Por Raquel Rolnik, Gabriela Azzolini, Henrique Canan, Deiny Costa

O prefeito Ricardo Nunes acaba de vetar 58 pontos do zoneamento aprovado em dezembro na Câmara Municipal de São Paulo. Os vetos foram fruto de intensa campanha de associações de bairro, técnicos, organizações da sociedade civil e de alertas emitidos pelas equipes técnicas da prefeitura. A manutenção destes vetos pelos vereadores é importante, já que rumores circulam nos bastidores da política de que se trata de jogo ensaiado em que prefeitura veta, Câmara derruba os vetos e vida que segue, com menos ônus políticos para o prefeito em ano eleitoral.

Entretanto, neste momento a pergunta que não calar é: com ou sem estes artigos que foram vetados, a lei de zoneamento é razoável e merece ser sancionada? A resposta é não!!! Poderíamos entrar em um debate sobre dezenas de artigos com impactos negativos para a cidade, mas o que queremos ressaltar aqui é outro aspecto: da forma como foi formulada, discutida, redigida e aprovada, a implementação desta lei é imprevisível e, portanto, deve ser objeto de contestação na íntegra, na medida em que não oferece segurança jurídica mínima para os moradores e investidores.

Não é de hoje que o planejamento urbano em São Paulo se reduz a uma pergunta: quantos metros é possível construir em cada terreno, preferencialmente, sem pagar Outorga Onerosa do Direito de Construir, ou pagando pouco. A questão é abordada através de uma língua – Z … , o planejês imobiliário – falada por poucos, o que torna o processo pouco transparente e democrático, fazendo do principal instrumento de regramento das formas de uso e ocupação da cidade, o zoneamento, uma lista interminável e confusa de regras muito específicas e complexas que impedem os cidadãos de compreenderem o que vai acontecer no seu imóvel ou na área no entorno de sua casa.

A lei de revisão do que conhecemos como Zoneamento (Lei 16.402/2016), aprovada pelos vereadores em dezembro de 2023 e parcialmente vetada pelo Prefeito em janeiro de 2024, piora bem essa tradição, que vem de fato desde sua primeira formulação em 1972. Foi feita às pressas, com muita imprecisão, gerando muita insegurança jurídica e urbanística. Urbanistas e moradores há tempos reclamamos que os zoneamentos eram todos emendados em milhões de leis que os tornavam incompreensíveis, mas, de repente, o processo mais recente de revisão do Plano Diretor e zoneamento aprofundou e acelerou esse processo, transformando cada vez mais a lei numa bricolagem não somente de artigos que modificam artigos do zoneamento, acrescentando detalhes, incisos, alíneas, excepcionalidades; mas de outras leis e decretos. Tornando sua leitura um quebra-cabeça ilegível e, podemos afirmar também, muitas vezes, inaplicável ou aplicável necessariamente de forma discricionária.

Vamos dar um pequeno exemplo do que acabamos de afirmar, tomando um artigo desta lei revista a qual tem 97 artigos que alteram apenas alguns dos 180 artigos da Lei de Zoneamento (LPUOS) de 2016, além de outros tantos de outras leis (inclusive do recém revisto Plano Diretor de 2023) e decretos:

 

Art. 63. O art. 115 da Lei no 16.402, de 2016, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 115. (…)
II – nos complexos de saúde, educação em saúde e pesquisa em saúde reconhecidos pela municipalidade, nos termos da Lei no 16.050, de 2014, alterada pela Lei no 17.975, de 2023, em virtude de sua atividade comprovadamente existente em saúde, educação em saúde ou pesquisa em saúde, anterior a 31 de julho de 2014, classificados nos grupos de atividades de grande porte – nr3-3, nr3-8 ou nr3-9, nos termos da Lei no 16.402, de 2016, não há restrição de lote mínimo e serão aplicados os parâmetros de ocupação estabelecidos para a Zona Eixo de Estruturação da Transformação Urbana – ZEU no Quadro 3 da Lei no 16.402, de 2016, admitindo-se, ainda, a majoração do coeficiente de aproveitamento máximo nos termos previstos no art. 114, mediante a correspondente outorga onerosa de potencial construtivo adicional, nos termos da Lei no 16.050, de 2014, alterada pela Lei no 17.975, de 2023;

 

Tomando o artigo 63, acima, para excepcionalizar as regras de uso e ocupação nos lotes no entorno de complexos de saúde e educação em saúde, faz-se referência a vários artigos, quadros e leis. Você lê, relê e pensa: O que o artigo 115 da lei de zoneamento regrava? Permite aumentar o quanto se pode construir (claro, este é o tema!) num raio de 150 metros no entorno destes complexos.

Esta revisão recém aprovada permite estas alterações também no caso de reformas (e que complexo destes não têm reforma?). Mas quais são os complexos de educação reconhecidos pela municipalidade? Como comprovam sua atividade? Em qual audiência pública o impacto destes complexos foram discutidos? Por que os parâmetros também são válidos para os complexos que serão reformados e não apenas para novas edificações? Se há um lote nas proximidades de um destes complexos, o qual já está localizado em um “Eixo”, isto é, em uma Zona Eixo de Estruturação da Transformação Urbana (ZEU), que corresponde, desde o Plano diretor de 2014, à área onde se pode construir mais na cidade no entorno dos transportes de média e alta capacidade, como o metrô e os corredores de ônibus, então, neste lote, estes potenciais construtivos se somam e se sobrepõem?

Nesse contexto, ainda, em algum momento você ouviu falar que as vilas estão “protegidas” (art. 3 da nova Lei do Zoneamento), não se aplicando nelas os parâmetros de ZEU. Então, se moro em uma vila próxima a um dos complexos de saúde e educação em saúde – caso apresentado até aqui – esta regra também não deveria incidir. Mas as vilas não estão delimitadas em mapa, nem listadas em nenhum lugar desta lei, mas deixadas para análise póstuma da sanção da lei. Além do mais, no artigo 35, o inciso X diz:

 

Art. 35. O art. 64 da Lei no 16.402, de 2016, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 64. (…)
X – no caso de aquisição de todos os lotes da vila por um único proprietário a vila será considerada descaracterizada e seu perímetro será enquadrado ao zoneamento lindeiro à via de acesso à vila, e não será aplicada a restrição a que se refere o inciso II deste artigo.

 

Ou seja, se um incorporador comprar todas as casas de uma vila esta não é mais vila (!), podendo-se aplicar os parâmetros de Eixo/ZEU.

Moral da história: como saber as regras de uso e ocupação do solo que incidem sobre o terreno onde moro ou no bairro que frequento? Olha, nem contratando um especialista! Nestas alturas – por incrível que pareça! – nem mesmo a equipe técnica da Prefeitura vai conseguir licenciar algo com segurança jurídica. Mas parece que tem alguém com um terreno ao lado de tal “complexo”, que vai reformar ou ser reformado, e que está interessado na vantagem: construir mais e ter descontos ou nem ter que pagar pelos direitos de construir. E tudo gira em torno disso…

Outra complicação que claramente aumenta a insegurança urbanística está no fato do mapa e dos arquivos shapefile, com os polígonos das zonas disponibilizados pela Câmara, estarem cheios de imprecisões. Há grandes problemas de representação e legendas confusas; os shapes mostram lugares com mais de um zoneamento, que se sobrepõem. Imaginamos aqui como ficaram os técnicos da prefeitura pressionados pela pressa (por que mesmo temos que aprovar imediatamente este zoneamento? estamos “salvando“ a cidade de que perigo iminente?) e pela inconsistência e imprecisão técnica do texto aprovado tendo que inventar um mapa, que não fica de pé!

Os exemplos abaixo mostram algumas dessas situações. No Mapa 1 a área delimitada de vermelho pertence a duas zonas diferentes, sendo elas: Zona Mista (ZM) e Zona de Ocupação Especial (ZOE). O mapa 2 já tem uma quadra com sobreposição de Zona Especial de Interesse Social 2 (ZEIS-2) e Zona MIsta ambiental (ZMa) e outra quadra com sobreposição de Zona Especial de Interesse Social 3 (ZEIS-3) e Zona Especial de Proteção Ambiental (ZEPAM).

Mapa 1. Sobreposição de zonas – Revisão da LPUOS 2024

Mapa produzido pelo LabCidade com shapefiles da Câmara Municipal de São Paulo do 2o Substitutivo da Lei do Zoneamento de 2023.

Mapa 2. Sobreposição de zonas – Revisão da LPUOS 2024

Mapa produzido pelo LabCidade com shapefiles da Câmara Municipal de São Paulo do 2o Substitutivo da Lei do Zoneamento de 2023.

O Mapa 3, abaixo, ainda, possui quatro quadras que aparentam não pertencer a nenhuma das 37 classificações de zonas de uso, nem do grupo de praças e canteiros, já que estão pintadas de branco no mapa oficial. Esses são apenas alguns exemplos das problemáticas presentes no mapa e na fonte de dados apresentados pela Câmara.

Mapa 3. Zonas sem uso – Revisão da LPUOS 2024

Mapa produzido pelo LabCidade com shapefiles da Câmara Municipal de São Paulo do 2o Substitutivo da Lei do Zoneamento de 2023.

Ainda, é previsto na Nova Lei de Zoneamento, como contamos acima, que as vilas, assim como as áreas com grande declividade, seriam excepcionalizadas nas ZEUs. Porém, além de não estarem definidas no corpo da lei, não estão territorializadas no mapa oficial, devendo ser definidas e mapeadas posteriormente em um estudo de caso a caso (o qual já deveria estar feito ao estar na lei).

Portanto, essas áreas não foram de fato excepcionalizadas, acarretando na burocratização, sobreposição de leis e decretos, graves problemas urbanísticos e a permanência da insegurança das vilas que podem ser demolidas para dar lugar a um grande empreendimento imobiliário (além de toda a insegurança colocada no inciso X do art.35 apresentada acima)!

A lei do zoneamento só faz sentido quando territorializada. Como seguimos com mapas mal delimitados e com tantas imprecisões e faltas, não estando totalmente bem alinhados com a própria escrita da lei? A não territorialização da lei somada à aprovação junto à Câmara dois dias antes do recesso de fim de ano dão sinais de que a pressa e a ausência de informação são intencionais: trata-se de um modus operandi, que, nos detalhes, abre margem para os usuários preferenciais desta língua – aqueles para quem o único valor que importa é como conseguir aqueles metros quadrados a mais, aquelas garagens a mais onde, em princípio, não dá pra fazer garagem, aqueles produtos imobiliários que estão vendendo como pãozinho porque têm investidor interessado em comprar – possam fazer o que querem onde querem.

Trazemos aqui mais exemplos da lei (não vetados!) que vão nessa direção e que não foram debatidos durante o processo de elaboração.

Primeiro, o zoneamento amplia o quanto se pode construir sem pagar, listando mais dezenas deáreas não computáveis” para além dos incentivos concedidos. Precisava de mais estímulo ao mercado imobiliário? São incentivos para projetos de reformas, como os retrofits, que receberam outros incentivos além do não pagamento do potencial construtivo; e uma lista de incisos e parágrafos com vários usos específicos, que variam desde áreas cobertas destinadas a camarins, salas para oficina e depósito de materiais utilizados nos teatros (precisavam deste incentivo?), e outros tantos para complexos de saúde e educação, os usos que chamamos aqui de “super incentivados”, pois já tinham recebido incentivos em outros artigos que resultariam na não aplicação do zoneamento em suas áreas envoltórias.

Segundo, flexibiliza exageradamente a exigência de atendimento de parâmetros de lote máximo e a doação de áreas públicas. Tal flexibilização se dá em artigos que giram em torno da regularização de condomínios que podem virar loteamentos, regularizados com lotes medindo menos que o permitido pelo parcelamento do solo, e de parcelamentos que não tiveram doação de área pública, em uma espécie de REURB (Reurbanização Fundiária – Lei n° 13.465, de 2017) sem pagamento. Parecem envolver empreendimentos com algumas casas, geralmente geminadas e aprovadas como condomínios, transformadas em loteamentos. Ou como forma de regularizar a posse de lotes que, por serem menores que o permitido, estavam aprovados como condomínios.

A excepcionalização de parâmetros é ainda maior para grandes empreendimentos – como igrejas e templos, shopping centers, etc. –, que agora não precisam ter área máxima de lote definidas, mas que no Zoneamento de 2016 era de 20 mil metros quadrados. Assim, quadras inteiras podem ser demolidas para dar lugar a um mega empreendimento, sem limitações (inclusive em ZEIS!).

Terceiro, e mais grave, foi a possibilidade de, nos imóveis em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) – lembrando aqui, seriam as zonas onde prioritariamente se deveria construir habitação de interesse social – onde o poder público deseja instalar serviços da administração pública, – que já não precisavam garantir o percentual de habitação de interesse social (HIS) e nem de habitação de mercado popular (HMP), excepcionalizados no Zoneamento de 2016 –, agora não precisam ter Conselho Gestor e nem Plano de Urbanização aprovado pelo Conselho, envolvendo seus moradores e afetados (art. 16 da nova Lei, o qual foi aprovado).

Ou seja, se a Prefeitura não quiser ter conselhos e urbanizar junto com os moradores atingidos, basta prever um serviço ou equipamento público no lugar. Nos preocupam, especialmente, as Parcerias Público Privadas (PPPs) Habitacionais que combinam a produção de HIS com equipamentos, geralmente sobre ZEIS, cuja população não deverá discutir o projeto para onde moram. Em que plenária ou audiência pública este artigo foi discutido?

Em uma cidade que vive uma emergência habitacional que já vem produzindo unidades habitacionais cada vez menores e mais caras, seja por meio de incentivos para reformas de prédios, seja por meio de lançamentos imobiliários, que já contavam com inúmeros incentivos, como mostramos aqui na região central, a legislação urbanística deveria se preocupar em atender a melhoria das condições de moradia de quem vive de forma precária em ZEIS, e não eliminar sua voz na definição dos usos que ocuparão seu lugar.

Teriam muitos outros temas e alterações que poderíamos listar aqui, mas fato é que a lei que tratou da revisão do zoneamento é complexa, super específica, parece dar conta de interesses individuais e passar ao largo de interesses coletivos. Faz alterações que não foram discutidas e só fala a língua do Z, para poucos letrados, de forma confusa e inconsistente, de forma a poder ser aplicada de forma discricionária, sem segurança jurídica e urbanística. Os poucos vetos da Prefeitura, embora positivos, infelizmente não dão conta de resolver as imprecisões que o processo todo resultou.

Esperamos que pela via política ou jurídica este processo seja integralmente interrompido para que possamos, com a calma e os instrumentos necessários disponíveis, examinar de forma prospectiva que cidade este zoneamento irá produzir em cada bairro e que, principalmente, o debate do planejamento e do zoneamento possa responder a outras perguntas e a outras questões, falando nossa língua, a que todos os moradores da cidade entendem.

 

(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade; Gabriela Azzolini é graduanda na FAUUSP e pesquisadora de iniciação científica no LabCidade; Henrique Canan é graduando na FAUUSP e pesquisador de iniciação científica no LabCidade e Deiny Costa é arquiteta e urbanista, mestranda na FAUUSP e pesquisadora no LabCidade.