Por Paulo Romeiro* e Gisele Brito **
“Para um ocidental, uma máscara ritual africana poderia parecer horripilante – enquanto para o nativo poderia representar uma divindade benévola. Em compensação, para alguém pertencente a alguma religião não-europeia, poderia parecer desagradável a imagem de um Cristo flagelado, ensanguentado e humilhado, cuja aparente feiura corpórea inspira simpatia e comoção a um cristão”, História da Feiura, Umberto Eco
A administração municipal de João Doria inicia o ano com diversas ações midiáticas relacionadas ao que será uma das marcas da sua gestão: o programa Cidade Linda. Segundo notícia veiculada no site da Prefeitura de São Paulo, o projeto contempla ações de manutenção de logradouros, conservação de galerias e pavimentos, retirada de faixas e cartazes, limpeza de monumentos, recuperação de praças e canteiros, poda de árvores, manutenção de iluminação pública, reparo de sinalização de trânsito, limpeza de pixações, troca de lixeiras e reparo de calçadas.
Um programa que prega uma cidade linda, ainda que em um primeiro momento pareça inofensivo e até uma unanimidade, na realidade esconde (ao mesmo tempo em que explicita) certa visão de cidade. O que é lindo (ou feio) para a gestão João Doria?
Entre as propostas declaradas pelo Prefeito, e que demonstram claramente uma visão ideológica de beleza com viés disciplinar, está a substituição de bailes funk por bibliotecas, alternativa mais “interessante” e “divertida”, segundo a avaliação do secretário de Cultura André Sturm, e a criação do que seria uma espécie de “grafitódromo”, um local predeterminado para a realização de grafites de pixadores convertidos. “Estou sugerindo que os pixadores possam se tornar artistas. Se vierem a se tornar artistas terão nosso apoio. Se preferirem ser agressores, terão a força da lei. Não tenho medo de pixador, para ficar bem claro”, disse Doria, ainda na primeira semana de gestão.
Em resposta ao apagamento de pinturas na Avenida 23 de Maio no último sábado (14), quando o próprio Prefeito removeu desenhos e incentivou a população a denunciar pixadores e grafiteiros, o Coletivo Imargem, que nasceu às margens da represa Billings e atua em toda a cidade, divulgou uma nota em que afirma: “Se a ordem do dia é calar e apagar quem povoa as superfícies da cidade com diversidade, a ordem do dia também indica repressão e um aumento da criminalização, questões que já estão ficando evidentes no nosso dia a dia na rua. O que se quer apagar tem cor, classe social e endereço. Uma cultura de rua que vem das margens, mas que não se limita a elas, circula por toda a cidade, transpondo barreiras físicas e simbólicas. Guerrear é não querer o diálogo, diálogo que nem sequer tentou-se estabelecer. Pintar uma cidade inteira de uma só cor é tirar da visibilidade das superfícies a diversidade que faz da nossa cidade o que somos. Aqui não é Miami, aqui é São Paulo mesmo e é essa cidade que queremos para a gente. Uma cidade que, com todas as dificuldades, permite diferentes formas de experiências, vivências e circulação. Essa cidade nunca deixaremos ser maquiada. Talvez o que se enxergue no spray, nos rolinhos e nas tintas seja mesmo uma arma, mas trata-se da arma das ideias e as nossas sempre serão livres” .
Seguindo esse caminho, a tendência é que a implantação do Programa Cidade Linda se desdobre em violação de direitos de moradores em situação de rua, ambulantes e outros grupos vulneráveis que vivem, trabalham ou utilizam espaços públicos em São Paulo, impondo uma ideia de beleza associada à ordem e à limpeza, na qual as manifestações transgressoras e populares, como as pixações e os pancadões de funk, assim como os pobres, não têm lugar.
O primeiro exemplo disso foi a remoção de pessoas em situação de rua da Avenida 9 de Julho e seu confinamento sob um viaduto, posteriormente cercado com uma tela. De acordo com a explicação oficial, a ação serviria para a proteção das próprias pessoas, mas mais parece uma tentativa de simplesmente esconder a pobreza, que, na perspectiva da gestão, enfeia a cidade. Estamos de acordo que a situação de vulnerabilidade de grupos sociais, que claramente representa uma situação de injustiça social, merece atenção e atuação do Estado no sentido de oferecer a possibilidade de acesso a condições de vida adequadas. No entanto, essa não parece ser a resposta da administração municipal, que nessa ação não oferece alternativa de moradia ou mesmo de acolhimento em equipamentos de assistência social.
A opressão de grupos vulneráveis e a tentativa de expulsá-los não é uma novidade na política urbana da capital paulista. Durante a gestão de Fernando Haddad, moradores de rua denunciaram o roubo de pertences pela Guarda Civil Metropolitana e a negligência nas noites frias. As ações antipobre realizadas na gestão Serra-Kassab (2005-2008) no centro de São Paulo, como rampas antimendigo, proibição de circulação de catadores de materiais recicláveis no centro, reintegração de posse de prédios públicos ocupados por sem-teto e outras amplamente denunciadas à época, deverão ser reeditadas sob o discurso de uma cidade linda, que atende aos padrões de beleza de uma cidade global competitiva.
O anseio legítimo da população por praças bem cuidadas, seguras e agradáveis deve ser atendido, mas sem a violação de direitos e respeitando a diversidade.
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* Paulo Romeiro é advogado, mestre em Direito Urbanístico e Ambiental pela PUC-SP e doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário na Faculdade de Direito da USP. Participou da formulação do programa de regularização fundiária da Prefeitura de São Bernardo do Campo e é membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. Atualmente é pesquisador do Instituto Pólis e do LabCidade. Lattes
** Gisele Brito é jornalista. Em 2013, foi condecorada com o 17° Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos, promovido pela Comissão da Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Assembleia Legislativa de São Paulo, e com o Prêmio Compromisso com a Superação do Racismo e em Defesa da Igualdade, oferecido pela Afropress. Atualmente é bolsista do ObservaSP. Lattes
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