Danilo Verpa/ Folhapress

Por Guido Otero, Marina Kohler Harkot, Paula Freire Santoro*

Em fevereiro deste ano foram anunciados os primeiros estudos para a implantação de um trecho do Parque Minhocão a partir de um PIU (Projeto de Intervenção Urbana). O Plano Diretor Estratégico e uma lei específica (Lei Municipal nº 16.833/2018) propunham uma apresentação deste PIU até 2020 como um processo de “ desativação gradativa do elevado [João Goulart, conhecido como “Minhocão”] como via de circulação veicular, estímulo à realização de atividades culturais e esportivas nos períodos de interdição ao tráfego e obrigatoriedade de propor a transformação parcial ou total do elevado em parque” (Gestão Urbana, 2019). Já tratamos sobre o destino do Minhocão em post anterior que tratou da proposta que apelidamos de “meio a meio” meio parque, meio via elevada – em texto que recuperou o tema que sempre aparece nos debates dos que querem que vire parque, que é a possibilidade da região se transformar imobiliariamente, ou seja, não se trata de transformar o elevado parcialmente em parque, trata-se de valorizar toda a região de seu entorno.

O modelo sempre citado é o do High Line de Nova York/EUA (há tempos já argumentamos que o “Minhocão não deveria ser o nosso High Line”) que promoveu uma mudança nos parâmetros de uso e ocupação do solo vigentes, conhecido como “rezoneamento”, valorizando os imóveis no seu entorno, exatamente nos moldes que pode ser viabilizado pelo PIU. Neste sentido, discutir o PIU Parque Minhocão é fundamental, pois ele é um “projeto estratégico”, inclusive dentro de um outro PIU, o PIU Setor Central, sobre o qual também escrevemos em momentos anteriores (veja aqui, aqui e aqui).

O resumo da ópera: está em discussão um projeto de intervenção urbana não só no Minhocão, mas também em seu entorno, com a intenção de implementar 900 metros de parque na estrutura existente do elevado até o final de seu mandato do atual prefeito Bruno Covas – claramente mirando nas eleições municipais de 2020. O que está em jogo, neste texto, não é batermos o martelo sobre a manutenção do Minhocão enquanto via para automóveis, a ampliação dos horários de abertura para lazer, a sua transformação em parque ou a demolição da estrutura… Até mesmo entre nós, os três autores, não há consenso sobre qual é o melhor caminho, embora concordemos na restrição da estrutura para o trânsito de veículos. O que queremos é discutir o PIU Parque Minhocão em um âmbito mais amplo, como MAIS uma das ações que estão transformando a região e afetando a população que hoje vive ali.

Vários processos e regulações incidem sobre a região. Além do PIU Parque Minhocão que abarca uma região no entorno do elevado, os lotes vizinhos ao Minhocão também fazem parte do PIU Setor Central. Estudos relativos à implantação do Parque Minhocão configuram, portanto, um novo capítulo deste mesmo projeto. Também incidem sobre a gestão deste espaço, algumas decisões judiciais obtidas a partir de ações civis do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP). São elas o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC nº 295/2015), que delegou à Prefeitura a responsabilidade quanto à segurança do Elevado quando da realização de eventos nele. Esta impediu, por exemplo, que blocos de carnaval pudessem levar seus desfiles para a parte de cima do Minhocão. Há também a recomendação do próprio Ministério Público para a elaboração de um Projeto de Intervenção Urbana (PIU) que avalie as medidas de desativação do Elevado, visando, principalmente, a realização de estudos de impacto no trânsito (Ofício 1112/19 da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, veiculado no processo SEI n. 6010.2019/0000611-2). A partir destes elementos foi, então, instituído o Grupo de Trabalho Intersecretarial responsável pela elaboração de um relatório com as medidas necessárias para a implementação do parque.

Assim, foi só depois do anúncio público do projeto do Parque Minhocão pelo prefeito, em fevereiro de 2019, que surgiram as leituras urbanísticas da região que foram levadas à consulta e audiência públicas, realizadas entre maio e junho em torno do diagnóstico e programa de interesse público do PIU. A Defensoria Pública de São Paulo, após uma primeira leitura do material realizado pelo Grupo de Trabalho Intersecretarial e apresentado pela SP Urbanismo, levantou questionamentos acerca das conclusões do diagnóstico em relação à população de baixa renda que mora no entorno do Minhocão, com um olhar de contexto mais geral de investimentos públicos visando a “transformação do Centro”. Estes investimentos podem ter como resultado a expulsão de baixa renda que vive em moradias em região central, localizadas no entorno do Elevado.

Tal percepção está atrelada à pesquisas realizadas pelo LabCidade que mostram que é uma região que é uma “nova frente de expansão do mercado imobiliário”, com o lançamento de uma série de produtos habitacionais voltados para classes média e média alta. Também são característicos dessa área os novos produtos imobiliários baseados em contratos temporários e mais flexíveis de aluguel, mediante preços mais altos e menor área útil de venda / locação. Por isso, a Defensoria nos provocou a fazer uma leitura sintética sobre quem mora na região e sobre a situação das moradias precárias encontradas, na tentativa de desenhar melhor qual será a população afetada pelas alterações urbanísticas que acontecerão na área, em função deste Projeto.

Para tal, realizamos uma análise do material divulgado pela SP Urbanismo acerca do PIU e utilizamos, em contraposição, uma série de dados oficiais e relatórios públicos para melhor compreender a população do entorno que poderá ser afetada pelo PIU, principalmente mapear aqueles em situação de maior vulnerabilidade e possíveis desdobramentos do projeto alguns dos principais pontos que constatamos a partir das análises feitas foram:

O Minhocão como fronteira de diferentes rendas familiares e raças

O Minhocão é uma zona de transição de rendas familiares: embora a ocupação de seu entorno direto seja de população que já é de renda média (há uma predominância de rendimentos familiares médios que variam entre 6 e 10 salários mínimos), há uma clara divisão entre os dois lados do Elevado. Nos bairros de Santa Cecília, Higienópolis, Pacaembu e Perdizes reside uma população com renda muito mais alta do que “no outro lado”, que diz respeito aos bairros de Campos Elíseos e República.

Fonte: Censo 2010, IBGE. Elaboração: Guido Otero, 2019.

Nota-se, também, que é nas áreas com rendimentos médio e baixo (até 6 salários mínimos) que há uma maior concentração de população preta e parda, mais próximo ao que os dados apontam como sendo a porcentagem média de pretos e pardos no município de São Paulo.

Fonte: Censo 2010, IBGE. Elaboração: Guido Otero, 2019.

O entorno do Minhocão concentra população em situação de vulnerabilidade, na figura de moradores de “cortiços” e pessoas em situação de rua

De acordo com dados da própria Prefeitura, o entorno imediato do Minhocão concentra uma grande quantidade de moradias consideradas “cortiços” e pessoas em situação de rua. Nota-se que ambos estão presentes em quase todas as quadras e ruas, com exceção da região mais próxima aos bairros de Higienópolis e Pacaembu, e há um perceptível aumento na população em situação de rua quanto mais em direção ao centro. Também é possível constatar a existência de uma rede socioassistencial, na qual essa população de baixa renda se apoia e que está concentrada também no entorno do Elevado.

Fonte: Habitasampa, SEHAB 2006; CEGEO, FIPE, 2009 e 2015. Elaboração: Guido Otero, 2019.

Remoções, ameaças de remoção e transitoriedade permanente: vulnerabilidade que é traumática

Dados processados pelo Observatório de Remoções, um dos projetos do LabCidade, nos permitiram constatar que esta é uma região com forte presença de populações vulneráveis, principais afetados por ameaças e processos de remoção e insegurança habitacional, uma vez que, as moradias alugadas, muitas vezes o são mediante contratos precários. Além disso, essa população também é afetada pela corrente crise econômica e de empregos, estando mais suscetível a trabalhos sem contrato e direitos trabalhistas, ou mesmo sem empregos fixos, dependendo exclusivamente de “bicos” para sobreviver.

Fonte: Observatório de Remoções, 2019; Tribunal de Justiça de São Paulo, 2019; Google, 2019. Elaboração: Aluizio Marino, 2019. Ps: Esbulho Possessório é um termo jurídico para invasão de terreno ou edifício alheio.

Assim, se configura no território nos arredores do Minhocão, um processo que chamamos transitoriedade permanente, que mantém a vida desta população em suspensão, sob um estado constante de espera pela próxima ameaça ou despejo, já que podem ser deslocados a qualquer momento, a depender da implementação de políticas pelo poder público. Com isso, há a consolidação de um ciclo vicioso que mantém a região encortiçada, tornando ela mesma uma área de transitoriedade permanente.

Essas questões, no entanto, não configuram nenhuma novidade para quem frequenta  a região ou trabalha com essa pauta. Entretanto, o que é inesperado é que o PIU Parque Minhocão não promova o diálogo com essa população, visando dar soluções, também, para tal condição de transitoriedade permanente. Após a análise dos materiais disponibilizados pela Prefeitura parece, para nós, que o Projeto de Intervenção está focado em uma proposta de embelezamento e limpeza – que não deixa de ser importante para esta região dos baixios do elevado, que já foi diversas vezes alterada e que enfrenta problemas de insalubridade, poluição do ar, sujeira nos espaços públicos. Mas, também, deixa uma sensação que o objetivo final é atuar, mesmo que indiretamente, para o processo de mudança no padrão da produção imobiliária em curso na área, voltada para camadas médias e altas.

* Arquiteto, mestrando na FAU-USP; mestra e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional na FAU – USP, pesquisadora do LabCidade; Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade;