Ocupações no Barreiro, Belo Horizonte. Foto: Denise Morado

Por Daniel Medeiros de Freitas e Denise Morado*

Diante da pandemia mundial do coronavírus, as desigualdades das moradias brasileiras passaram a se constituir como eixo estrutural dos debates em torno da crise sanitária do país, para além das históricas crises social, econômica e política. Inicialmente, cabe destacar que a situação dos maiores afetados pela pandemia em Belo Horizonte encontra-se agravada em razão da sobreposição aos danos provocados pelas chuvas de janeiro de 2020; cerca de 1.100 casas (3.000 pessoas) estão em áreas de risco geológico nas vilas e favelas da cidade, podendo o número ser maior já que as ocupações, nomeadas irregulares, não integram esse levantamento.

Diante desse cenário, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) estendeu o decreto emergencial, aprovado em função da Covid-19, aos desabrigados e desalojados pelas chuvas que seguem em casas de parentes ou de vizinhos, abrigos ou pousadas, e que não conseguiram acessar o programa Bolsa Moradia. Hoje, a PBH atende cerca de 1.500 famílias pelo programa, liberando de forma imediata o auxílio às famílias desabrigadas pelas enchentes e pelos riscos de deslizamentos e desburocratizando o acesso ao auxílio de R$ 500 (determinado no Decreto Nº 17.298/20).

Em razão das consequências econômicas decorrentes da pandemia do coronavírus, a PBH adotou contingenciamento orçamentário e financeiro que deve afetar, direta ou indiretamente, os programas habitacionais, as políticas sociais e a reconstrução das áreas afetadas pelas enchentes (excetuando-se ações da Secretaria de Saúde e da Secretaria de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania). Ainda que o importante papel desempenhado pelo poder público municipal na contenção da crise venha sendo reconhecido, em especial em relação à declaração da Situação de Emergência em Saúde Pública e à criação do Comitê Municipal de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19, integrantes de movimentos sociais, grupos de pesquisa, coletivos, partidos políticos e outras organizações da sociedade civil de BH enviaram documento à prefeitura solicitando o alargamento da atuação municipal, sobretudo no que concerne à Política Municipal de Habitação, aqui sintetizadas:

(1) suspensão do contingenciamento de gastos e ampliação de recursos para a Política Municipal de Habitação;

(2) manutenção e incremento da campanha pelo isolamento social nos assentamentos de interesse social;

(3) reconhecimento da assistência e assessoria técnica para execução emergencial de melhorias habitacionais em assentamentos de interesse social como um serviço essencial no atual contexto;

(4) suspensão de pagamento de prestações de financiamentos habitacionais existentes via Fundo Municipal de Habitação;

(5) cessão temporária de espaços – públicos ou privados – e equipe socioassistencial para viabilizar abrigamento durante o período de isolamento social, priorizando públicos de maior vulnerabilidade à doença que ainda não apresentam sintomas;

(6) fornecimento de Bolsa Moradia na modalidade Abono Pecuniário para mulheres vítimas de violência doméstica, pessoas/ famílias em situação de rua, famílias do movimento dos sem casa em situação de ônus excessivo com aluguel;

(7) implementação do programa de Locação Social e do Banco de Imóveis do Programa de Locação Social;

(8) suspensão de reintegrações de posse, despejos e remoções;

(9) promoção do acesso emergencial à água e ao saneamento para a população residente em assentamentos de interesse social;

(10) interrupção da cobrança das contas de água e luz e suspensão dos cortes no fornecimento por inadimplência;

(11) articulação da Política Municipal de Habitação com as demais políticas públicas sociais.

Para além disso, um mapeamento colaborativo com grupos, movimentos sociais, lideranças e ativistas de iniciativas em prol da arrecadação de dinheiro, cestas básicas de alimentação e produtos de higiene pessoal e de limpeza, e de ações solidárias em favelas, ocupações urbanas e periferias da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) foram organizadas pelo grupo de pesquisa PRAXIS-EA/UFMG, apoiado pela Secretaria Municipal de Política Urbana (SMPU) e pela subsecretaria de Planejamento Urbano (SUPLAN). Campanhas e demandas de periferias, vilas, aglomerados e favelas de Belo Horizonte, da Grande BH e do interior de Minas, também têm sido reunidas em plataformas digitais, como por exemplo, a Plataforma Periferia Viva.

Em Belo Horizonte, há 170 mil famílias inscritas no CadÚnico, sendo: (i) 4,6 mil pessoas em situação de rua; (ii) 68 mil pessoas, com idade acima de 60 anos, vivendo em vilas e favelas; (iii) cerca de 300 mil pessoas (87 mil domicílios) morando em 169 vilas e favelas, de acordo com Censo 2010, e, (iv) 93 mil pessoas morando em 119 ocupações urbanas, reconhecidas como áreas de interesse social, dados de 2018. De forma geral, as ações voltadas para que se garanta o direito constitucional à moradia estão sendo organizadas em três frentes

1. Ações para suspensão dos processos de remoção e despejo e manutenção do Bolsa Moradia

A Defensoria Pública de Minas Gerais solicitou ao Comando-Geral da Polícia Militar de Minas Gerais a suspensão do apoio da corporação no cumprimento de reintegração de posse ou ações de despejo em todo o estado, alegando que tais ações, nesse momento, gerariam conflito com as orientações sanitárias de que todos devem permanecer em suas casas para evitar a propagação do vírus (Ofício 95/2020, assinado pela defensora pública Cleide Aparecida Nepomuceno). Desde então, a Polícia Militar de Minas Gerais vem orientando os comandantes das unidades a entrar em contato com juízes para suspender o cumprimento dos mandados enquanto perdurar o estado de calamidade pública.

O tema faz parte do Projeto de Lei das vereadoras de Belo Horizonte, Cida Falabella e Bella Gonçalves, que propõe suspender ações administrativas ou judiciais de despejo no âmbito do município, em especial dos moradores de rua, ocupações urbanas, povos e comunidades tradicionais, famílias desabrigadas ou desalojadas no contexto das fortes chuvas e tempestades, mulheres em situação de violência doméstica e familiar, trabalhadoras do sexo, profissionais da saúde que estejam expostos à contaminação pelo Covid-19, egressos do sistema prisional e pessoas em cumprimento de medidas alternativas à prisão e que não possuam condições de moradia adequada.

Em abril 2020, associações comunitárias de BH enviaram carta assinada por 43 movimentos ligados ao direito à moradia para que prefeitura ajudasse as famílias de baixa renda a pagar o aluguel. Segundo a carta, cerca de 30 mil famílias que moram em vilas e favelas, inscritas no Bolsa Moradia e, em grande medida, chefiadas por mulheres sobrecarregadas pelo maior trabalho doméstico e cuidado com crianças e idosos, pagam aluguel em torno de R$ 700, estando financeiramente comprometidas por conta da perda de rendimentos; a URBEL encaminhou a carta para o grupo de trabalho de enfrentamento à crise estabelecido pela PBH.

2. Ações para minimização das condições de precariedade e insegurança habitacionais

As ações emergenciais nas vilas, favelas e ocupações urbanas têm minimizado as dificuldades imediatas enfrentadas pelos moradores, mas pouco tem sido feito em relação à precariedade e insegurança habitacionais dadas, entre outros, pelo adensamento de moradias, pela dificuldade de acesso ao saneamento básico (essencialmente, distribuição de água e coleta de esgoto), pelas condições de insalubridade dos territórios e pelo aumento da violência doméstica. Ainda que de modo disperso, recomendações de ações a serem executadas pela própria família e/ou com mão-de-obra local estão sendo feitas, como a  instalação de reservatórios de água, soluções de esgotamento individualizadas, remoção de infiltrações, abertura de janelas, adequação de banheiros e instalação de pias, visando a população de territórios populares quanto de ruas e de abrigos.

3. Ações para atendimento da população em situação de rua 

As ações emergenciais voltadas para a população em situação de rua incluem distribuição de material de limpeza, alimentos, produtos de higiene e, em alguns pontos de maior circulação de pessoas, instalação de pias para higienização das mãos. Além dessas medidas, o Fórum dos Trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e movimentos sociais da população em situação de rua encaminharam ao poder público solicitação com as seguintes medidas: redução da quantidade de pessoas por habitação nos abrigos existentes, ampliação de vagas por meio de auxílio pecuniário e requisição de imóveis vazios, acesso a estruturas públicas para higiene, além de condições para isolamento e tratamento da população em situação de rua que apresentem sintomas associados à Covid-19.

A garantia de abrigo temporário para a população de rua está voltada ao uso de quartos de pensões e hotéis. Em Belo Horizonte, a URBEL informa que existe um estudo sobre a utilização de cerca de 1.000 quartos de hotéis para esse fim**. Segundo o movimento Quartos da Quarentena, BH teria mais de 20 mil leitos de hotéis e uma taxa de ocupação abaixo de 10%. Uma das propostas do movimento é o uso de hotéis que possuam dívida com o poder público a partir de instrumentos legais, previstos na Constituição federal, como Requisição de Imóveis, e negociais, para que os leitos de hotéis se convertam em quartos da Quarentena. O Projeto de Lei das vereadoras Falabella e Gonçalves também prevê a requisição e arrecadação de imóveis vagos para ofertar as condições adequadas de isolamento social.

A vulnerabilidade das milhares de famílias em vilas, favelas e ocupações urbanas, bem como da população em situação de rua, escancara as desigualdades historicamente construídas no país, estruturadas e naturalizadas por um modelo de organização da cidade que, se por um lado, aglomera e adensa, por outro lado, exclui e segrega determinados grupos sociais, seja a partir da lógica de mercado, seja a partir da lógica institucional do planejamento urbano. A grande potência das ações emergenciais e das iniciativas coletivas é catalisar políticas públicas e fortalecer redes de autogestão e de solidariedade, sempre atuantes no vácuo deixado pela omissão do Estado. Por outro lado, para além do número catastrófico e lamentável de mortes causadas pela Covid-19 em Belo Horizonte e no país, existe também o potencial agravamento da exclusão, da precarização das relações de trabalho e da perda de direitos, preocupantes no momento em que o governo federal define medidas contrárias às recomendações da Organização Mundial de Saúde.

*Professores e coordenadores do grupo PRAXIS-EA/UFMG.
** Segundo fala do presidente da URBEL na “Reunião Especial – Covid-19 – Políticas de assistência social, segurança alimentar e garantia à moradia adotadas pela PBH durante a pandemia”. Realizada em 20/04/2020, na Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte.