* Por Raquel Rolnik

O I Encontro Nacional de Produção, Análise e Disseminação de Informações sobre as Favelas e Comunidades Urbanas do Brasil, realizado pelo IBGE, em Brasília, no final de setembro, foi sem qualquer exagero um verdadeiro momento histórico. Com um atraso de mais de quatro décadas, o instituto reuniu lideranças de favelas e territórios populares, movimentos sociais, pesquisadores, gestores de políticas públicas e acadêmicos para revisar a denominação e o conceito utilizados até hoje pelo IBGE nos Censos Demográficos para se referir a favelas e territórios populares: os chamados aglomerados subnormais.

Ainda na década de 1970, o IBGE empreendeu um esforço para incluir esses territórios no Censo de forma diferenciada, reconhecendo suas especificidades em relação ao conjunto da cidade. No Censo de 1980 essas áreas foram denominadas inicialmente como “aglomerados especiais” e, no estudo de 1991, a nomenclatura “aglomerados subnormais” foi usada pela primeira vez. Mas chamar de “aglomerado subnormal” não é apenas definir um nome qualquer… é um termo que define o lugar desses territórios na cidade de forma negativa – “subnormal” –, como não cidade, – “aglomerado” –, e que exerce um papel importante na economia política urbana.

E por que é absolutamente crucial rever este nome/conceito/marca? Vejamos a natureza da constituição dos territórios em nossas cidades, que tem como marco de planejamento urbano apenas um único modelo. No caso, um modelo ocidental, europeu, branco, patriarcal, baseado na propriedade privada individual e na terra e imóvel como mercadorias que, na prática, consagrou as formas de organização e vínculos com o território produzidas pelo mercado corporativo e seguidas pelas elites e classes médias como as únicas formas legítimas de morar e organizar o habitat.

A esta forma são destinadas as melhores localizações na cidade, através dos planos diretores, zoneamentos e demais regramentos e normativas que definem as formas de morar. Em que qualquer outra forma de ocupação do território, que não a hegemônica, é, portanto, residualizada, estigmatizada e não legitimada.

Nestes 43 anos, a denominação “aglomerados subnormais” cumpriu o papel de reforçar essa ideia de que tudo o que estava fora do paradigma da normativa urbanistica – que tem cor e classe – seria irregular, informal, ilegal e eternamente definido pela carência e por uma posição subalternizada nas hierarquias politicas sociais da cidade.

Para além dessa denominação carregada de preconceito, a categoria “aglomerado subnormal” também é bastante limitada para analisar as características presentes nos territórios desprezados e proibidos pelo Estado e o mercado corporativo. Estamos falando das encostas íngremes, das beiras de córrego, das áreas mais sujeitas a deslizamentos, e periferias, as mais distantes que, exatamente por serem locais que exigiam formas mais cuidadosas de ocupação que dialogassem com as características desses locais, foram escanteados pelo mercado imobiliário e ocupados justamente pelas pessoas com menos recursos, sem acesso a dinheiro, formas de financiamento e infraestrutura, que autoconstruiram seu próprio habitat.

Isso marca, claro, uma precariedade e fragilidade física e material desses territórios, mas, sobretudo, o modo de funcionamento da economia política da cidade que ali define uma espécie de cidadania subalternizada, que fundamenta formas de exercício do poder excludentes e discricionárias. Não à toa, os perímetros definidos como fora da norma e subnormais são também aqueles ocupados por sujeitos marcados para morrer (por que a polícia entra atirando nas favelas?), por bairros permanentemente ameaçados de desaparecimento e remoções e que negociam com o sistema político a cada eleição sua permanência e consolidação.

É essa população a primeira invisibilizada no momento em que uma nova infraestrutura se constrói sobre eles, sem qualquer tipo de compensação, e que fica eternamente demandando investimentos públicos, porque a cidadania nesses territórios é um verbo no gerúndio e os direitos de seus moradores precisam sempre ser renegociados todos os dias, mediados por um jogo político construído para manter tudo como está.

A substituição do termo “aglomerado subnormal” é, dessa forma, mais que uma troca de nome. É toda a economia política de nossas cidades e as fronteiras de direitos e estigmas que estão sendo revistas. E é muito importante, logo histórico, que essa mudança esteja sendo discutida a partir destes territórios, com as organizações populares das favelas, periferias e dos múltiplos nomes que os assentamentos populares têm em nosso país. Que este passo do IBGE, fruto da mobilização política e intelectual de milhares de pessoas, seja também um passo decisivo para superar este que é um apartheid estruturador de nossa sociedade e política.

 

(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade