Por Raquel Rolnik, Aluízio Marino, Danielle Klintowitz, Gisele Brito, Pedro Resende, com colaboração de Vitor Nisida e Lara Cavalcante*

Os mapas são instrumentos utilizados há séculos no combate a epidemias e problemas de saúde pública. No contexto atual da pandemia do novo coronavírus, verificamos uma efervescente produção cartográfica, tanto mapas institucionais – produzidos pelo Estado – como mapas ativistas – por meio da parceria de pesquisadores e movimentos sociais.

Entretanto os mapas são representações e mostram apenas uma parte da realidade, todo mapa é resultado de uma escolha que ilumina alguns aspectos e ignora outros. Ou seja, mais do que um repositório de dados, são instrumentos políticos. A escolha da escala (região, distrito, bairro, rua) é um dos principais elementos que definem aquilo que ele quer comunicar, suas narrativas.

Em São Paulo os mapas que analisam o avanço do coronavírus são reproduzidos ou elaborados a partir dos boletins epidemiológicos da Secretaria Municipal de Saúde. Esses mapas mostram a relação de casos e óbitos por COVID-19 pelo distrito de residência do paciente. Distritos são áreas muito grandes, agregam diferentes bairros, quebradas e vilas. Mesmo com o número de óbitos elevado é necessário relativizar esse dado com dimensão e a população residente do distrito. Infelizmente, sendo o epicentro da epidemia da COVID-19, São Paulo ainda não possui informações territorializadas que detalham o avanço do novo coronavírus e os impactos nos diferentes lugares da cidade.

Cabe destacar que essa constatação não é novidade. Os mapas institucionais, de maneira geral, apresentam um visão global da cidade, ignorando as informações e especificidades locais.

(Fonte: G1 e Prefeitura de São Paulo)

A narrativa do mapa acima relaciona a expansão do vírus à presença de favelas e conjuntos habitacionais, entretanto não é possível afirmar isso a partir dos dados por distritos. O exemplo da Brasilândia – distrito com maior número de mortes confirmadas e suspeitas por COVID-19 – é ilustrativo: ali viviam na última coleta do Censo em 2010 (IBGE) mais de 280 mil pessoas. – Números de uma cidade de médio porte , sendo que nem todos residem em favelas. O caso de Paraisópolis também se contrapõe à ideia de que distritos com mais favelas apresentam um indicador maior de letalidade ao COVID19: onde está localizada uma das maiores favelas de São Paulo, os números de óbitos está entre as menores faixas entre os distritos. Há também outros distritos periféricos como São Rafael, no extremo Leste de São Paulo que apesar de conter grandes extensões de favelas apresenta número de óbitos menores do que os distritos do centro expandido. Portanto, um olhar mais atento a este mapa nos mostra que não é necessariamente a presença de favelas o indicador central que leva à maior letalidade por COVID19.

Mas então o que territorialmente pode explicar o maior número de mortes em um distrito? Não podemos responder esta pergunta neste momento, simplesmente porque não temos dados disponíveis para olhar com mais profundidade o território da cidade!

Faremos aqui uma discussão desses mapas e informações que estão disponíveis a partir de duas perspectivas, a primeira com relação a qualidade dos dados, apontando soluções técnicas para que possam ser aperfeiçoados; a segunda explora as intencionalidades políticas dessas cartografias institucionais.

Para enfrentar o coronavírus, precisamos saber o CEP

Uma análise mais profunda exige os dados por CEP, ou seja pelo endereços das pessoas infectadas, de forma com que seja possível analisar a localização dos focos da doença sem expor informações particulares destas pessoas.

A análise dos dados em menor escala deve considerar ainda a relação entre os óbitos e a população de cada local. Analisando os óbitos por COVID-19 (confirmados e suspeitos) por distrito entre 11 de março e 24 de abril, o Pari, por exemplo, desponta com 52 óbitos para cada cem mil habitantes. De uma forma geral os distritos da Zona Leste 1 – Água Rasa, Belém, Artur Alvim – também aparecem nessa situação, com elevada taxa de mortalidade por habitante.

 No momento atual da pandemia é fundamental para subsidiar as estratégias de combate da proliferação do contágio e das mortes o monitoramento detalhado da evolução de casos e óbitos pelo território. Este monitoramento permitirá identificar possíveis fatores sociais, territoriais ou de ineficiência de políticas públicas para a maior letalidade em um território específico e a partir desta identificação a construção das políticas emergenciais adequadas a cada lugar.

Nos territórios já se multiplicam ações autogestionadas que precisam ser potencializadas, além de recursos financeiros, humanos e logísticos é essencial que o poder público forneça informações que identifiquem precisamente as dinâmicas de contágio em cada lugar da cidade.

Existem experiências que mostram caminhos. Desde início de abril, a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Pernambuco disponibiliza informações detalhadas em plataforma online interativa (abaixo), permitindo ao usuário visualizar o avanço do coronavírus na escala da rua. Os dados são atualizados diariamente e protegem a localização exata das pessoas infectadas, cada caso é representado por um perímetro de 50 metros. como manchas que indicam os locais mais expostos ao vírus. Desse modo, se percebe exatamente em que local, em que condições, se dá uma possível concentração de casos. Assim, é possível traçar uma estratégia territorial mais focada e precisa no enfrentamento da pandemia.

De qualquer maneira, os dados existentes evidenciam nesse momento uma diferença muito grande de acesso a leitos hospitalares em São Paulo — algo já conhecido na cidade. Por isso, na zona leste, movimentos, coletivos e organizações têm se mobilizado para que se monte um novo hospital de campanha para atendimento de seus moradores. Nos parece justo, visto que a região é de fato a mais populosa do município e necessita de uma estrutura de saúde um pouco mais próxima aos locais onde o surto é crítico.

Mapas não são neutros…

Os dados disponíveis até o momento não permitem fazer nenhuma afirmação sobre o avanço da COVID-19 nas favelas. A questão que fica é: a que serve essa narrativa? A questão sanitária já foi justificativa para a remoção e eliminação de muitas favelas e cortiços na história do Brasil, por isso deve-se ter muita cautela com a reprodução desse discurso.

A simples afirmação de que o novo coronavírus avança pelas favelas não fornece elementos que auxiliem no combate à pandemia. Pelo contrário, pode reforçar preconceitos de parte da sociedade, que enxergam as favelas como lugar de marginal, de bandido, de sujeira, e que, portanto, precisam ser eliminadas.

O combate à pandemia exige mais do que soluções técnicas orientadas a partir de dados. É fundamental que se estabeleça um compromisso político que envolva toda a sociedade pela proteção da população periférica durante e depois da pandemia.

Todavia necessitamos de uma visualização mais precisa da evolução da doença, em uma escala muito mais aproximada, que nos permita entender o que está acontecendo em cada lugar. Isso precisa ser feito para orientar respostas consistentes a cada contexto, precisaríamos saber a situação de cada pedaço da cidade, inclusive das favelas. Trata-se de uma informação estratégica para desenhar uma política efetiva de combate aos efeitos da pandemia.

*Raquel é coordenadora do LabCidade, professora da FAU-USP;
Aluízio é doutorando em Planejamento e Gestão do Território (UFABC), pesquisador do LabCidade;
Danielle é arquiteta urbanista e coordenadora geral do Instituto Pólis;
Gisele é mestranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade;
Pedro é graduando em arquitetura e urbanismo na FAU-USP e pesquisador do LabCidade;
Vitor é arquiteto urbanista e pesquisador do Instituto Pólis;
Lara é estudante de arquitetura e urbanismo e estagiária do Instituto Pólis”