Por Daniel Santini (*)

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), apresentou na última quarta-feira, 15 de março, um Projeto de Lei com alterações que distorcem regras estabelecidas no Plano Diretor Estratégico de São Paulo (Lei nº 16.050/2014), abrindo caminho para que recursos antes reservados para habitação, transporte coletivo e mobilidade ativa passem a ser utilizados com asfaltamento e recapeamento de vias. Sem nenhum cuidado em relação às audiências públicas e consultas abertas do processo formal de revisão do Plano Diretor, o mandatário apresentou o Projeto de Lei nº 115/2023 propondo alterações significativas nos artigos 339 e 340, mudando as regras para aplicação dos recursos do  Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB). 

A proposta descaracteriza um dos princípios de funcionamento do instrumento. O Fundurb foi estabelecido para distribuir recursos provenientes da Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) na cidade de São Paulo. Ou seja, para garantir que os ganhos obtidos com a valorização da terra fossem reinvestidos no desenvolvimento urbano, prevendo a destinação obrigatória de 30% para “para projetos e produção de Habitação de Interesse Social” e de 30% para a “implantação dos sistemas de transporte público coletivo, cicloviário e de circulação de pedestres”. O artigo 340 prevê que, caso os valores não sejam utilizados, devem permanecer reservados por dois anos e, depois desse período, podem ser usados em outras iniciativas de desenvolvimento urbano, com gastos permitidos listados no artigo 339. Com uma canetada, o prefeito Nunes pretende alterar os dois dispositivos.

O PL que apresentou elimina o prazo estipulado pelo artigo 340 e inclui “pavimentação e recapeamento” entre os gastos possíveis determinados pelo artigo 339. Com isso, abre caminho para que a regra da destinação de 30% para habitação e mobilidade seja ignorada e permite destinação massiva de recursos para asfaltar vias. A tentativa de desviar recursos de moradias e transporte coletivo para pavimentação é especialmente grave pelo contexto em que acontece. A cidade nunca arrecadou tanto em Outorga Onerosa. Em 2022, o valor passou de um bilhão pela primeira vez (R$ 1.015.280.572,30), praticamente o dobro do arrecadado dois anos antes (em 2020, foram R$ 542.877.159,42). 

Gráfico: elaboração própria com base em dados oficiais disponibilizados aqui

Rodoviarismo no Fundurb

Não é a primeira vez que a Prefeitura de São Paulo tenta utilizar a arrecadação crescente do Fundurb com obras e iniciativas de caráter rodoviarista, contrariando as premissas estabelecidas no Plano Diretor. Em 2019, um substitutivo ao Projeto de Lei nº 513/2019, que inicialmente tratava apenas da “reconfiguração de alinhamentos e de planos viários de áreas situadas nos Distritos do Limão e do Belém” incluiu no texto final a proposta de se incluir dentro do mínimo de 30% destinado à mobilidade, além de gastos “nos sistemas de transporte público coletivo, cicloviário e de circulação de pedestres”, agora também a “implantação e realização de melhorias nas vias estruturais”.

Tanto a maneira como a questão foi encaminhada, sem participação pública ou diálogo com a sociedade, quanto o resultado da mudança foram questionados pela sociedade civil. Mesmo com as críticas, o substitutivo foi promulgado pelo prefeito Bruno Covas (PSDB) como Lei nº 17.217/2019 em 23 de outubro de 2019. A nova redação vigorou até 2022, quando, em 26 de janeiro, foi julgada inconstitucional (Ação Direta de Inconstitucionalidade 2172188-33.2021.8.26.0000) com base em ação apresentada pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP). Em sua decisão, o desembargador Gastão Toledo de Campos Mello Filho, relator do processo, argumentou que, por tratar-se de uma alteração relacionada ao desenvolvimento urbano, a mesma deveria ter sido objeto de audiências públicas.

Em voto convergente, o desembargador José Carlos Gonçalves Xavier de Aquino criticou a maneira pouco precisa da nova definição. “Observo, ademais, que o acréscimo da expressão ‘destinados à implantação e realização de melhorias nas vias estruturais’ na novel redação do inciso II do artigo 340 da Lei nº 16.050/2014, na destinação do Fundo de Desenvolvimento Urbano, não detalha quais melhorias serão abraçadas, de tal sorte a permitir um amplo leque de ‘implantações’, sem que tenha conhecimento a população de sua necessidade e benefício, diante da ausência do prévio debate popular”.

No período em que ficou vigente, de 2019 a 2021, a mudança potencializou investimentos em mobilidade motorizada individual e comprometeu o princípio de priorização do transporte público e da mobilidade ativa. Para verificar a dimensão e o impacto da alteração, foram levantados todos os gastos apresentados por cada Secretaria Municipal ao Conselho Gestor nas reuniões ordinárias de prestações de contas anuais realizadas de 2017 e 2023. Em 2022, este levantamento foi a base de um  artigo científico intitulado “Sobre asfalto e pontes: o rodoviarismo no Fundurb”. As informações foram atualizadas para o presente texto, com a inclusão de informações relacionadas ao ano passado.

Os dados explicitam o caráter rodoviarista do Fundurb, em especial na execução dos recursos em 2021. Também é possível observar o montante bastante significativo destinado a obras viárias em 2019, relacionado a gastos com Obras de Arte Especiais, como são chamadas as construções como pontes, rodovias, viadutos, túneis e passarelas. Trata-se de um jargão técnico da construção civil. A destinação de recursos do Fundurb para OAEs aconteceu no contexto da criação do Programa de Recuperação de Pontes e Viadutos, em novembro de 2018.

Elaboração própria. Clique aqui para acessar uma planilha com os dados detalhados ano a ano do levantamento realizado com base nas informações rpestadas por cada Secretaria Municipal ao Conselho Gestor de 2017 a 2023.

O gráfico também indica que, após a alteração irregular do Artigo 340 do Plano Diretor Estratégico de São Paulo ter sido julgada inconstitucional, em janeiro de 2022, houve uma reversão inicial na tendência de concentração de investimentos em obras de cunho rodoviarista. Alguns gastos destinados à infraestrutura viária chegaram a ser previstos no orçamento inicial, mas com o Ministério Público do Estado de São Paulo acompanhando de perto a questão, não chegaram a ser executados. Em 2 de março de 2022, a promotora Carolina Mansour Magalhães da Silveira, da 3ª Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, chegou a cobrar formalmente uma resposta sobre a nova destinação de fundos de mobilidade e a observância do Artigo 340 (OFÍCIO PJHURB nº 2328/22).

Agora, mais de um ano após o revés judicial de 2022 e sem muita margem para novas manobras após o ofício do Ministério Público, o Poder Municipal tenta mais uma vez contornar os limites determinados pelo Plano Diretor para a aplicação dos recursos do Fundurb. Dessa vez, com um PL que surge na reta final da revisão do Plano Diretor da cidade, sem muito espaço para debate e participação popular. É mais uma entre reiteradas tentativas de impor a lógica rodoviarista no Fundurb, contrariando premissas claras da lei original, que prevê a priorização de investimentos em Mobilidade Ativa e no Transporte Público. Um atropelo danado.

Uma análise detalhada sobre o tema, com referências e mais informações relacionadas, está disponível no artigo científico “Sobre asfalto e pontes: o rodoviarismo no Fundurb”.

 

(*) Daniel Santini é mestrando em Planejamento Urbano e Regional na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) | danielsantini@usp.br | https://orcid.org/0000-0002-8635-6811

(2) A Outorga Onerosa é a cobrança feita ao proprietário de um terreno para que ele possa construir acima do permitido pelo coeficiente básico determinado para a cidade, considerando, claro, o limite do coeficiente máximo de cada zona. É uma maneira de garantir que parte do valor obtido pela valorização de terrenos decorrente do desenvolvimento da infraestrutura urbana, seja revertido para infraestrutura urbana, principalmente para moradia e mobilidade.

(3) Artigo apresentado em 2022 na conclusão do curso sobre Regulação urbanística e configuração sociopolítica em cidade brasileiras e latino-americanas, por Laisa Stroher, Nabil Bonduki e Paula Freire Santoro no curso de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.