 12.2.).

Há aqui um vínculo imediato entre maior valor e atendimento do interesse público. Em outras palavras, o edital faz uma equação simples “mais dinheiro = mais interesse público”. O critério para vencer a concorrência não passa pela discussão do projeto proposto pela empresa ou consórcio. Se o projeto atender os requisitos bastante vagos do edital, está habilitado a concorrer. Uma proposta com mais abertura para espaços públicos e outra com maior destinação ao comércio de grandes redes, ambas em conformidade com os requisitos do edital, por exemplo, só competem nas cifras ofertadas.

O edital prevê uma regra para desempate, caso haja duas propostas com o mesmo valor:

“Para fins de classificação, em caso de empate entre as propostas dos licitantes, apelar-se-á a apresentação do cronograma que executar os projetos pretendidos em menor tempo e o maior número de investimentos nas áreas externas, difusas ao público” (item 10.3.3).

Percebe-se que a qualidade do projeto tampouco é um critério. O desempate é dado por uma fórmula bastante questionável: menor tempo de execução da obra e maior número de investimentos nas áreas externas. Ou seja, se houver empate, quem prometer fazer mais em menos tempo, ganha. O critério é uma promessa – nada garante que o concessionário vai de fato respeitar os prazos depois de ter ganhado. E a promessa é fazer “correndo”: mais em menos tempo. Na reunião, um dos representantes da Subprefeitura deu o seguinte exemplo: “Se eu tenho um projeto que promete terminar tudo em 8 anos e outro que vai terminar em 10, qual é o de maior interesse público? Claro que é o de menor tempo”. Respondemos a esse exemplo dizendo que, sem saber o que os projetos propõem para a área, não há como saber qual deles é mais vantajoso ao interesse público.

  • Obrigação de escolher quem dá mais?

Em resposta às críticas feitas ao critério de “quem dá mais”, a assessoria jurídica da Subprefeitura respondeu que estava impedida de incluir a qualidade do projeto no processo de escolha do vencedor. Isso estaria previsto no Decreto n. 48.378/2007, que regulamenta o uso das áreas dos baixos de viadutos e pontes:

Art. 12. O julgamento das propostas deverá ater-se ao critério de melhor contrapartida financeira para a área licitada, não podendo o uso pretendido pelo licitante, ou qualquer outro detalhe técnico, constituir-se em critério de classificação das propostas.

Em primeiro lugar, este é um decreto municipal. Decretos não são leis: não são discutidos pelo poder legislativo, são simplesmente editados pelo chefe do Executivo – neste caso, o prefeito. E é também por isso que decretos podem ser revogados por outros decretos. Em outras palavras, bastaria que o prefeito Fernando Haddad editasse um novo decreto para mudar este critério.

Em segundo lugar, a lei federal que regula as licitações e formas de contratação é a 8.666/1993. Ela está acima de qualquer decreto municipal, mesmo que ele seja mais recente e específico para o caso dos baixos de viadutos. E esta lei permite que os critérios de “melhor técnica” ou de “melhor técnica e preço” sejam adotados para contratar projetos de obras e engenharia (art. 46). Além disso, a lei de concessões públicas (Lei n. 8.987/1995) prevê que os critérios de melhor proposta técnica possam ser aplicados nas licitações (art. 15). É o caso de diversas concessões em São Paulo, como as de ônibus, por exemplo. O critério é aplicado sempre que a qualidade do serviço ou do projeto é decisiva.

Em outras palavras, a Subprefeitura da Sé não está obrigada a escolher a proposta de maior valor, sem levar a qualidade do projeto em consideração. Esta é uma escolha política que, enquanto tal, pode ser revista.

  • Consórcios e pequenas empresas

O edital proíbe ainda que empresas de pequeno porte e microempresas participem da licitação (item 5.3). A justificativa é a de que pequenas empresas não teriam condição de investir o mínimo de quase R$13 milhões que a prefeitura pretende arrecadar com a concessão. Mas o edital ainda vai além e permite que consórcios de até cinco empresas apresentem propostas (item 5.5.). Se pode até ser verdade que pequenas empresas não conseguiriam chegar no montante mínimo, isso não quer dizer que elas não poderiam se consorciar com outras – grandes, médias ou pequenas – para apresentar propostas. Como o edital proíbe sua participação, permite, assim, que um consórcio de cinco empresas grandes se forme e ganhe, sozinho, a licitação.

Além de poder bancar o lance mínimo, as empresas precisam ter experiência de gerenciamento de áreas equivalentes, de 11.500m2 ou mais, de exploração de espaços comerciais, estacionamentos e banheiros públicos (item 8.3.1.). Não são muitas as empresas que atendem a todos esses critérios. Provavelmente, gestoras de shopping center e grandes hotéis são as que mais se encaixam no perfil. Se cinco das maiores controladoras de shopping center se reunirem em consórcio, certamente ganham o edital, sem grande concorrência.

  • E o que acontece com quem já ocupa a área?

Um dos usos que já existe na área objeto do edital é o Café da Mara, que tem permissão de uso juntamente com um sacolão, uma pastelaria e um açougue, alguns deles em funcionamento ali há mais de vinte anos. Ao perguntar se seria expulsa ou se poderia ficar onde está, Mara recebeu dos representantes da Subprefeitura a resposta de que, seu café só poderia ser removido com autorização expressa da administração pública. A empresa vencedora não poderia, portanto, fazer nada sozinha no que diz respeito aos ocupantes do espaço. E, no entanto, a cláusula 40 do modelo de contrato previsto no edital diz exatamente o oposto:

CLÁUSULA 40 – DOS ATUAIS COMERCIANTES:

40.1. À CONCESSIONÁRIA ficarão sub-rogados todos os direitos e obrigações decorrentes dos Termos de Permissão de Uso – TPU, concedidos para o local a terceiros a partir da assinatura do presente CONTRATO, podendo optar:

I – pela manutenção dos Termos de Permissão de Uso – TPU, até seu prazo final ditado pelo concedente;

II – pela rescisão amigável dos Termos de Permissão de Uso – TPU, por meio de acordo com as partes contratadas; e

III – pela rescisão unilateral pelo PODER CONCEDENTE, caso os permissionários não observe o prescrito nos Decretos Municipais;

Este item determina que quem vencer a licitação poderá optar por manter, rescindir amigavelmente ou rescindir unilateralmente as permissões dos atuais comerciantes da área. Em outras palavras, a empresa ou consórcio que vencer pode expulsar quem ela quiser. Questões como estas poderiam ser resolvidas caso a qualidade do projeto fosse um critério e a manutenção e incorporação dos usos atuais, sem fazer tabula rasa, fosse uma das diretrizes do edital.

* * *

A maioria destes questionamentos foi levantada publicamente na reunião do dia 3 de fevereiro. A falta de diálogo com a população antes do lançamento do edital, às vésperas do final do ano, e a relação direta entre valor pago pelo particular e o interesse público envolvido no projeto foram elementos criticados por vários dos presentes, tanto aqueles contrários ao modelo de concessão quanto os favoráveis.

As respostas e as explicações dadas pelos representantes da Subprefeitura revelaram o despreparo da equipe técnica que elaborou o edital. Além de explicações confusas e evasivas, algumas respostas foram simplesmente erradas, na medida em que os representantes da administração disseram o contrário do que estava escrito na chamada de concorrência. Ao final de mais de quatro horas de uma reunião marcada por duras críticas da sociedade civil, o diretor de desenvolvimento da SP-Urbanismo, Gustavo Partezani, admitiu que o edital contém diversos problemas e que uma audiência pública seria convocada, após o carnaval, para rever pontos estruturais da proposta.

Da forma que está hoje, o edital privilegia a formação de blocos de grandes empresas, com elevada capacidade de investimento. Não privilegia quem já ocupa o espaço, com permissão formal ou não, a concorrência entre empresas de vários tamanhos e nem determina os usos para o espaço público. Esperamos que o edital seja revisto e que a audiência pública prometida, ainda sem data, possa repensar esse modelo, que não é adequado ao contexto do Bixiga e certamente não deverá ser uma referência para ser replicada em toda a cidade.

Bianca Tavolari é bacharela em direito, mestra e doutoranda em direito pela Universidade de São Paulo, pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia – CEBRAP e faz parte da equipe do observaSP.

** Luanda Vannuchi é geógrafa, mestre em estudos urbanos pela Vrije Universiteit Brussel, e faz parte da equipe do observaSP.