minhoca_bi4nchi.png
Vista do Minhocão e da R. Amaral Gurgel. Foto: Instagram/@bi4nchi

Por Mariana Schiller* e Daniel Ávila Caldeira**

No último dia 1°, a  Prefeitura de São Paulo começou a instalar portões nas alças de acesso ao Minhocão, via elevada que liga a Zona Oeste à Zona Leste, passando pela região central. A medida acata a recomendação feita pelo promotor do Ministério Público (MP) César Martins de restringir o acesso de pedestres ao elevado. A princípio, a medida deve barrar pessoas apenas em alguns horários, mas o poder público afirma que ainda estuda em qual período os portões ficarão fechados e que até lá eles permanecerão abertos.

O MP abriu inquérito sobre o uso do espaço alegando serem necessárias medidas para garantir a segurança dos frequentadores e poupar os moradores do entorno, que se dizem incomodados com o uso intenso que o espaço vem ganhando, principalmente desde as restrições para carros sancionadas pelo ex-prefeito Fernando Haddad . Em março deste ano, já durante a gestão de João Doria Jr, o Prefeito Regional da Sé, Eduardo Odloak, afirmou que  qualquer mudança efetiva seria discutida tanto com moradores, quanto com frequentadores da via. Na época, ciclistas e demais frequentadores repudiaram as medidas apresentadas e afirmaram tratar-se de um retrocesso.

Um dos argumentos apresentados pelo MP para a restrição ao acesso de pedestres ao Minhocão, relativo à segurança dos seus usuários, leva em consideração que a estrutura não foi projetada para circulação de pedestres, e seus anteparos não poderiam evitar uma possível queda em caso de grandes eventos – embora não haja registro de acidentes. Se o local é de fato inseguro para os pedestres então a prefeitura deve tomar providências para garantir seu uso com segurança, erguendo gradis mais altos, por exemplo (como sugere, aliás, o próprio MP), e não simplesmente impedindo o acesso público da via.

Em relação ao barulho, deve-se considerar que grande parte dos usuários noturnos do Minhocão são pedestres, corredores e ciclistas cujas atividades produzem muito pouco ruído. Quanto a atividades potencialmente incômodas, como apresentações de música e teatro, deve-se pensar em soluções, como por exemplo, conscientizar os usuários de que se trata de uma zona residencial cujo silêncio deve ser respeitado a partir de determinada hora. Desta maneira, a prefeitura estaria se colocando a favor da estruturação e manutenção dos espaços públicos da cidade, e não o contrário.

Embates semelhantes entre moradores e usuários vêm ocorrendo na Praça Roosevelt e Praça Pôr do Sol, onde o cercamento é apresentado como solução para os conflitos com a vizinhança. É evidente que se deve garantir o sossego e tranquilidade daqueles que moram no entorno; porém, esse argumento não pode servir para barrar a apropriação de espaços públicos, que vem ganhando cada vez mais força em São Paulo. É importante pensar outros modelos de gestão, que conciliem interesses de vizinhos e usuários e que evitem que o incômodo com barulho e lixo – embora válido – sirva de justificativa para restringir o acesso a espaços públicos.

O movimento recente do poder público é especialmente grave porque passa por cima das discussões que a população vem tendo sobre o futuro do elevado. Mesmo que possa ser transitório, o uso que o Minhocão tem hoje deve ser integralmente levado em consideração. Ao acatar a sugestão do MP, a prefeitura parece contradizer inclusive o próprio prefeito João Doria que, em junho,  em meio ao anúncio da privatização e concessão de inúmeros bens e serviços públicos, entre eles 14 parques municipais, anunciou que estudava transformar o Minhocão em um parque nos moldes do High Line, em Nova York. Segundo o prefeito, a via ganharia faixa para bicicletas, escadas e elevadores para facilitar o acesso dos usuários. O projeto, encabeçado pelo arquiteto e ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner, preveria também a construção de uma “praia” e de rampas que ligariam o parque a alguns edifícios, cujos andares adjacentes seriam ocupados por cafés e restaurantes. Lerner teria também proposto que a parte de baixo do Minhocão seja utilizada para exposições e eventos culturais.

História

A construção do Minhocão na administração biônica do então prefeito da cidade, Paulo Maluf, durante a Ditadura Militar, teve um papel muito importante na desvalorização imobiliária de parte expressiva da região central. Os baixos do elevado se transformaram em áreas deterioradas face ao ruído e poluição dos carros, o que fez com que inúmeros moradores do entorno se mudassem. Este processo todo, paradoxalmente, abriu espaço para moradia da população mais pobre em área central, bem localizada e com maior oferta de empregos.

O Minhocão se insere na lógica urbana que privilegiava o automóvel e a construção de vias expressas, característica do século 20: a via comporta apenas carros, não há acesso para bicicletas ou pedestres e nem mesmo para ônibus, servindo apenas para o fluxo de automóveis.

Já se propôs sua demolição, nos anos 1990, na gestão da prefeita Luiza Erundina, resultando no fechamento para carros à noite e aos domingos. Foram realizados concursos públicos propondo alternativas para o elevado e a recuperação de seu entorno. No Plano Diretor Estratégico de 2014 a discussão tomou novo fôlego e foi prevista uma gradual restrição aos carros no elevado até a sua completa desativação como via de tráfego, sua demolição ou até mesmo sua transformação – parcial ou integral – em parque. Posteriormente, os vereadores aprovaram maiores restrições aos carros, abrindo a via à população nas tardes de sábado.

A apropriação

Atualmente, a via é intensamente usada durante os fins de semana. A ocupação desse espaço público apresenta tamanha adesão que começou-se a reivindicar a transformação dele em parque permanente. Em março de 2016, Haddad sancionou uma lei que criou o “Parque Minhocão”. Em julho do mesmo ano, o então prefeito alterou o nome do logradouro para Elevado João Goulart, em homenagem ao presidente deposto pelos militares em 1964.

A lei de criação do parque não determinou nenhum tipo de reforma da via e nem alteração do horário de abertura vigente. A referida lei tampouco transformou a via oficialmente em parque, apenas sinalizando a vontade do poder público de eventualmente efetiva-lo, o que permitiria a criação de um conselho gestor para discutir melhorias, alterações no funcionamento da via e até mesmo sua possível demolição, projeto apoiado por parte da população. A oficialização do Minhocão como parque representa o reconhecimento pelo poder público dos usos espontâneos que povoaram o elevado ao longo dos últimos anos. Por outro lado, em São Paulo, os parques municipais têm, por força de portarias internas da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, horário de funcionamento e acesso controlado por grades e portões – o que pode fortalecer os argumentos dos grupos que desejam restringir mais o acesso à via nos horários em que esta permanece fechada ao tráfego de automóveis.

Dentre os grupos que debatem o futuro do elevado se destacam o Movimento Desmonte do Minhocão (MDM) e a Associação Amigos do Parque Minhocão. Entre aqueles que defendem a demolição, os argumentos abrangem desde o fato de que o elevado é um símbolo político da ditadura e da hegemonia do automóvel, até os problemas de insalubridade e degradação associados à estrutura. Já aqueles que pedem sua transformação em parque permanente argumentam que há uma carência de espaços públicos de lazer no Centro da cidade e que as pessoas já usam o local como um parque.

Os argumentos dos movimentos tanto pró-desmonte quanto pró-parque são válidos, mas é necessário expandir a discussão: em caso de demolição ou de transformação em parque, o que será feito depois? Afinal, o que o Minhocão tem de tão extraordinário? A resposta é simples: as pessoas o usam. Em qualquer fim de semana esse uso se resume a pessoas andando de skate, crianças aprendendo a andar de bicicleta, casais passeando e assistindo a peças de teatro nas janelas de um apartamento. Isto é, aproveitando a cidade que é (ou deveria ser) de todos.

O debate sobre o Minhocão faz parte da mudança de paradigma em relação às cidades, cujos espaços estão sendo cada vez mais apropriados por uma população que enxerga o espaço público como uma construção coletiva. Portanto, a discussão sobre seu destino não pode ficar restrita à intervenção que será feita em um local particular. O Minhocão é um símbolo e é preciso discutir o que faremos com ele. Até que se chegue a um veredito, as pessoas parecem ter decidido como usar o local, ao menos por enquanto.

* Mariana Schiller é estudante do curso de graduação de Letras da FFLCH USP. Pesquisa espaços públicos e comuns urbanos e desenvolve iniciação científica sobre o Parque Augusta, orientada pela professora Paula Santoro. Integra a equipe do ObservaSP desde 2016. Lattes

**Daniel Ávila Caldeira é economista, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela FAU USP e doutorando em Antropologia Social pela FFLCH USP. É membro do GEAC – Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade e pesquisador do LabCidade, onde atua no projeto ObservaSP. Lattes