Por Vitor Inglez, Matheus Martins, Renato Abramowicz Santos, Benedito Barbosa

 

As remoções suspensas pela ADPF nº 828 do Supremo Tribunal Federal (STF) estão sendo retomadas durante o chamado “regime de transição”, – que marca a passagem do fim da proteção dada durante a pandemia pelo STF –, sem soluções ou encaminhamentos que garantam o direito à moradia das famílias ameaçadas na maioria dos casos. É isso que revela a análise, realizada pelo Observatório de Remoções, de todos os processos judiciais de remoção na cidade de São Paulo incluídos neste regime, entre março e dezembro deste ano, e enviados à Comissão Regional de Soluções Fundiárias de São Paulo (o antigo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse – GAORP).

Como havíamos apontado em nossos dois balanços semestrais anteriores (no de julho e no do ano anterior), a decisão do STF, fruto de mobilização de movimentos de moradia, coletivos, entidades e grupos de pesquisa organizados na Campanha Despejo Zero, conseguiu suspender formalmente remoções entre junho de 2021 e 31 de outubro de 2022, em todo território nacional, garantindo a permanência de milhares de famílias ameaçadas, a despeito das brechas presentes na própria decisão (sendo a mais emblemática a inexistência de proteção às ocupações em áreas definidas como de “risco”), além de sua violação pura e simples por parte de agentes públicos e privados em diversos casos, o que fez com que as remoções continuassem a ocorrer.

A partir de novembro de 2022, no entanto, as remoções de fato suspensas pela ADPF começaram a ser retomadas, dentro de um assim chamado “regime de transição”, no qual foi determinado que comissões de soluções fundiárias locais fiquem encarregadas de realizar, previamente à remoção, uma audiência de mediação – com participação do Ministério Público, da Defensoria Pública e de órgãos dos três níveis do poder Executivo vinculados à política agrária e urbana – e uma inspeção judicial, que seria uma visita ao território objeto de disputa para, em tese, aproximar os órgãos do poder público da realidade do conflito fundiário a ser solucionado.

Ou seja, a aposta política/jurídica da transição parecia ser no fortalecimento da mediação, negociação e resolução de conflitos, e nos espaços, instâncias e recursos para isso. Importante repetir e registrar, como viemos fazendo ao longo de todo esse período, que a estipulação formal de um suposto “regime de transição” não impediu que remoções continuassem ocorrendo nas formas que sempre aconteceram – assim como foi o caso durante a pandemia e durante a vigência da ADPF: mesmo com a determinação da suspensão das remoções no período pandêmico, na realidade concreta do mundo elas nunca pararam de acontecer completamente.

O Observatório de Remoções teve acesso, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a todos os processos judiciais de remoção que passaram pelo “regime de transição” com audiências na Comissão Regional de Soluções Fundiárias de São Paulo. Foi a primeira vez que acessamos e pudemos analisar esses dados, e eles confirmam e reforçam pontos e problemas já apontados anteriormente: além de não proteger os casos de despejo (individuais e coletivos), as ocupações em “áreas de risco” e aquelas que se constituíram após o marco temporal de 31/03/2021, a aplicação do “regime de transição”, em São Paulo, tem sido caracterizada pela inércia dos órgãos do poder público em construir efetivamente soluções habitacionais, forçando a negociação de “soluções privadas” entre as famílias ameaçadas e removidas e os agentes da remoção.

Na cidade de São Paulo, foram 39 processos, um ainda sem ata e que, portanto, não pôde ser analisado, totalizando aproximadamente 4.915 famílias ameaçadas. Desses 39, 18 casos (ou seja, quase a metade) não tiveram solução pela Comissão: nenhum órgão do poder executivo municipal, estadual ou federal apontou algum encaminhamento definitivo para o conflito fundiário e nem as partes chegaram a algum tipo de solução privada negociada. Nesses casos, o único encaminhamento dado é a visita à ocupação pela assistência social municipal (SMADS), a fim de orientar as famílias moradoras sobre a disponibilização de vagas em centros de acolhida e inclusão em programas de transferência de renda, e, uma vez realizada a inspeção judicial ou alguma outra pendência procedimental, a remoção vai a cumprimento.

Em 9 casos, deram-se formas “privadas” de solução do conflito fundiário: em 3 houve o pagamento de valores pelos proprietários privados diretamente às famílias para que desocupassem o imóvel; em 5 foi estabelecido um prazo para desocupação voluntária das famílias (isto é, sem operação policial de remoção coercitiva), e em um suspendeu-se o processo para que fosse operacionalizada a aquisição da terra pelas famílias ocupantes.

Em apenas 6 casos, os órgãos públicos incumbidos da política urbana construíram soluções: no prédio da rua 7 de abril foi acordada a desapropriação para atendimento das famílias no próprio imóvel (em ZEIS 3); no caso do Morro Velho, a CDHU (proprietária e agente da remoção) comprometeu-se com a regularização fundiária; em outros dois casos a remoção foi suspensa para construção de uma solução de inclusão das famílias ocupantes em empreendimentos do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) e da CDHU que serão implantados nas áreas ocupadas. Em outros dois casos, a “solução pública” consistiu no insuficiente pagamento do auxílio-aluguel de R$ 400 mensais (a serem reajustados para R$ 600, segundo a Secretaria Municipal de Habitação) por apenas 12 meses, renováveis por mais 12, e sem vinculação a qualquer forma de atendimento habitacional definitivo. Trata-se de casos de prédios ocupados da região central em que a Prefeitura alega risco e tem mobilizado o auxílio-aluguel como forma de (não) solução.

Por fim, em outros 5 casos a solução ficou indefinida, com os processos de remoção sendo suspensos para que se tente junto aos órgãos públicos a construção de propostas, que vão desde a inclusão em projetos do MCMV, o comodato do imóvel aos ocupantes e a verificação da possibilidade de regularização fundiária.


Gráfico 1 – Classificação das soluções dadas aos processos do município de São Paulo que passaram pela Comissão Regional de Soluções Fundiárias de São Paulo. Fonte: TJSP via LAI. Elaboração: Matheus Martins.

 

Do total de cerca de 4.915 famílias ameaçadas, 83 foram efetivamente removidas em 4 processos, sendo dois com solução privada em que as famílias receberam valores do proprietário e desocuparam, e dois em que, sem solução alguma, a remoção foi cumprida pela polícia por determinação judicial. Ao menos 4.099 famílias encontram-se, por sua vez, no que classificamos como situação de remoção iminente, seja porque houve solução privada acertada para desocupação já com data definida, seja porque, sem solução, restam ainda algumas medidas procedimentais pontuais para que a remoção seja efetivada. São 22 casos, 7 já com datas definidas (1 ainda em dezembro, 5 em janeiro e 1 em fevereiro), e as demais sem solução.

Observamos que, em ao menos 4 casos, as audiências realizadas pela comissão que, em tese, deveria buscar soluções para as famílias ameaçadas resultaram em processos de criminalização das ocupações: durante as audiências, a denúncia de prática de crimes ou de condutas, como a cobrança de aluguéis dentro da ocupação, motivaram pedidos de abertura de inquéritos policiais contra as ocupações por parte dos representantes da Polícia Civil e do Ministério Público. Nessas 4 ocupações, todas da região central, não apenas a comissão não conseguiu formular uma solução garantidora do direito à moradia, como serviu apenas como espaço para abertura de procedimentos investigativos, o que nos parece incompatível com sua função conciliatória.

Igualmente, verificamos a mobilização e o uso generalizado da categoria risco como justificativa, categoria que temos apontado como um mecanismo de promoção de remoções. Em ao menos 12 casos, proprietários ou representantes dos órgãos públicos mobilizaram o “risco” para contornar medidas e garantias procedimentais e acelerar a efetivação de remoções. Já com relação à distribuição espacial dos conflitos, a região central é onde estão localizados a maior parte dos processos de remoção, concentrando 19, quase metade dos casos.

Mapa 1 – Territorialização dos conflitos fundiários que tiveram mediação na Comissão Regional de Soluções Fundiárias de São Paulo. Fonte: TJSP via LAI. Elaboração: Matheus Martins.

 

Os dados obtidos, seu mapeamento e análise revelam que o “regime de transição” da ADPF nº 828, na cidade de São Paulo, não foi capaz de construir soluções adequadas à garantia do direito à moradia para as mais de 4 mil famílias ameaçadas. Em apenas um décimo dos casos, por circunstâncias muito específicas (como, por exemplo, estar em área pública consolidada, contar com o interesse do agente privado em algum tipo de solução, ou inserir-se em uma ZEIS 3 com interesse da Prefeitura na desapropriação), houve alguma solução pública adequada.

A esmagadora maioria dos casos oscilou entre soluções públicas insuficientes (como o auxílio-aluguel), soluções privadas problemáticas (como a compra da terra pelos ocupantes) ou precárias (como a concessão de valores ou de um prazo para a “desocupação voluntária”), além da inexistência, pura e simples, de qualquer solução, muitas vezes atreladas a ofertas de políticas de assistência social voltadas para a população em situação de rua (como a concessão de vagas em centros de acolhida).

Sobre este aspecto, é importante dizer que os centros de acolhida na cidade de São Paulo encontram-se notoriamente em condições incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, e que é sintomático que o Poder Público enquadre nesta problemática política de assistência social as famílias em situação de conflito fundiário inseridas no “regime de transição”, em um contexto em que a população em situação de rua cresce exponencialmente tendo como uma de suas causas justamente a crise habitacional e as remoções.

A ADPF nº 976 – outra ação movida no STF em decorrência da crise habitacional, mais especificamente contra a violação generalizada dos direitos humanos da população em situação de rua no Brasil – determinou a criação de “meios de fiscalização de processos de despejo e de reintegração de posse no país, e seu impacto no tamanho da população em situação de rua”. Seria necessário, portanto, que o regime de transição da ADPF nº 828 incorporasse essa medida, que contribuiria para diagnosticar e combater a correlação entre as remoções e o aumento da população em situação de rua verificado nos últimos anos.

Por outro lado – e é importante destacar também –, que os dados analisados demonstram que o “regime de transição”, em sua aplicação na cidade de São Paulo, teve como efeito concreto também atrasar a realização das remoções. Mesmo não sendo capaz de construir soluções, houve um represamento e escalonamento do cumprimento das remoções, que na prática acabaram ficando suspensas, prorrogadas ou adiadas: em pouco mais de um décimo dos casos as remoções foram efetivamente cumpridas neste ano. Isto aponta, no entanto, para a ameaça de remoção de estimadas quatro mil famílias no ano que vem, nos processos aqui analisados, além de todas as remoções que não foram incorporadas pelo chamado regime, seja pelas brechas da decisão do STF ou de seu sistemático desrespeito.