Imagem de dois edifícios residenicias tirada de baixo pra cima com um ceu azul ao fundo
Foto: Prefeitura de São Paulo, 2021

Por: Amanda Silber Bleich, Felipe Suzuki Ursini, Carolina Heldt D’Almeida, Paula Freire Santoro

Em novembro de 2024, o LabCidade FAU-USP e a Sehab da Prefeitura Municipal de São Paulo, com apoio da FAPESP, Observatório Global de Aluguéis Temporários e Fundação Rosa Luxemburgo, organizaram o “Seminário Internacional Políticas Habitacionais de Aluguel Social”, que contou com apresentação oral de 41 trabalhos selecionados e palestras com convidados, traçando um panorama crítico destas políticas e do papel preponderante e crescente do aluguel como fronteira para acumulação do capital imobiliário financeiro. Sintetizamos nos posts anteriores os resultados e temas importantes apresentados no Seminário, que está registrado e disponível online em uma playlist no canal do LabCidade no Youtube e também nos Anais de Resumos Expandidos.

Este texto encerra a série de posts do Seminário Internacional, retomando a publicação dos Anais e revisitando os trabalhos apresentados nas mesas de forma panorâmica, com destaque à variedade das experiências que tratam das políticas públicas de aluguel. Os textos desta série pretendem analisar discussões que estiveram presentes de maneira transversal nas mesas de diferentes temáticas, como por exemplo a financeirização do aluguel, o avanço da agenda das parcerias público-privadas como alternativa proposta à gestão do parque público de locação social e seus impactos no desenho das políticas, dentre outros.

Tem-se observado um papel cada vez mais central do aluguel como solução habitacional — tanto como uma frente de expansão do mercado imobiliário, quanto como um eixo de formulação de políticas públicas por parte do Estado. Nesse contexto, o Seminário Internacional Políticas Habitacionais de Aluguel Social reuniu diversas experiências que vêm investigando esses processos, questionando quem são os proprietários que colocam imóveis para alugar, como se dá a produção dessas unidades e quais os mecanismos sendo ensaiados para a regulação deste mercado.

Com foco no Sul Global, os casos do México, Argentina, Brasil e Índia apresentados no evento demonstraram como o acesso à moradia é negativamente impactado pela atuação desregulada do aluguel temporário. Nesse sentido, algumas experiências de regulação do mercado de aluguel foram apresentadas, além de estratégias para acessar dados de plataformas digitais para compreender a distribuição territorial deste fenômeno. Também foram debatidas as consequências da atual crise do aluguel, que tem impulsionado lutas urbanas e colocado o tema no centro das disputas sobre o direito à cidade.

Efeitos do aluguel temporário e ensaios de sua regulamentação

Natalia Lerena-Rongvaux e Carolina Gonzalez Redondo apresentaram no Seminário uma pesquisa na qual procuraram caracterizar a oferta de aluguéis temporários em Buenos Aires (Mesa 5, 5.3). Mostraram que uma grande parcela desse mercado corresponde a uma miríade de indivíduos e famílias de classe média ou baixa, com um ou dois imóveis ofertados no Airbnb, interessados em complementar suas rendas mensais e, muitas vezes, gerindo o serviço de locação por conta própria. Todavia, é crescente a participação de proprietários corporativos e profissionais, que controlam várias unidades e constituem empresas para gestão dos aluguéis, com marcas, sites e até mesmo plataformas de comercialização próprias. Dentre eles, há variedade de porte e grau de profissionalização, mas sua caracterização considera a mobilização do aluguel temporário como negócio, voltado a reduzir custos, ampliar retornos e expandir suas operações reinvestindo os ganhos. 

As pesquisadoras observaram também articulações desses atores com os mercados tradicionais hoteleiros e de incorporação imobiliária, constituindo produtos voltados à locação de curta duração – intensivo em serviços, e de média duração, com baixos custos operacionais –, respectivamente. Essa produção é majoritariamente concentrada em bairros centrais e implica a estandardização das unidades, constituindo um padrão arquitetônico pouco afeito às necessidades habitacionais perenes e locais. Em um contexto de crescente inquilinização da população residente, o mercado convencional de aluguel residencial é afetado pelo aumento da renda potencial possibilitada pela locação temporária, resultando na diminuição da oferta e elevação dos preços.

O Seminário também mostrou crescentes pautas e ativismos em torno da regulação dos alugueis temporários. Levantamento recente pelo Observatório Global de Aluguéis Temporários registrou até o momento cerca de 33 experiências em 19 países que tentaram regulamentar e conter a expansão do mercado de aluguéis temporários por meio de variadas estratégias e mecanismos.    

O esforço para regulamentar o mercado privado de aluguel na Cidade do México foi abordado por Rosalba González Loyde no Seminário (Mesa 6, 6.3). Com a chegada do Airbnb na cidade, o governo adotou uma postura receptiva, tornando-se a primeira cidade da América Latina a formalizar a presença da plataforma por meio da instituição de um imposto de 3% sobre as transações realizadas. O sucesso da plataforma resultou no aumento do custo da moradia e no agravamento da segregação socioespacial, especialmente em bairros mais valorizados. Em 2024, após críticas sobre a falta de regulamentação, foram implementados alguns mecanismos de controle, como a necessidade de registro dos anfitriões, proibição de aluguéis de imóveis que tenham sido objeto de investimento público e um limite de imóveis por anfitrião e de noites alugadas por apartamento. No entanto, o regulamento enfrentou resistência de proprietários, e recebeu mais de 65 recursos para evitar as obrigações fiscais. 

Embora essa experiência represente avanços na regulamentação e controle do Airbnb na cidade, ela pode ser descrita como tímida. Regulamentada pela Lei de Turismo Local, não considera o impacto territorial da plataforma, como a concentração de unidades em áreas residenciais valorizadas, impacto no preço da moradia e aumento da segregação socioespacial. Além disso, não prevê medidas de controle da produção de novas moradias destinadas ao mercado de turismo, o que limita a eficácia das ações do ponto de vista da política urbana. 

Outros avanços em relação à regulamentação do aluguel foram observados na Índia, onde 31 milhões de domicílios urbanos estão inseridos no mercado de aluguel, conforme apresentado por Sai Rama Raju Marella (Mesa 6, 6.2). Diferentemente do México, onde o Airbnb exerce forte presença, o país possui um mercado de moradias compartilhadas para aluguel informal, não registrado, mas organicamente estruturado, e que atende migrantes, estudantes e trabalhadores de baixa renda com dificuldades em acessar o mercado formal de aluguel. 

Recentemente, o GST Council (Conselho de Impostos sobre Produtos e Serviços) recomendou a isenção de imposto para essa modalidade de moradia, com aluguéis de até ₹20.000 mensais (aproximadamente a R$1.500,00 ou US$273,00), com o objetivo de mitigar impactos da pandemia e da inflação sobre um mercado caracterizado por margens de lucro estreitas. Além disso, o Conselho reconheceu a necessidade de formalizar esse mercado, a fim de garantir acesso a financiamentos formais, taxas de juros mais baixas e uma rede de segurança financeira. A criação de uma categoria específica para essas acomodações ajudaria a organizar e proteger tanto os prestadores de serviços quanto os inquilinos.

Estratégias no acesso aos dados das plataformas digitais de aluguel

Algumas apresentações realizadas no Seminário tematizaram estratégias para manipular as plataformas digitais de aluguel, seja em vista de domínio de dados para aprofundar os estudos dos efeitos do aluguel temporário em cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro, ou ainda, como meio de articulação de informações, produção de dados e ações globais de rede de ativistas contra a expansão dos aluguéis temporários (com a rede de entidades que promoveram o Observatório Global de Aluguéis Temporários).

No Brasil, Aline Cristina Fortunato Cruvinel e Pedro Henrique Rezende Mendonça, pesquisadores do LabCidade FAU-USP e do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo, buscaram caracterizar o aluguel temporário no Rio de Janeiro e em São Paulo a partir de dados do Inside Airbnb (atualmente restrito ao Rio de Janeiro) e do desenvolvimento de um software próprio para mapear os dados destes imóveis (Mesa 6, 6.4). 

O principal desafio na análise do impacto do Airbnb é o acesso limitado e a metodologia de captura de dados, que pode gerar variações nos resultados. As análises buscaram contornar essas limitações, e os resultados indicaram que os anúncios do Airbnb se concentram em áreas centrais das cidades, ocupando espaços que poderiam ser utilizados para moradia permanente e revelam o impacto sócio territorial da plataforma. A predominância de anfitriões com múltiplos anúncios aponta para a exploração concentrada ou empresarial de grandes parques imobiliários privados.

Outra Plataforma apresentada em primeira mão foi o Observatório Global de Aluguéis Temporários (Mesa 3), que Ana Duplat da Fundação Rosa Luxemburgo pode fazer seu pré-lançamento no Seminário. É uma iniciativa global para contribuir com as lutas urbanas pelo direito à moradia e à cidade, ampliando o conhecimento sobre os impactos dos aluguéis temporários. O LabCidade FAU-USP é um dos promotores do Observatório – acompanhando pelo Habitat International Coalition – América Latina (HIC-AL), Centro de Estudios y Acción por la Igualdad (CEAPI), Fundación Rosa Luxemburgo, The Shift e Plataforma Global por el Derecho a la Ciudad, entre outros aliados e movimentos sociais que colaboram com insumos sobre casos em todo o mundo, dentre eles no Brasil. 

O crescimento do aluguel temporário em todo o mundo, e na América Latina, tem sido notado como expressão de uma frente de expansão imobiliária financeirizada, em expansão geográfica, que se verifica em várias cidades, no volume de ofertas destes imóveis, de recursos geridos através de plataformas, em um contexto de desregulamentação generalizada, incapacidade dos governos em conceber e implementar regulamentações adequadas, aspectos que terminam por resultar, muitas vezes, em competição com o mercado de habitação, em condições de preços não acessíveis à população necessitada, despejo de não pagamento de aluguel, em síntese, uma série de violações de direitos.

Crise do aluguel e as lutas urbanas

O aluguel temporário adicionou novas características ao mercado de aluguel e aprofundou a crise global do aluguel. Ao mesmo tempo, a crescente inquilinização a despeito da contínua expansão da produção da habitação e aumento do endividamento devido ao ônus excessivo com o aluguel tem causado uma reação ativista organizada de lutas urbanas em vários países. 

Marnie Brady e Luci Cavallero (Palestra) avaliam esse movimento nos Estados Unidos e na Argentina, respectivamente, destacando, em ambos os casos, como o recente contexto da pandemia do COVID 19 demarcou uma inflexão nesse processo. 

Brady apresenta os dados sobre como a crise da pandemia criou a oportunidade para a indústria de financiamento avançar no mercado imobiliário e avalia como, ao mesmo tempo, a resistência dos inquilinos mudou a escala das campanhas transnacionais em vista do “cancelamento do aluguel”. Observando o movimento nos Estados Unidos e especialmente em Nova York compara que após a crise de 2008 se sucederam reações defensivas e de proteção da moradia: Speculative Real State Watch & Pension Principles; Rent Stabilization/ Rent Control; Right to Counsel; Preserving Public Housing – sendo que a lição aprendida nesse momento foi a necessidade das campanhas de defesa dos direito dos inquilinos e das lutas pela preservação da moradia. Já o movimento pós pandemia foi mais ofensivo que defensivo e ganhou relevância a luta contra os despejos e pela estabilização do aluguel, sendo as bandeiras: “Cancel the Rent”; Rent Stabilization/ Rent Control; Community & Tenant Opportunity to Purchase; Social Housing Proposals.

Luci Cavallero demonstra que na Argentina a primeira inflexão ocorreu com a instauração do regime militar em 1976, com duas mudanças estruturais que marcam a crise do aluguel na atualidade: a financeirização e dolarização da economia e do mercado de aluguel; e o processo de desregulamentação do aluguel. Isso porque até então o Estado intervinha no mercado de aluguéis regulando o preço do aluguel e conferindo garantias de contrato de tempo ilimitado. A segunda inflexão seria na pandemia de Covid 19. Em 2020 com a crise da pandemia se ampliou a luta do sindicato dos inquilinos, que se tornou um ator da política nacional, articulando o movimento feminista “ni una menos” aos “inquilinos agrupados” na medida que o aluguel se evidencia como a grande fonte de endividamento e, ao mesmo tempo, as impossibilidades de saída das situações de violência contra a mulher na moradia – alcançando uma politicação do espaço doméstico. 

A conquista foi a Lei de inquilinos que estabeleceu frequência de 3 anos aos contratos com atualização de valores somente anual e com índice de reajuste estabelecido pelo poder público entre o salário e a inflação, além da obrigação do registro formal dos contratos. No entanto foi tal a contraofensiva do mercado imobiliário junto com a grande mídia e o governo de extrema direita que uma das primeiras medidas assim que assume o novo governo da Argentina foi a revogação da lei dos aluguéis. 

Cavallero destaca, todavia, aspectos que transcendem a experiência local e sinaliza caminhos para a articulação transversal para as lutas urbanas com a centralidade da questão da moradia, à exemplo da articulação da agenda feminsita contra o endividamento e da luta dos inquilinos pela desmercantilização da moradia.             

Nota-se nas palestras e nos trabalhos apresentados no Seminário, que as mais variadas regiões do mundo vem surgindo movimentos ativistas e iniciativas da sociedade civil em busca de alternativas e políticas dirigidas a rendas sociais, e medidas de resistência ao despejo forçado. Alguns desses movimentos foram debatidos no Seminário (Mesa 4) como a Federación de Inquilinos Nacional na Argentina e uma rede multisetorial de organizações sociais em Buenos Aires, a Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH) e o Sindicat de Llogateres (SL) em Barcelona e na Catalunha, o Movimiento de Inquilinas e Inquilinos de Caracas na Venezuela, a organização dos inquilinos em Nova York, ou mesmo a resistência presente na Vila dos Idosos em São Paulo, são exemplos que evidenciam conquistas recentes ainda que pontuais na regulação dos aluguéis, bem como representam o fortalecimento da mobilização social de inquilinos. 

A Crise do Aluguel, mas também a paulatina expansão dos movimentos ativistas, expõe cada vez mais o paradoxo do aluguel como investimento ou como moradia.

*Amanda Silber Bleich e Felipe Suzuki Ursini são mestrandos na FAU-USP e pesquisadores do LabCidade; Carolina Heldt D’Almeida é pós-doutoranda e pesquisadora do LabCidade; Paula Freire Santoro é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.