Por Isadora Guerreiro e Aluízio Marino

O presidente Jair Bolsonaro assinou ainda no seu primeiro mês de gestão uma alteração no decreto 5.123 de 2004, que versa sobre o registro, a posse e a comercialização de armas de fogo e munição no país. A partir dessa alteração, fica permitida a posse de armas nos estados da federação onde os homicídios superaram a taxa de 10 para cada 100 mil habitantes. Curiosamente, todos os estados estão nessa situação. Mais curioso ainda é o fato de que o documento utilizado para subsidiar o critério, o Atlas da Violência 2018, se posiciona contrariamente a flexibilização da posse e do porte de armas, apontado a complexidade da violência no país.

É evidente que armar a população não irá diminuir os alarmantes índices de violência nas cidades. Então, quais as motivações por trás disso? No discurso que acompanhou a assinatura do decreto, o presidente reforçou uma das narrativas de sua companha: “esse decreto foi feito por muitas pessoas de bem, para que o cidadão de bem possa então, nesse primeiro momento, ter a sua paz dentro de casa”.

Mas como definir, na lei, tal “cidadão de bem”? Supondo que exista de fato essa categoria, por consequência, deve existir sua antítese: o “cidadão de mal” ou “matável”. O texto original do Decreto de 2004 (que não sofreu alterações), no artigo 12, dentre outros critérios, estabelece que aquele que pode ter posse de armas deve: “V – apresentar documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa”. Para tanto, deve apresentar endereço da empresa ou órgão em que trabalhe e comprovante de residência. Isso significa que a população em empregos precários e moradia não regularizada não podem ter posse de armas. Seriam então os “matáveis”, já que não se encaixam nos critérios dos “cidadãos de bem”?

Antes de tudo, é necessário deixar claro que não defendemos a facilitação da posse de armas: resumir a questão da violência a um problema individual, que causa ainda mais violência, não nos parece razoável. Em 2016, o país alcançou a marca histórica de 62.517 homicídios, o que equivale a uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, 30 vezes mais alta que a taxa da Europa. Apenas nos últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas, vítimas de homicídio no Brasil. Ao analisarmos as taxas regionalmente, os números são ainda mais alarmantes – principalmente no Norte e Nordeste. Além disso, o Atlas da Violência evidencia o contraste regional, geracional e étnico na dinâmica dos homicídios brasileiros:

Quando analisamos a violência letal contra jovens, verificamos, sem surpresa, uma situação ainda mais grave […]: quando considerados os jovens entre 15 e 29 anos, observamos em 2016 uma taxa de homicídio por 100 mil habitantes de 142,7, ou uma taxa de 280,6, se considerarmos apenas a subpopulação de homens jovens. A juventude perdida trata-se de um problema de primeira importância no caminho do desenvolvimento social do país e que vem aumentando numa velocidade maior nos estados do Norte.

Outra questão […] é a desigualdade das mortes violentas por raça/cor […]em 2016, enquanto se observou uma taxa de homicídio para a população negra de 40,2, o mesmo indicador para o resto da população foi de 16, o que implica dizer que 71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no país são pretas ou pardas. (IPEA, 2018. p. 4)

Também as residências mais armadas implicam em maior vulnerabilidade das mulheres. Segundo os dados disponíveis no portal de transparência da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, entre janeiro de 2013 e agosto de 2018, 2.314 mulheres foram vítimas de homicídio doloso. Destas, 1.047 (45%) foram assassinadas dentro de casa.

A análise urbana se mostra aqui fundamental, pois os cidadãos mais matados são os que vivem nas periferias metropolitanas, em locais onde as moradias são mais precárias do que em outros. O mapa abaixo sobrepõe os homicídios dolosos neste mesmo período em parcela da Região Metropolitana da São Paulo e os setores censitários com maior população autodeclarada preta ou parda. Vemos, portanto, que o cidadão mais matado tem cor, idade, gênero e lugar na cidade.

Mapa: Aluizio Marino, LabCidade

Mesmo em São Paulo, onde a taxa de homicídio segue uma trajetória consistente de diminuição desde 2000, verifica-se que os homicídios (e a violência em geral) possui uma geografia específica. Verifica-se, na capital, a concentração de homicídios nas periferias e no centro antigo, territórios também marcados pela precariedade habitacional.

Mapa: Aluizio Marino, LabCidade

O cidadão mais matado é, portanto, aquele que não se enquadra nos critérios legais de “residência certa”. Concluímos que o “cidadão de bem” do discurso do presidente não é o cidadão mais matado, que teria, hipoteticamente, direito individual de se defender. A violência do Estado e da sociedade para com estes cidadãos é anterior às taxas de homicídio, mas também posterior: é-lhes negada sumariamente a categoria de “cidadão de bem”, ainda que possam ser trabalhadores honestos que, em grande parte das vezes, com muito custo, construíram, ao longo de décadas, sua moradia na periferia, ainda que não regularizada. Vemos, portanto, que tal cidadão mais matado é também o mais “matável”, pois não tem, de acordo com a lógica apresentada no decreto e pelo presidente, o “legítimo direito” “de ter a sua paz dentro de casa” pelo simples fato de não ter emprego e moradia regulares, a realidade da maioria da população brasileira.