
Depois da Favela do Moinho, o teatro é o novo campo de batalha nos Campos Elíseos, na guerra travada pelos governos estadual e municipal de São Paulo contra quem vive na região
A região dos Campos Elíseos, no coração de São Paulo, tem sido palco de uma guerra travada pela prefeitura e o governo do estado com o objetivo de eliminar e destruir qualquer vestígio de vida no local, para que a área possa ser entregue “limpinha”, sem vida , para que o setor imobiliário corporativo possa ali produzir os seus produtos. Nesse cenário, o Teatro de Contêiner, administrado pela Companhia Mungunzá, emerge como um ponto crucial de resistência e um exemplo das inconsistências e da falta de diálogo por parte das gestões municipal e estadual.
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A saga do Teatro de Contêiner com a gestão Ricardo Nunes (MDB) é emblemática. A prefeitura notificou a Companhia Mungunzá para deixar o terreno público na Luz, ocupado desde 2016 pelo o teatro e que foi inaugurado no início de 2017. A justificativa do governo é a utilização do espaço para um projeto habitacional parte de um “amplo projeto de revitalização” da região. A execução dessa ordem de despejo foi marcada pela ação truculenta da Guarda Civil Metropolitana (GCM), que desocupou o prédio tombado ao lado do teatro, usado para guardar cenários e figurinos, para demoli-lo.
O Teatro de Contêiner Mungunzá é muito mais do que um espaço físico. É um equipamento cultural ultra premiado, com programação agendada até o final do ano e apoio de leis de fomento municipal e estadual. Sua profunda relação com o território é inegável, oferecendo não apenas arte e cultura, mas também um espaço lúdico para crianças e apoio social a mulheres e pessoas trans por meio do coletivo “Tem Sentimento”. A companhia chegou a propor um projeto que manteria o teatro no local e abriria espaço para um prédio residencial no mesmo terreno, e também apresentou outras quatro sugestões de espaços alternativos. Contudo, essas propostas foram rejeitadas pela prefeitura, que por sua vez ofereceu terrenos que os artistas consideraram inviáveis, pois descaracterizariam o conceito do teatro e seu trabalho enraizado no local.
As inconsistências e contradições nos argumentos governamentais são evidentes. Primeiramente, o suposto projeto habitacional que justificaria a urgência do despejo “ninguém nunca viu “. O Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que instaurou um inquérito civil para apurar “ato doloso de improbidade administrativa” por parte da gestão Nunes, criticou a “ausência de informações detalhadas do projeto habitacional” e a falta de diálogo com os artistas.
A urgência da desocupação, alegada pela prefeitura, foi frontalmente questionada pela juíza Nandra Martins da Silva Machado, da 5ª Vara da Fazenda Pública. Ao conceder uma liminar que garante a permanência do teatro por 180 dias, a juíza destacou que “a crise habitacional nesta capital paulistana não é questão nova” e que é “plausível questionar se não haveriam outras opções de imóveis desocupados”. Ela reconheceu o êxito do teatro em sua função social e cultural, com parcerias renovadas pelo poder público e reconhecimento da sociedade.
O próprio prefeito Ricardo Nunes apresentou argumentos conflitantes. Ele afirmou que os artistas são sócios de uma empresa privada que cobra por ingressos, funciona irregularmente sem documentação dos bombeiros e que, ainda assim, recebeu R$ 2,5 milhões de sua gestão. Em resposta, a companhia Mungunzá esclareceu que possui auto de vistoria para receber público de até 99 pessoas, funcionou regularmente em gestões anteriores, e que os recursos mencionados vêm de editais públicos que garantem gratuidade ou preços populares. Além disso, afirmaram ser uma entidade jurídica séria, com impostos em dia e auditorias regulares.
A conexão com a “guerra nos Campos Elíseos” se torna ainda mais evidente quando se considera o contexto da Cracolândia. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que o fluxo da Cracolândia era influenciado por interesses imobiliários e pelo crime organizado na região central de São Paulo. A remoção do Teatro de Contêiner, que tem em seu repertório peças que fazem menção direta ao bairro e à Cracolândia, alinha-se perfeitamente à estratégia de “limpar” a área , desconsiderando o valor cultural e social já estabelecido.
A mobilização do campo artístico cultural de São Paulo, o repúdio do Ministério da Cultura (MinC) e da Funarte à ação da GCM, e a recente decisão judicial que impede o despejo por 180 dias, são sinais de que a sociedade civil está atenta e resiste à lógica de uma gestão urbana que desconsidera o patrimônio cultural e a importancia da relação da cultura com a cidade real.
O caso do Teatro de Contêiner Mungunzá não é um incidente isolado, mas sim, mais um capítulo dessa guerra travada nos Campos Elíseos. A falta de transparência sobre os projetos habitacionais, a truculência desnecessária, a inconsistência dos argumentos da prefeitura, e a desvalorização do papel social e cultural de um espaço consolidado, evidenciam uma política urbana que desconsidera a vida pulsante da cidade em favor de uma “revitalização” que é sinônimo de gentrificação. A decisão judicial, embora temporária, representa um respiro e um reconhecimento do valor intrínseco do teatro para a cidade. A luta por uma gestão urbana mais humana e transparente no centro de São Paulo, no entanto, está longe de terminar.
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