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Arte: Luíza Gancho

Por Luciana Itikawa*

Este artigo é um breve resumo da primeira etapa da pesquisa de pós-doutorado em desenvolvimento no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, lançada em 2015 no livroMulheres na periferia do urbanismo: informalidade subordinada, autonomia desarticulada e resistência em São Paulo, Mumbai e Durban.” A pesquisa obteve suporte da CLACSO, através do edital de cooperação tricontinental sul-sul 2014-2015.

Elza Soares cantava: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Poderíamos acrescentar: a carne mais barata do mercado também é a carne periférica, feminina e sem-terra.

Um dos objetivos da pesquisa em curso é entender o que aproxima processos de remoção forçada e resistência de mulheres em São Paulo, Mumbai (Índia) e Durban (África do Sul). Assim, são apresentados exemplos emblemáticos de expulsão de trabalhadoras(es) informais de espaços públicos e privados urbanos em cada uma dessas metrópoles, bem como de processos de resistência protagonizados por mulheres, unindo questões de gênero, urbanas e trabalho precário informal.

Em “A Metrópole na Periferia do Capitalismo” (1995), Ermínia Maricato apontou as estruturas domésticas que sustentam a manutenção da exclusão territorial e as características da periferização. Vinte anos depois, em “Guerra dos Lugares” (2015), Raquel Rolnik mostra as engrenagens da exclusão, locais e mundiais, cada vez mais sofisticadas na periferia global.

Aqui no Brasil, entre as várias reflexões sobre a periferia do capitalismo, antes da questão espacial desvelada por Maricato, já havia uma larga tradição em pensar o papel do barateamento do trabalho e sua articulação com o regime fundiário. Os formatos se modificaram, mas não na estratégia conjugada e excludente: trabalho escravo e senzala, abolição da escravatura e Lei de Terras, trabalho de imigrantes e regime de colonato, trabalho registrado operário e favela autoconstruída, trabalho precário terceirizado/informal e ocupações.

Hoje, apesar da influência de fluxos, fusões e da volatilidade de capitais nacionais e internacionais sobre processos domésticos de segregação espacial, curiosamente, ao nos debruçarmos sobre os contextos das metrópoles de São Paulo, Mumbai e Durban, percebemos que o binômio terra-trabalho continua sendo uma das senhas para a remoção forçada. Apesar dos mecanismos semelhantes de segregação socioespacial, as diferenças estariam nas camadas a mais de exclusão por casta, raça e gênero.

As tipologias das habitações das(os) trabalhadoras(es) e a respectiva titularidade sobre elas dizem muito sobre a forma como os países se relacionam com o mundo do trabalho. Se nos períodos coloniais, nos três países, a escravidão significava a retirada do elemento trabalho na reprodução do capital, através da não remuneração, aprisionamento e mercantilização da figura do(a) trabalhador(a), hoje há artifícios bem mais sutis e complexos para o rebaixamento dos direitos trabalhistas no mercado de trabalho, tais como: terceirização, trabalho forçado, ‘empreendedorismo’ no domicílio etc. Não foi à toa que os movimentos de moradia protestaram contra a Lei da Terceirização em 2015, percebendo ali um golpe: a precarização do trabalho poderia levar também à precarização do direito à cidade.

Ocupar os espaços – públicos e privados –, como resistência à máquina de remover direitos, ainda é estratégia dos movimentos urbanos e rurais de ontem e de hoje. Entretanto, algumas dessas agendas vêm se destacando, sobretudo, pelo protagonismo das mulheres, pela autoria cada vez mais jovem das reivindicações, bem como pela astúcia em desvelar novos interesses que estão por detrás dos velhos processos. Continua vivo o desafio de articular a transversalidade da exclusão.

Desmaterializar os braços para tomar a terra: mulher, trabalhadora precária informal

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Trabalhadoras em Moçambique, África. Foto: Paula Santoro.

As engrenagens da estrutura produtiva e do mercado de trabalho na periferia do capitalismo são formatadas para que o acesso à mundialização capitalista seja seletivo e subordinado. Essa segregação permite que os países centrais detenham parte dos conhecimentos técnicos e científicos, sequestrados em patentes e submetidos a um regime de obsolescência acelerada. Esta divisão pressiona os sistemas produtivos periféricos, intensificando a competitividade, enfraquecendo o trabalho organizado e limitando a ação pública. Isso restringe os efeitos multiplicadores de investimento e enfraquece o impacto potencial das políticas sociais e trabalhistas.

Centro e periferia, local ou global, portanto, fazem parte de uma mesma totalidade que se manifesta com dinâmicas estruturais orgânicas: a liberalização e a diversificação das economias industriais periféricas não só expandiram as atividades informais como as tornaram mais diversas. Entretanto, mesmo com o aumento da participação do setor industrial nos três países estudados, não há transformação da estrutura ocupacional segmentada e segregada. Neste sentido, a informalidade não seria uma falha a ser consertada. Também não seria somente subproduto da globalização das cadeias de valor, da divisão internacional do trabalho e das sucessivas crises internacionais do capitalismo. Os históricos dados da informalidade nos três países e suas estruturas fundiárias excludentes estão detalhados na íntegra no livro.

Favelas, townships (África do Sul) e bustis (Índia) são sobras de terras não mercantilizáveis e, quando alçadas aos interesses do mercado, tornam-se territórios a serem tomados para futura produção ou especulação imobiliária. Os braços de trabalhadoras(es) precárias(os) informais, como excedente da força de trabalho, atuam exercendo forte pressão no rebaixamento dos salários, na rotatividade do emprego formal, bem como na retirada de direitos trabalhistas. Não é nova a compreensão de que a reserva de braços e de terras para futura apropriação é funcional à reprodução do capital.

Entretanto, na periferia do capitalismo, amplia-se cada vez mais o abismo entre trabalhadores(as) com direitos sociais assegurados e os(as) demais, com direitos rebaixados ou inexistentes. O(A) trabalhador(a) por conta-própria, por exemplo, arca com o ônus dos seus próprios direitos sociais. No caso específico das mulheres, o trabalho reprodutivo (cuidado da casa, da família etc.) que realizam não é contabilizado como trabalho. Desmaterializar é pior que invisibilizar.

A falta de um “lugar” na cidade legal e no emprego formal, no entanto, não faz das mulheres produtoras passivas do espaço urbano. Nesta primeira etapa da pesquisa, os exemplos colhidos nas três metrópoles sugerem que é central a consciência das trabalhadoras informais na luta por territórios bem localizados, com infraestrutura que lhes dê autonomia, e não dependência, isolamento ou subordinação ao trabalho produtivo e reprodutivo. Estar na periferia, portanto, não significa apenas estar espacialmente distante das infraestruturas e, consequentemente, do direito à cidade. As várias periferias, para além da questão espacial, estão relacionadas à localização ambivalente entre a conquista textual de direitos e a manutenção na prática da exclusão, da precariedade e dependência no acesso aos mesmos. Esta consciência indica que não há descolamento entre as dinâmicas urbanas e o cuidado com a família e a casa, conforme demonstram as estatísticas de gênero apresentadas no livro. Periferia do urbanismo, portanto, não significa ausência de planejamento urbano, mas a apropriação, definição e seleção das prioridades da agenda urbana por grupos sociais, homens ou instituições.

A segunda etapa da pesquisa terá como finalidade investigar as especificidades e precariedades territoriais do trabalho informal feminino na região metropolitana de São Paulo, a partir da espacialização dos dados dos Censos 2000-2010. Entre as hipóteses que continuarão a ser trabalhadas estão: trabalhadoras informais têm menos titularidade da casa e do terreno; têm menos acesso às infraestruturas urbanas; moram e se mudam de periferia para periferia; perdem mais tempo nos deslocamentos diários; ocupam posições subordinadas no trabalho produtivo e nos movimentos sociais organizados. 

São Paulo: planalto das oportunidades seletivas e a insubordinação das periferias

Apesar de o Brasil apresentar números de informalidade bem inferiores em comparação com Índia e África do Sul (42% eram trabalhadores informais, de acordo com a PNAD-IBGE, 2013), bem como de ter empreendido um enorme esforço para a centralidade do emprego nos últimos anos, vemos o limite e a fragilidade para a sustentabilidade dessas políticas e a permanência de suas contradições.

O exemplo de São Paulo é de remoção forçada dos espaços públicos dos(as) trabalhadores(as) informais de rua, os(as) ambulantes, entre 2009 e 2012. Esse processo iniciou com a remoção de trabalhadores(as) nas periferias da cidade e culminou na cassação de licenças de trabalhadores(as) no Centro, totalizando a extinção de mais de quatro séculos de atividades. Isso aconteceu em um contexto de endurecimento da violência da Prefeitura de São Paulo contra moradores(as) de rua, catadores(as) e ambulantes, dois anos antes da Copa de Mundo. Essa exclusão em massa levou à constituição de uma rede, em escala municipal, chamada Fórum dos Ambulantes de São Paulo. Foi a primeira vez na cidade que houve a predominância de ações articuladas em rede em detrimento daquelas fragmentadas e tuteladas por relações clientelistas.

Na derradeira proibição total, os(as) trabalhadores(as), articulados(as) à Defensoria Pública do Estado e ao Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, resolveram interpor uma Ação Civil Pública, com uma argumentação inovadora: o direito à cidade. Esta ação, apesar de ainda não julgada definitivamente, possibilitou que parte dos(as) trabalhadores(as) retornasse ao trabalho e barganhasse um espaço para construção de políticas públicas. Se antes havia, entre 2000 e 2010, a presença de apenas duas lideranças femininas entre esses trabalhadores, no Fórum dos Ambulantes emergiram mulheres que se consolidaram na luta na maior parte das regiões. Entre outras ações, essas mulheres têm construído cartilhas e realizado protestos para pautar questões de gênero relacionadas ao trabalho informal, à violência doméstica e nos espaços públicos contra a mulher, à maternidade etc. 

Mumbai: tsunami da segregação e as ilhas de resistência

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Associação de costureiras da favela de Dharavi, em Mumbai, na Índia. Foto: Luciana Itikawa.

Mumbai tem números superlativos quando se trata de produção de riqueza, vida urbana diversificada e cosmopolita. Entretanto, de acordo com o Censo de 2011, 78% de sua população de vivem em moradias precárias (favelas, cortiços etc.). De acordo com Mike Davis (“Planeta Favela“), em Mumbai, “enquanto os ricos têm 90% da terra e vivem no conforto em muitas áreas livres, os pobres moram espremidos em 10% da terra. 93% estão no trabalho informal”.

Atualmente, a maior favela da Índia e a segunda maior do mundo, Dharavi, é uma mina de ouro localizada na costa Leste de Mumbai, estrategicamente ilhada ao redor de um entorno bastante cobiçado pelo mercado imobiliário. Nos últimos anos, a Prefeitura da cidade definiu uma série de intervenções na favela, uma vez que há uma intensa pressão dos incorporadores de empreendimentos vizinhos para instalação de um distrito de negócios, bem como de condomínios residenciais da classe média e shoppings. Não há previsão de incorporação plena das atividades econômicas desenvolvidas em cada um dos domicílios na favela, reais fontes de geração de renda de seus habitantes – oficinas de trabalho domiciliar, ateliers, armazéns de reciclados, lojas, prestação de serviços etc.

Dharavi abriga em torno de 1 milhão de pessoas e é considerada a maior concentração de pequenas unidades econômicas informais do mundo. Nas várias cadeias de trabalho domiciliar, as meninas e crianças estão envolvidas no trabalho. Há uma série de iniciativas de organização das próprias trabalhadoras informais, que contam ou não com apoio de organizações não governamentais vinculadas a universidades, centros de pesquisa, ordens religiosas e agências multilaterais.

Um processo de organização impulsionado pelas próprias trabalhadoras domiciliares é o LEARN Mahila Kamgar Sangathana (LMKS), em Dharavi. O LMKS foi fundado por Atmadevi Jaiswar, uma trabalhadora domiciliar que articulou uma greve de mulheres para negociar melhores pagamentos por peças de roupa produzidas. Atmadevi decidiu reunir o coletivo porque os intermediários negociavam valores diferentes para cada trabalhadora. Depois de conseguirem barganhar no coletivo, as mulheres conquistaram um valor até 5 vezes maior que o que recebiam. Hoje, elas estão presentes em diferentes canais de negociação com as gestões municipal e nacional para acessar direitos à educação, saúde e seguridade social. 

Durban: porto seguro da divisão internacional do trabalho e a contra-corrente

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Trabalhadoras ambulantes no terminal intermodal em Durban, na África do Sul. Foto: Luciana Itikawa.

Durban não foge à regra das cidades sul-africanas: a segmentação e segregação no mercado de trabalho e na terra é ainda muito marcada pela combinação entre concentração da riqueza e da propriedade: os brancos ainda têm os empregos com as melhores remunerações e relação trabalho formal-moradia-infraestrutura urbana favorável. 67% dos trabalhadores na África do Sul estavam na informalidade em 2009.

A segregação territorial é originada na política do apartheid, cuja legislação definia a exclusão da população negra do exercício de certas profissões no mercado de trabalho e do acesso à propriedade da terra. Assim, as townships e homelands na periferia das cidades sul-africanas são habitadas por negras(os) que estão, em sua maioria, em trabalhos precários, formais e informais. A industrialização do país se deu concomitantemente à despossessão das terras rurais para formação de uma força de trabalho urbana e industrial que nunca chegou integralmente a se constituir. Entre 30% e 50% dos domicílios em Durban e Johanesburgo estão engajados em alguma forma de ocupação informal.

Um processo de resistência significativo na metrópole de Durban foi emblemático do ponto de vista da articulação em rede para negociação coletiva e protagonismo feminino. Isso aconteceu durante os preparativos para a Copa do Mundo de 2010, a partir da articulação do sindicato SEWU (Sindicato de Mulheres Trabalhadoras por Conta-Própria), que resistiu à remoção de trabalhadoras em um local estratégico para a venda ambulante: a Warwick Junction, no centro de Durban. Entre as infraestruturas previstas para a Copa de 2010 estava a construção de um shopping no terminal intermodal localizado neste local. É importante lembrar que, na cultura africana, cujo legado também chegou até as cidades brasileiras (negras de ganho), existe uma divisão sexual do trabalho no comércio de rua, priorizando as mulheres.

Assim, as trabalhadoras ambulantes da SEWU se aliaram à ONG Asiye Tafuleni, a movimentos sociais e a acadêmicos, compondo um movimento de resistência, com protestos e ação judicial. Esta frente teve uma primeira conquista com a vitória em primeira instância da ação contra a expulsão das trabalhadoras em Warwick Junction. Entretanto, apesar de terem conseguido que uma parte permanecesse no local, a construção do shopping foi concluída no ano da Copa do Mundo, em 2010, sem a inclusão de todas das mulheres.

Mulheres trabalhadoras na periferia do urbanismo: resistência

Nas três metrópoles estudadas, encontramos movimentos que desenvolveram processos de resistência às frentes de remoção urbana, de retirada de direitos, inibição da voz e deslegitimação da representatividade. São movimentos resultantes de diferentes iniciativas contra-hegemônicas, que desafiaram as engrenagens e sobreposições de exclusão e subordinação. Alguns deles são formados exclusivamente por mulheres e têm diferentes abrangências territoriais, tempo de existência e alcances nas conquistas. Algumas das experiências apresentadas desafiaram formas de transgressão da norma patriarcal e subordinadora nas relações de gênero nestes espaços. São projetos coletivos que parecem escapar aos limites da dominação, tutela e exploração, na direção da afirmação de uma identidade livre e autônoma.

Viva as mulheres!

*Luciana Itikawa, arquiteta e urbanista, é pós-doutoranda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.