25 de março vazia em função da pandemia. Foto: Mapio

Por Luciana Bedeschi *

A pandemia da covid-19, causada pelo novo coronavírus, impõe a todos uma ordem de isolamento social e uma radical transformação – até então temporária – das condições de trabalho e de consumo. O impacto desse fenômeno no Poder Judiciário é notável e repercute em toda atividade jurisdicional. Portanto, vale observar decisões judiciais e liminares publicadas, em primeiro e segundo grau, como indicadores das relações jurídicas e socioeconômicas entre particulares e entre estes e o Estado, dentro do que vem sendo chamado de “o novo normal”.

Na primeira quinzena de março, o Estado de São Paulo e especialmente a Capital, ao toque dos primeiros casos de contaminação horizontal, editaram as primeiras normas para restringir aglomerações e reorganizar serviços públicos – conferindo força suficiente para adiar a Conferência Municipal de Habitação que se realizaria com a participação de centenas de delegados e participantes, entre os dias 14 e 15 de março passado.

Mobilizadas pela suspensão da conferência, entidades como Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA) publicaram juntas uma recomendação visando suspensão de despejos e reintegrações de posse, direcionada ao Poder Público de maneira geral.

A partir de 16 de março, Defensorias Públicas do Estado de São Paulo e da União, emitiram uma série de recomendações, notas técnicas e pedidos judiciais visando proteger direitos econômicos de pessoas de baixa renda atingidas pela pandemia, propondo ações para garantia: I) do direito à moradia contra despejos e remoções; II) de serviços sociais e de saúde às populações em situação de rua; III) da manutenção de convênios médicos; IV) do fornecimento de serviços essenciais de água, energia e gás encanado; e V) da suspensão de prestações aos financiamentos habitacionais, dirigidas a COHAB’s e CDHU.

O Poder Judiciário Paulista editou o primeiro de uma série de Provimentos do Conselho Superior de Magistratura (CSM) relacionados à pandemia alterando o ritmo da atividade jurisdicional, os prazos de manifestações em processos e os cumprimentos de atos processuais, como os mandados judiciais.

O Provimento CSM nº 2.545/2020, primeiro a ser publicado, não tratou especialmente de remoções, como os despejos e reintegrações de posse, mas sinalizou, ao suspender prazos processuais e restringir atos dos oficiais de justiça, que remoções estariam, em tese, adiadas até a segunda quinzena de abril – ou até o final da quarentena – com a normalização do expediente.

As decisões que nos afetam

No âmbito penal, inúmeras decisões pós decreto de calamidade envolvem a vida e a saúde de pessoas privadas de liberdade, sejam adolescentes, sejam pessoas cumprindo penas em estabelecimentos prisionais. É fato que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) orientou juízes, na Recomendação nº 62 de 17 de março, a adotarem medidas para reduzir riscos epidemiológicos na execução das medidas socioeducativas e medidas de prisão, inclusive com a progressão de regimes prisionais.

As decisões em âmbito penal não serão analisadas porque interessa, nessa curta análise, observar decisões cíveis, publicadas no site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que impactam no território e direitos econômicos e sociais em tempos de pandemia, e que puderam preliminarmente ser dividas em: I) decisões que suspendem atos processuais e prazos recursais; II) decisões que não levaram em conta a gravidade da pandemia; e III) decisões liminares em novos processos cujos objetos são os efeitos do novo coronavírus e a gestão da pandemia no Estado.

No primeiro grupo de decisões, os despejos e reintegrações de posse, autorizados antes da quarentena, não seriam, em tese, executadas no prazo estabelecido nos provimento CSM 2.545. Nesse aspecto, quando se trata de medida que impacta inúmeras famílias, além da figura do oficial de justiça, diversos outros órgãos públicos são destacados como Polícia Militar e Assistência Social. Ocorre que promover despejos coletivos agora significa colocar em risco, além de toda a comunidade, também um contingente de agentes públicos.

Entretanto, em decisões de ações de despejo por falta de pagamento, verifica-se que enquanto juízes determinaram expressamente a expedição de mandado de despejo somente após a normalização do expediente, outros ordenaram, sem esse critério, a imediata expedição de mandado e autorização de arrombamento, com força policial.

Em segundo grau – ou grau de recurso – decisões liminares, em âmbito do direito privado, criam precedentes para o direito à saúde no novo normal, seja pelo impedimento de interrupção de plano de saúde por inadimplemento – no caso analisado a inadimplência se resumiu a uma única parcela em mora com o plano de saúde –, seja por manutenção de decisão que indeferiu pedido de cirurgia plástica para tratamento de obesidade, uma vez que a hospitalização não é medida que se recomenda temporariamente, sobretudo com a demanda dos leitos para atendimento da pandemia.

Mas é na relação público-privado que as decisões encontradas chamam mais atenção. Ainda no tema da saúde e prevenção, se verificou um mandado de segurança promovido pela Associação dos Oficiais de Justiça do Estado de São Paulo (AOJESP) contra o Conselho Superior de Magistratura (CSM) porque o provimento CSM 2.545 omitiu o fornecimento de materiais necessários (luvas, álcool gel e máscaras) para impedir a contaminação por coronavírus de oficiais de justiça em serviço.

O pedido foi negado por falta de condições da ação, seja em virtude da ilegitimidade do CSM, tendo sido apresentado em face do coletivo e não do agente coator em si, e ainda, por não se admitir mandado de segurança contra o provimento normativo, em virtude de seu caráter genérico. Fundamento semelhante foi usado para extinguir mandado de segurança impetrado pela Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo visando impedir aplicação da norma temporária para o gozo de licença-prêmio.

Em relação à ação dos oficiais de justiça, supõe-se com a decisão em segundo grau, que sem materiais necessários para prevenir contaminações esses agentes não deverão executar mandados judiciais, ao menos enquanto não controlada a pandemia, afinal, trata-se de uma questão humanitária, uma vez que não se espera que o Poder Judiciário coloque em risco seus agentes públicos.

Desocupação em São Paulo. Foto: Mídia Ninja

As decisões que influenciam o território

No segundo grau de jurisdição, liminares do Presidente do Tribunal de Justiça reformaram decisões de primeiro grau buscando coesão, fundamentada em competência constitucional e a separação dos poderes na gestão das cidades durante a pandemia. Tais liminares reformam decisões, também liminares, publicadas em ações promovidas contra o Governador do Estado decorrentes dos decretos publicados ao longo da segunda quinzena de março.

Por exemplo: ações com o objetivo de restringir acesso de turistas às cidades de São Pedro, Bertioga, Santos e Caraguatatuba, por meio de bloqueios, que obtiveram liminares de primeiro grau autorizando o fechamento de rodovias. A fundamentação dessas decisões pelo Presidente do Tribunal de Justiça destacou que a decisão pelo bloqueio de acesso às cidades cabe ao Poder Executivo, no caso, apenas ao Governo do Estado de São Paulo.

O entendimento é semelhante em ação civil promovida pelo Ministério Público de São Paulo requerendo expressamente o fechamento de casas de culto, templos e igrejas. Segundo a liminar de segundo grau, somente uma situação extrema, como decreto de estado de sítio, poderia autorizar que o Estado obrigue pessoas a permanecerem em algum lugar e desse modo não procurarem templos religiosos.

Outra decisão do Presidente do Tribunal de Justiça suspendeu liminar concedida contra o Município de São Bernardo do Campo em ação promovida pelo Sindicato dos Servidores Públicos Municipais e Autárquicos visando impedir desvio de função de agentes públicos e da Guarda Civil Municipal em ações de combate ao coronavírus. A decisão leva a crer que, ainda que observado o desvio de função, não caberia ao Tribunal, tratando-se de uma violação de ordem pública, a organização dos serviços públicos de controle das ações municipais durante a pandemia.

É possível observar que o Tribunal de Justiça de São Paulo busca uniformizar decisões, atribuindo exclusivamente ao Poder Executivo a organização de ações durante a pandemia, escusando-se de qualquer decisão que possa significar controle e coordenação de ações no território. Entende-se que a posição visa não criar precedentes sobre o papel do judiciário na coordenação das ações de controle da pandemia.

Em vista desse posicionamento, é importante diferenciar ações de controle e coordenação das ações que buscarem eficácia de direitos fundamentais. Surge aí uma expectativa em relação às decisões de juízes de primeiro grau que efetivem garantias de direitos fundamentais, nesse caso, liminares positivas que assegurem direitos sociais sobretudo moradia, atendimento de saúde e abastecimento de serviços essenciais ao longo do período de emergência de saúde causada pela pandemia. Como serão recebidas pelo Tribunal, em caso de recurso?

No grupo de decisões que garantem direitos fundamentais durante a pandemia, destaca-se a ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Estado que revela a existência de núcleos precários de moradia em diversas áreas precárias do Estado de São Paulo, notadamente na região metropolitana, marcadas pela inexistência de abastecimento de água, elemento essencial para medidas preventivas do coronavírus.

A decisão liminar, nesta ação civil pública, determinou a apresentação de cronograma de implementação de medidas que garantam o abastecimento diário de água potável, por qualquer meio, observado o padrão mínimo por habitante estipulado por autoridade de saúde, em todas as favelas e aglomerados subnormais presentes nos municípios atendidos pela SABESP, sem qualquer cobrança de taxas ou ônus aos habitantes atendidos. É importante destacar que desta decisão cabe recurso ao Tribunal de Justiça.

Portanto, é essencial manter a mobilização por direitos fundamentais e não retrocesso dos mesmos. Nessa linha, as recomendações das Defensorias Públicas, movimentos e entidades de moradia, contra despejos, reintegrações de posse e suspensão de pagamento de prestações em programas habitacionais para população de baixa renda, têm surtido bons efeitos no Poder Executivo. Um bom exemplo a ser seguido é o do município de São Paulo, que no Decreto 59.326, de 2 de abril de 2020, estabelece carência para o pagamento da retribuição mensal nas hipóteses de permissão de uso de caráter social, a título oneroso, e de locação social de imóveis vinculados aos programas habitacionais do Município de São Paulo.

*Advogada popular, Mestre em Direito Urbanístico e Doutora em Planejamento e Gestão do Território, integrante do Labjuta/UFABC, associada do IBDU e colaboradora do BrCidades. Texto publicado originalmente no Jornal GGN.