Na década de 80, entre o fim da ditadura civil militar e o ascensão das lutas de massas na região do ABC, um condomínio de luxo se transformaria na maior ocupação de casas da América Latina. Cerca de 1500 pessoas ocuparam mais de 500 casas, marcando aquele território como espaço de moradia, luta e resistência. Centreville, localizada na periferia da cidade de Santo André, em seus mais de 30 anos de (re)existência retrata a história das lutas urbanas pós ditadura, já que nasce no hibrido que compõe a década que nasceu – resistência contra o estado autoritário e reformulação da esquerda que passa a ver no trabalho popular espaço fundamental para a construção de uma nova sociedade. Posteriormente, com o avanço do neoliberalismo, a ocupação passa a viver na década de 90 a desarticulação dessas lutas, a ausência ainda maior do estado e, consequentemente, o aumento da violência. Atualmente, na tentativa de construção de novas formas de atuação, surge por meio de grupos culturais uma tentativa de resgate da luta através da reconstrução da memória.

Através de um contato realizado pelo dramaturgo Lucas Moura, conhecemos a atuação do Grupo Teatral SagaCidade, que estava montando uma peça sobre algumas histórias do Centreville. Para a montagem da peça o dramaturgo realizou um longo processo de pesquisa através de diversas entrevistas com moradores antigos, visitas ao local, entre outras atividades, resultando na construção de um rico acervo.

À convite do Observatório de Remoções, Lucas Moura escreveu algumas reflexões sobre sua experiência:

Observar, um verbo necessário
A etimologia da palavra observar é relacionada com “cuidar, manter seguro”, desse modo é necessário mais que visão pra observar algo ou alguém. Observar torna-se uma ação que envolve muito mais que os olhos, envolve iniciativa, esforço, e já que cuidar ou manter seguro está relacionado à uma força de oposição, (é preciso manter seguro de “alguém”, e cuidar para que “algo” não aconteça), observar pode muito bem ser um ato de resistência.

Ao observar a história do Centreville encontrei pessoas que observaram num lugar abandonado nada mais que um futuro pros seus filhos, uma moradia digna – como nos é de direito – e o mínimo de conforto para sobreviver. Quando nos damos conta de que o básico nos é negado, e que mais do que negado nos é tirado à força, temos a certeza da precariedade do tal terceiro mundo. Mas essa mesma precariedade levou a uma união sem precedente (força sindical e popular juntas), e a ação de observar culminou na ação de ocupar aquilo que seria a maior ocupação de casas da América Latina. O eco dos gritos de vitória e resistência que emanam dali reverberam com potência ainda hoje em 2017, e são extremamente necessários vide o momento em que vivemos…

Observar é mergulhar, ver é outra coisa, é possível ver sem enxergar. Eu posso ver uma criança de rua passando fome sem ter onde morar e não sentir nada, ou ver pessoas ocupando um pequeno pedaço da “terra que não é delas” e julgar que elas deveriam devolver a quem “pertence”. Mas se eu as observar de fato, no mínimo entenderei como (sobre)vivem, e terei a certeza de que as coisas não são tão simples quanto nossos olhos acusam, é preciso afundar um pouco mais a cabeça. Por isso quando nós do SagaCidade e da Cia do Nó repassamos essa história, é no intuito de cuidar pra que ela não morra no vão do esquecimento; é pra que outras pessoas as carreguem segura na memória, e repassem pra que assim ela inspire novos Centrevilles (e não o seu extremo oposto “Alphaville”). Por isso a importância de trabalhos como o do Observatório de Remoções, pois elas – as remoções – existem aos montes, muitas de forma negligente, obra dessa força de oposição que vê mas não enxerga, e quanto mais abrirmos nossos olhos para observar essa situação, mais mergulharemos, e uma vez estando no mesmo rio, teremos que nadar junto ainda que contra a corrente. E histórias como as que a Raquel Ferraz, o Calé e tantos outros contam, são como um barco a vela passando bem do nosso lado rumo a um futuro novo.