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Retomada do Estelita em 29/11/2015, após sentença da Justiça Federal de anulação do leilão do terreno do cais. Foto: Keila Vieira.

Por Edinéa Alcântara*

O que vem acontecendo no Recife, em termos de luta urbana, tem uma importância que extrapola a própria luta pelo Cais José Estelita. Envolve a compreensão da importância da paisagem ali encontrada, os aspectos culturais e históricos do lugar. Para quem não conhece o caso, trata-se de uma área de cerca de 100 mil m², no centro histórico da cidade, que pertenceu à Rede Ferroviária Federal e, em 2008, foi arrematada em leilão por um consórcio que hoje pretende construir ali um conjunto de 13 torres de luxo, de cerca de 40 andares, o chamado projeto Novo Recife.

A luta pelo Estelita simboliza o desejo de diferentes gerações que não querem apagar sua história e sua memória. E mais: querem deixar o legado material e imaterial desse lugar, que cada vez mais se torna um marco de resistência e um ponto de inflexão pelo direito à cidade.

Na disputa pelo destino daquela área, de um lado estão as representações da sociedade, formadas por grupos sociais que, desde 2012, defendem o Cais José Estelita, como o Direitos Urbanos | Recife e vários grupos e coletivos que compõem o Movimento Ocupe Estelita. Ainda do mesmo lado estão vários órgãos da Justiça: Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Polícia Federal e, mais recentemente, o juiz federal Roberto Wanderley Nogueira, que proferiu sentença determinando que o terreno do cais, cujo leilão está sendo investigado pela PF por suspeita de fraude, seja devolvido à União, e ainda seja interrompido qualquer processo de análise e aprovação do projeto Novo Recife.

Na quarta-feira da semana passada, porém, o Tribunal Regional Federal suspendeu a sentença, acatando pedido de medida cautelar do consórcio Novo Recife. Além disso, uma reunião do Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) está marcada para esta terça-feira (22), abrindo a possibilidade de aprovar, no apagar das luzes de 2015, um projeto suspeito de fraude e com vários questionamentos na Justiça ainda não resolvidos.

É importante lembrar que a sentença do juiz Roberto Wanderley Nogueira não aponta apenas justificativas jurídicas para a anulação do leilão, mas salienta a importância histórica do cais para a cidade e para as gerações futuras:

É justamente por causa dessa história que substancialmente nenhuma obra, empreendimento ou edificação que se pretenda produzir nesse ambiente social, paisagístico, histórico e cultural pode se contrapor, de forma constitucionalmente válida, a essa vocação natural do meio ambiente para que se garanta às atuais e futuras gerações plenas condições de qualidade de vida e satisfação social, autoestima histórica e identidade coletiva, honra e pundonor. A desconstrução dessa projeção intergeracional, sobre implicar autofagia, traduz um severo agravo à Ordem Constitucional estabelecida, bem como à dignidade das populações injustamente afetadas, hoje e também no futuro, porque privadas de sua própria história. Nada pode ser mais deletério em termos de civilização. Ai do povo que não se reconheça a si próprio como tal! A Constituição Federal o assevera e assegura o respeito às suas tradições em face da multiculturalidade da Nação brasileira.

[…]

De fato, não pode o coração da primeira República das Américas, filha do Recife e de Olinda, quedar subjugado à sanha patrimonialista da especulação imobiliária dos tempos contemporâneos. Há muito mais de valor histórico, paisagístico, ambiental, social e político a proteger que as economias, sempre sequiosas, dos afortunados de momento, não raro consorciados a setores do Poder Público. 

Agora temos mais uma ferramenta na luta contra o projeto Novo Recife e pela preservação da paisagem e da história do cais: um vídeo-aula para crianças, adolescentes e jovens de ensino médio, realizado por Caio Sales, e que tem por base a tese “Paisagem-postal: a imagem e a palavra na compreensão de um Recife urbano”, da Profa. Lúcia Maria de Siqueira Cavalcanti Veras, que no último dia 10 recebeu, em Brasília, o Prêmio Capes de Tese 2015, e já havia recebido o Prêmio Melhor Tese da ANPUR de 2015 .

Paisagem-Postal: A imagem e a palavra na compreensão de um Recife urbano from Caio Sales on Vimeo.

Os prêmios significam mais um passo, agora da academia, para o reconhecimento da luta pelo Estelita, sinalizando mais uma vez sua importância junto aos militantes, a sociedade civil recifense, pernambucana e brasileira, e junto aos operadores do direito envolvidos nas disputas judiciais em curso. Essa ferramenta, além de propiciar conhecimento, gera pertencimento e empoderamento, e traz as bases científicas do valor do Estelita. Por isso tem despertado tantas demonstrações positivas, inclusive em quem não entendia, tinha dúvidas ou mostrava-se contrário à preservação do cais.

Na tese, a paisagem de São José e Santo Antônio, onde está o Cais José Estelita, foi dividida em três tempos históricos:

  1. O horizonte nostálgico – o Recife do século XVII até o início do século XXI;
  2. A verticalização deslocada – a partir de 2003, com a construção das torres gêmeas;
  3. O horizonte vertical ob-scenus – tempo ainda por vir, com um skyline fora de lugar, fora de cena e de contexto, com a possibilidade de construção do Projeto Novo Recife, com 13 torres de cerca de 40 andares no Cais José Estelita.

Após entrevistar 78 pessoas, Veras chegou aos seguintes resultados: em relação à arquitetura, 70% apontam a paisagem do “diálogo horizontal” como a que representa seus desejos de futuro, admitindo novas construções, desde que respeitem a paisagem preexistente, estabelecendo um diálogo entre o passado, o presente, e o futuro.

Em relação à linha de borda, 60% dos entrevistados indicaram a necessidade de se definir uma borda de cais com acesso público às águas, com a implantação de parques lineares, praças, ancoradouros, mirantes e equipamentos de lazer.

A paisagem que menos identifica o Recife para os entrevistados foi a vista para as “torres gêmeas”. Nas palavras de um dos entrevistados: “Esta não é a nossa cidade”.

Os impactos das “torres gêmeas” e a possibilidade de construção de mais 13 torres são considerados um desastre pelos entrevistados:

As intervenções no Cais José Estelita, como as torres gêmeas, e a possibilidade de implantação do projeto Novo Recife, com mais 13 torres, foram consideradas pela maioria como um desastre histórico, social, patrimonial e paisagístico, fruto de uma gestão e planejamento negligente, que desconsidera os desejos da cidade, a história e a paisagem.

Mas o que é “paisagem-postal”?  De acordo com Veras, no vídeo:

Paisagens-postais são aquelas que identificam cidades, como impressões digitais ou assinaturas urbanas. Esta identificação não está expressa na paisagem em si, mas na relação de apreensão entre o sujeito que a observa e a transforma e a paisagem que se deixa observar e transformar, no sujeito capaz de reunir a dispersão dos dados sensíveis e manter a conexão das coisas que a revelam como paisagem. Quando as paisagens nos sensibilizam, é porque nos tocam profundamente e descobrimos em nós o complemento daquilo que percebemos, como parte do fio das coisas que as tecem. Se este sentimento é partilhado coletivamente, não estamos mais diante de um Cartão-postal, mas diante de uma paisagem-postal.

A pesquisadora sintetiza a apreensão da paisagem em quatro constatações, afirmando que:

  • o valor histórico da arquitetura dos monumentos em São José e Santo Antônio é uma “paisagem-postal”;
  • a vida vivida na linha do chão de São José e Santo Antônio é uma “paisagem-postal”;
  • enquanto existe uma incompreensão entre os arquitetos do que seja “paisagem” e “paisagem urbana”, expressa na legislação da cidade, entre os cineastas, graças ao olhar privilegiado e à capacidade de lidar com a imagem e com a palavra, a história da cidade e das pessoas estão incorporadas às suas produções;
  • e por fim, que é possível extrair a paisagem da vida vivida por um método que envolva a arte e a empiria para incorporá-la ao planejamento e à gestão urbana.

Ainda, ela desafia os arquitetos a extrapolarem a legislação, modificá-la, e a inserir a compreensão da paisagem para pensar e projetar a cidade, diferentemente do que vem acontecendo.

A luta pelo Estelita deixa de ser paisagem para cada um, para ter uma representação e apreensão coletivas, “porque nós somos paisagem”. Veras conclama, ao final do vídeo: “Até quando, então, poderemos partilhar esse sentimento? Quando é que esta compreensão vai sensibilizar também aqueles que decidem os destinos de nossa cidade?”

A batalha pelo Estelita ainda não está terminada. As últimas cenas ainda estão sendo rodadas. Alguns atores já definiram de que lado estão. Ao consórcio cabe, naturalmente, defender o Projeto Novo Recife. Os que defendem o Estelita – o MPF, o MPPE, a sentença do juiz Roberto Wanderley Nogueira, a academia, por meio da tese de Veras, e todos os grupos e coletivos que fazem o Movimento Ocupe Estelita – já se posicionaram publicamente.

Resta saber de que lado vai ficar a Prefeitura do Recife, se vai insistir na aprovação de um projeto eivado de irregularidades, objeto de várias ações civis públicas e populares, ou se vai agir com cautela, pela defesa do bem comum, do patrimônio cultural e histórico do Recife, e aguardar que as pendências judiciais sejam resolvidas.

Quem serão os indivíduos com poder de decisão – agentes públicos, conselheiros do Conselho de Desenvolvimento Urbano e representantes dos tribunais – que se posicionarão a favor da destruição da paisagem do Estelita e em prol do projeto Novo Recife? Estes, com certeza, serão cobrados, e terão uma conta alta a pagar para as gerações futuras se vierem a destruir mais esse bem da cidade do Recife.

Nós, que somos a favor do Estelita, estamos de olho e continuaremos lutando para evitar mais esse desastre urbanístico na história do Recife. Assista e compartilhe este lindo vídeo-postal que toca o coração de quem vive e de quem acompanha de longe essa luta: O Recife e as gerações futuras agradecerão.

*Edinéa Alcântara é engenheira civil, mestre em gestão e políticas ambientais, doutora em desenvolvimento urbano, prof. do Instituto Federal de Pernambuco – campus Garanhuns, e militante do Direitos Urbanos | Recife, do Movimento Ocupe Estelita e sócia-fundadora da Troça Empatando tua Vista.