Manifestação da comunidade da Torrinha na Sé, 28/12. Larissa Lacerda

Texto e fotos por Larissa Lacerda *

Seu José** é cearense, mas vive em São Paulo há 33 anos. A vida por aqui tem sido difícil, sua esposa faleceu há quase 20 anos, durante o parto de sua terceira filha. Desde então, ele se responsabilizou pela criação dos filhos graças ao trabalho como pedreiro; no entanto, sozinho com três crianças, sempre teve dificuldade em alugar e manter uma casa — acredita que já se mudou mais de 20 vezes ao longo desses anos até chegar à Torrinha, extremo norte do distrito de Tremembé, zona norte de São Paulo, onde há 3 anos e meio fez seu lar.

A ocupação Torrinha, como é conhecida, era o lar da família de José e cerca de outras 1200, em torno de 5 mil pesoas, até a última segunda-feira, 2 de dezembro, quando foi removida por  uma ação de reintegração de posse. Tendo início em julho de 2016, a ocupação cresceu ao longo do tempo e foi se espraiando pelo grande terreno, uma área de pouco mais de 100 mil m². Segundo relato de moradores, o terreno estava abandonado há anos, servindo como depósito de entulho e até mesmo um cemitério clandestino.

O que se iniciou com um pequeno grupo de famílias foi crescendo com a chegada de outras, vindas sobretudo de bairros do entorno. A narrativa é quase sempre a mesma: a fuga do aluguel. Até segunda-feira 2 de dezembro, a ocupação se dividia em cinco localidades: Torrinha, Balança, Casa Amarela, Cidade Alta e Terra Prometida. As casas que se encontram nas duas últimas localidades estão fora do perímetro da ação de reintegração de posse, que incidiu sobre uma parte do imóvel rural, de cerca de 84 mil m².

A denúncia sobre a entrada de pessoas no terreno foi realizado dias após a ocupação, uma vez que um dos herdeiros que reivindicam a área é vizinho do terreno. A primeira decisão em favor do proprietário saiu em março de 2017, mas as famílias se organizaram e, com o apoio de advogados e da Defensoria Pública de São Paulo, recorreram da decisão. Desde então, a disputa judicial pela terra está posta; a insegurança da posse não impediu que as famílias continuassem chegando à ocupação — seja por desconhecimento, necessidade ou ambos.

Foi esse o caso de Carolina, moradora da Torrinha há 10 meses. Baiana, mora em São Paulo há 15 anos. Mãe de duas filhas e trabalhando como cuidadora em uma casa de família no Tucuruvi, construiu sua casa para fugir do aluguel. Antes de chegar à Torrinha, passou por outra ocupação em um bairro próximo, mas ficou receosa frente aos comentários sobre a possibilidade de retirada da ocupação. Agora, lamenta não ter permanecido por lá.

Foi este também o caso de Joana, mãe de duas filhas com necessidades especiais. Ela veio da mesma ocupação que Carolina; seu marido foi demitido do trabalho anterior e, com o dinheiro do FGTS, investiram na casa para onde se mudaram há 8 meses. Lucia, uma imigrante boliviana que também morava na ocupação, comenta: “a gente investe porque quer casa né, tudo é melhor que aluguel”.

Conheci seu José, Carolina, Joana, Lucia e outras moradoras e moradores poucos dias antes da ação de reintegração de posse que os deixou sem casa. Na quinta-feira, 28 de novembro, moradores da Torrinha se reuniram em frente à Catedral da Sé, no Centro de São Paulo — cerca de 1h30 de distância da ocupação — para saírem, juntos, em caminhada ao Tribunal de Justiça de São Paulo, onde os advogados tentavam sensibilizar os juízes que decidiriam sobre um novo pedido de suspensão – mais uma parada na longa, e angustiante, batalha judicial. Sentada nas escadarias da Catedral da Sé, Carolina conta que a incerteza em torno da moradia estava deixando-a doente. Há meses só dorme com medicamentos e tem sido acompanhada por uma psiquiatra. Seu José já estava há dias sem dormir de ansiedade.

Ainda assim, durante a manifestação na Sé, muitas famílias acreditavam ser possível uma decisão favorável. Outras já tinham começado a buscar alternativas caso a reintegração se efetivasse.

Ação de Reintegração de Posse na Torrinha.

Na segunda-feira seguinte, antes das 7 horas da manhã, os caminhões de mudança chegaram à ocupação e parte da rua foi fechada pela Polícia Militar. Dezenas de PMs cercavam a área de maneira intimidadora e ostensiva. Além deles, um caminhão dos bombeiros e uma ambulância compunham a operação. Moradores lamentavam a ausência da Secretaria da Assistência e Desenvolvimento Social, da Secretaria de Habitação do Município e da Zoonoses, responsável por recolher os animais. Apenas uma conselheira tutelar esteve presente, buscando abrigo para as famílias que não tinham para onde ir.

O dia foi marcado por diversos momentos de tensão e possibilidades imediatas de conflito entre os/as moradores/as e a PM e Bombeiros. Logo pela manhã, uma casa de madeirite pegou fogo no momento em que moradores terminavam de retirar seus pertences – roupas, alguns poucos móveis, objetos pessoais. Os advogados que auxiliam moradores da Torrinha tentavam, mais uma vez, barrar a ação no Fórum de Santana, ao mesmo tempo em que explicavam às famílias quais localidades seriam reintegradas e quais casas iriam permanecer – o que gerou mais dúvidas entre os moradores. Em outro local da comunidade, o trator avançava sobre as casas recém desocupadas, por vezes antes mesmo dos moradores terminarem de retirar os itens da casa de alto valor e que poderia ser reutilizados em outras moradias, como portas, janelas, telhas e caixas d’água.

O movimento de pessoas transitando com seus pertences em carros, kombis e nos caminhões de mudança disponíveis era intenso. Em pé, ao lado de suas coisas na calçada, Carmem, também moradora da Torrinha, ainda estava esperançosa com uma decisão de suspensão da ação que poderia chegar a qualquer momento. Por precaução, ela já havia alugado uma casa de dois cômodos, próximo dali, por R$ 450: “Que não cabe nem minhas coisas”. Próxima à Carmen, Dona Maria me fala que vai morar na casa do filho, na Vila Maria. Seu José conseguiu um lugar para ficar por três meses, mas depois terá que procurar uma casa de aluguel. Alguns moradores foram por conta própria à Subprefeitura de Jaçanã-Tremembé para fazer um cadastramento no Centro de Referência da Assistência Social – CRAS, em busca de algum auxílio.

Já no grupo de WhatsApp de outra ocupação perto dali, circulam rapidamente muitas mensagens. São pedidos de doação de madeira, vaso sanitário e de mão de obra para construção de barracos numa área ocupada próximo à Torrinha para as famílias que não conseguiram lugar para se abrigar. Ao longo do dia, uma moradora da ocupação vizinha recebia algumas crianças em sua casa para almoçar e brincar, enquanto seus pais buscavam algum teto, mesmo que provisório, para morar

No mesmo momento em que casas eram destruídas, a poucos metros dali outras tantas eram levantadas. Desde abril de 2018, o LabCidade acompanha o ciclo de remoção-nova ocupação-remoção que têm transformado o território da região, particularmente nas áreas próximas às obras de implantação do trecho norte do Rodoanel Mário Covas. Ações de reintegração de posse como a realizada no dia 2 de dezembro, sem nenhuma alternativa habitacional oferecida às famílias pelo poder público, aprofunda o cenário de precariedade habitacional na cidade de São Paulo e estimula a produção de novas ocupações de terra, por vezes, mais precárias do que aquelas de origem das famílias.

* Doutoranda na FFLHC e pesquisadora do LabCidade.
** Os nomes são fictíicos para preservar a identidade das pessoas.