Por Letícia Lindenberg Lemos* e Débora Ungaretti**

No dia 21 de junho, a Prefeitura de São Paulo enviou à Câmara Municipal mais um Projeto de Lei (PL 404/2017) que faz parte de seu programa de desestatização. O PL permite a venda de qualquer imóvel municipal, com área igual ou inferior a 10 mil m², desde que não esteja ocupado, há mais de um ano, por serviços públicos dos setores de educação, cultura, saúde, esportes e assistência social. Se estiverem ocupados por esses usos há menos tempo, poderão ser vendidos ou privatizados, sem passar por aprovação específica do Legislativo.

Com isso, este projeto torna a venda de imóveis públicos um mero ato administrativo, ou seja, uma decisão sob responsabilidade única do poder Executivo, não sendo necessário passar por aprovação dos vereadores, nem por quaisquer órgãos com representatividade da sociedade civil. Se atualmente o controle social sobre a destinação das terras públicas já é mínimo, o PL vai reduzi-lo a zero. Trata-se de uma verdadeira ameaça de desmonte dos equipamentos públicos e das áreas verdes.

E quais são essas áreas? Não se sabe ao certo quais são, nem muito menos onde estão esses imóveis, pois não há informações e mapas atualizados e disponíveis sobre os terrenos que poderiam ser vendidos nos termos propostos pelo PL. Os impactos podem ser ainda mais graves por conta do total desconhecimento sobre o uso que tem sido feito desses imóveis, ou ainda sobre suas condições físicas. Até por isso, há previsão no projeto de lei de que o imóvel possa ser regularizado depois que for vendido, ou seja, a regularização pode ser realizada pelo comprador, com eventual apoio técnico do poder público e com abatimento dos custos de regularizar no valor do imóvel. É preocupante imaginar, por exemplo, que um processo de regularização fundiária de áreas precariamente ocupadas com moradia por famílias seja feito com pouca participação do poder público e da sociedade civil, sem levar em conta as tantas vulnerabilidades a que essas pessoas estão submetidas.

Ainda, certamente os terrenos mais interessantes para os possíveis compradores privados serão os mais próximos das áreas mais valorizadas da cidade, onde o mercado imobiliário atua mais intensamente, levando à eliminação de equipamentos e serviços públicos nessas áreas. Em relação aos equipamentos públicos e às áreas verdes, não há nenhum instrumento que proteja os imóveis ocupados por praças, habitação, coletivos culturais ou associações locais, ou mesmo aqueles que estão sendo usados pela própria Prefeitura. Além disso, a proteção definida pelo PL para os imóveis utilizados por serviços públicos há mais tempo é ilusória, pois bastará o equipamento ser desativado para que a área possa ser vendida. Ou seja, caso seja aprovado este projeto, a gestão terá um cheque em branco para fazer o que bem entender com os imóveis públicos.

O PL é uma ameaça ainda mais importante ao colocar a possibilidade de desafetar, ou seja, desvincular todos os imóveis enquadrados nas condições por ele definidas como categorias de bens de uso especial (usos institucionais) e de bens de uso comum (ruas e praças, por exemplo) para a categoria de bens dominiais (que podem ser vendidos), genericamente e em abstrato, sem que haja análise prévia ou justificativa de interesse público para cada um deles, individualmente. Isso deixaria os imóveis já desafetados (desvinculados) de determinado uso, bastando que sejam desocupados para que possam ser vendidos.

A praça em frente à sua casa, então, pode ser vendida? O caso de praças, parques e áreas institucionais ainda é mais complicado. Primeiro, porque a Constituição Estadual de São Paulo proíbe a alteração de destinação, fim e objetivo de áreas verdes e institucionais que tenham sido originadas de um loteamento. Há também um debate sobre a natureza jurídica desses espaços. Apesar de o Código Civil definir praças como bens de uso comum, alguns juristas defendem que áreas verdes não poderiam ser enquadradas como bens na mesma categoria de ruas, por cumprirem uma função “essencial para a sadia qualidade de vida” (Constituição Federal, art. 225), ou seja, para um meio ambiente equilibrado. Desse modo, as áreas verdes são garantidoras de direitos difusos da sociedade, “de natureza indivisível” (Lei 8.078/90, art. 81, parágrafo único, I), portanto, o poder público não seria o proprietário da área verde e, assim, não poderia dispor dela como bem entender, pois seria um mero gestor desse espaço. O PL poderia ter excluído as áreas verdes das passíveis de venda, mas não o fez, ameaçando a existência desses espaços já tão escassos.

A forma genérica como um pacote de imóveis poderá ser colocado à venda, do modo como está previsto pelo PL, pode inclusive ter a sua constitucionalidade questionada. Isso porque a Lei Orgânica do Município (LOM) – uma espécie de Constituição do município – afirma claramente que a venda de bens imóveis está “subordinada à existência de interesse público devidamente justificado” (LOM, art. 112), além de dever ser precedida de avaliação e autorização legislativa. O PL não justifica o interesse público para venda de cada imóvel especificamente, colidindo expressamente com as previsões da Lei Orgânica de São Paulo.

E apesar de “interesse público” parecer um conceito abstrato, não faltam previsões legais, tanto na Lei Orgânica quanto nas legislações urbanísticas e ambientais, que dão conteúdo para que se possa definir a que situações se aplica. Por exemplo, a venda de um imóvel público deve ser uma exceção, só deve ocorrer quando a área não tiver, comprovadamente, utilidade para implantação de equipamentos sociais, de lazer ou de preservação.

O PL prevê ainda que imóveis definidos genericamente pela área do terreno possam ser vendidos ou ser objeto de “qualquer outra forma de desestatização”, como, por exemplo, passar a integrar fundos de investimento imobiliário ou capital social de empresas controladas pelo município. Nesse caso, os imóveis seriam parte de um condomínio e suas cotas no fundo poderiam ser negociadas no mercado imobiliário e também no financeiro. Assim, ficariam submetidos à lógica de rentabilidade desses fundos, ligados mais aos interesses do mercado imobiliário-financeiro, e menos ao interesse público. Isso torna muito mais difícil avaliar se o “interesse público” está sendo garantido, pois os imóveis que integrarem fundos poderão ser destinados para usos muito rentáveis, como, por exemplo, abrigar um shopping center, enquanto que os “interesses públicos” aos quais deveriam estar destinados poderão ser desenvolvidos em outros imóveis ou áreas que componham este fundo, que provavelmente estarão em locais menos valorizados e não necessariamente onde a população mais necessita.

E o que a Prefeitura fará com os recursos obtidos com a venda desses imóveis? Os recursos arrecadados serão vinculados ao Fundo Municipal de Desestatização e Parceria e poderão ser destinados para investimentos sociais. No entanto, a competência para gerir estes recursos será do Conselho Municipal de Desestatização e Parcerias, que não tem sequer participação da sociedade civil, nos termos da recém-aprovada Lei nº 16.651/2017. O PL tampouco vincula recursos, e assim, não garante a disponibilidade de fluxo de caixa, para tais investimentos sociais. As alternativas apresentadas pelo PL operam dentro da lógica de rentabilidade que vem pautando a gestão pública no Brasil, desconsidera as reais necessidades da população e reforça o uso da Parceria Público-Privada como única opção de política pública.

* Letícia Lindenberg Lemos é arquiteta urbanista e doutoranda na FAUUSP. Tem especialização em mobilidade ativa pela United Nations Institute for Training and Research e faz parte da equipe do observaSP.

** Débora Ungaretti é advogada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FD-USP. Trabalhou como assessora técnica-jurídica no Departamento de Gestão do Patrimônio Imobiliário do Município de São Paulo de 2015 ao início de 2017.