Por Renato Abramowicz Santos e Felipe Villela

A última ocupação da quadra 36 de Campos Elíseos, região conhecida como “Cracolândia”, foi lacrada pelo governo do Estado na segunda-feira (05/06). Os moradores acordaram com policiais fortemente armados dentro de seus quartos, sem apresentarem qualquer mandado. A oficial de justiça só chegou horas depois, por volta das 8h30 da manhã, acompanhada por um procurador do Estado e representantes da CDHU, da Secretaria de Saúde e da Construcap, empreiteira contratada em esquema de parceria público-privada (PPP) para construção do novo hospital Pérola Byington. Os processos de remoção e implantação do projeto, no entanto, são questionados pelo Ministério Público (MP).

Caminhão na porta da última ocupação da quadra 36. Foto: Felipe Villela

As remoções na quadra começaram em abril de 2018. Desde então, pelo menos 162 famílias foram expulsas e quase todos os imóveis da quadra foram demolidos ou interditados. O último refúgio, um antigo sobrado na alameda Glete 237, abrigava em torno de onze famílias que haviam sido expulsas de imóveis na vizinhança sem receber qualquer atendimento habitacional. A maioria veio de uma ocupação vizinha, um casarão histórico na esquina da alameda Glete com avenida Rio Branco, onde viviam cerca de 70 famílias.

Os primeiros emparedamentos aconteceram dois dias após a eleição do conselho gestor da quadra 36. A constituição desse conselho paritário que reúne representantes do poder público e da sociedade civil é uma exigência legal, já que ali é uma ZEIS-3 (Zona Especial de Interesse Social em área urbana consolidada), e só foi constituído porque o MP interviu no processo. Qualquer projeto de transformação do território deve ser discutido e aprovado por esse conselho antes do início da obra. O MP acusa o governo do estado de infringir a legislação de Zeis ao contratar construtora e iniciar desapropriações, ainda em 2013, sem conhecimento dos moradores. As remoções e atendimentos também aconteceram à revelia de qualquer negociação com os atingidos pela obra, que perdem ao mesmo tempo suas casas e fontes de renda, já que muitos são comerciantes na quadra.

Conforme as demolições avançavam, o imóvel no número 237 passou a servir de depósito para materiais de comércios destruídos na vizinhança. Como aconteceu com uma oficina de conserto de eletrodomésticos, que levou dezenas de ventiladores e ferramentas para o prédio. Renata, coordenadora dessa ocupação e que mantinha um bar na esquina da alameda Barão de Piracicaba com rua Helvétia, também levou seus equipamentos de trabalho para o prédio onde morava quando seu ponto comercial foi arrasado.

Bares em demolição na esquina da alameda Barão de Piracicaba com rua Helvetia. Foto: Natalina Ribeiro
Habitações demolidas na quadra 36. Foto: Lizete Rubano

Renata vivia nesse imóvel desde 2013, após ser expulsa de onde morava por outra ação do Estado, que removeu e demoliu um quarteirão inteiro, daquela vez na esquina da rua Helvétia com alameda Cleveland. O terreno permanece vazio, com exceção de dois prédios. Na época, Renata saiu com um termo da CDHU garantindo atendimento definitivo, o que nunca aconteceu.

Agora, ela receberá um auxílio-moradia mensal de R$400, além de um segundo termo da CDHU com nova promessa de algum dia acessar uma habitação digna e com segurança na posse. Contudo, vivendo com sete de seus nove filhos e sem emprego com carteira assinada, alugar um imóvel no mercado formal é uma tarefa quase impossível. A única opção para não perder a rede de suporte e vínculos que ela constituiu na vizinhança onde mora desde que nasceu, há 35 anos, é se submeter a uma moradia precária por ali mesmo. Provisoriamente, ela foi com os filhos para uma pensão na quadra 37 e suas coisas foram para um depósito que ela mesma encontrou perto dali.

Seu irmão, Paulo, ajudou a organizar a mudança. Ele estava resignado até encontrar a oficial de justiça. “A senhora já me tirou [de casa] cinco vezes”. Ao que a oficial respondeu: “E daqui a pouco vou te tirar de novo”. Paulo está ameaçado de remoção porque mora na quadra vizinha, a 38, onde prefeitura e governo do estado pretendem demolir tudo para construir torres habitacionais também em esquema de PPP. “Eu aviso para eles não mudarem para aqui perto. Tudo isso vai cair”, ela prevê, se referindo também à quadra 37, para onde Renata se mudou.

Habitações demolidas na quadra 36 com prédios da PPP habitacional ao fundo. Foto: Lizete Rubano

Quem também estava morando na ocupação de Renata era uma senhora bastante doente junto de seu neto de 14 anos. Eles viviam numa ocupação vizinha quando, em abril, foram removidos sem receber auxílio-moradia ou qualquer atendimento habitacional. A opção encontrada foi ir para a ocupação da Renata. Enquanto os funcionários chamados pela CDHU para realizar a mudança levavam suas caixas para o caminhão, amigos acharam um quarto em uma pensão na quadra vizinha, mas o espaço era tão pequeno que suas coisas tiveram de ser despachadas para um depósito da Secretaria de Saúde na praça Panamericana, na zona oeste da cidade. Depois de um mês, ela terá de pagar uma taxa diária caso suas coisas permaneçam no depósito ou arcar com o frete de lá até o centro da cidade, onde pretende permanecer morando. Sem ter recebido nenhuma forma de auxílio público, vizinhos organizaram uma “vaquinha” para pagar o primeiro mês de aluguel dessa família na nova pensão.

Das 162 famílias expulsas da quadra 36, 122 estão recebendo auxílio-moradia pela CDHU. A maioria se mudou para um local próximo. Algumas pessoas foram para favelas na zona norte e outras para territórios populares nas zonas leste e sul. Com a dispersão, a participação popular no conselho gestor é incerta.

Expulsões e demolições apressadas e arbitrárias são eventos recorrentes naquela região, sempre com a justificativa de acabar com a “Cracolândia” para “revitalizar” a área . Apesar disso, a concentração de usuários de drogas e pessoas em situação de rua não diminuiu por ali. Ao contrário, o arrasamento de grandes áreas, que permanecem abandonadas por anos, só faz crescer a população que vive nas ruas da área central, e aumentar o sofrimento das pessoas com vidas marcadas pela sucessão de habitações precárias e provisórias.