Foto: Andre Porto/UOL

Por Sérgio Firpo e Bianca Tavolari*

Estamos vivendo uma crise sem precedentes com impactos de todas as ordens nos mais diferentes âmbitos da vida. Propostas legislativas reconhecem que as regras do jogo não podem ser as mesmas de antes, é preciso propor compensações, mitigações e novos parâmetros pensados especialmente para o período mais agudo da pandemia.

O projeto de lei nº 1.179, apresentado pelo senador Antonio Anastasia (PSD-MG) no final de março, cria novas regras temporárias para as relações de direito privado.

Despejos e aluguéis estão entre os pontos mais controvertidos do projeto. No dia 3 de abril, o Senado aprovou um substitutivo que alterou a proposta inicial para despejos e retirou a parte sobre pagamentos de aluguel residencial.

Despejos e aluguéis são temas sensíveis diante desta crise sanitária. Com a imposição necessária de medidas de distanciamento social, o impacto sobre a geração de renda foi quase imediato para larga parcela da população, gerando uma grande preocupação para as famílias que comprometem parte importante de sua renda com serviços de moradia.

A preocupação se agrava ainda mais diante da possibilidade de despejo. Por outro lado, famílias que vivem da renda do aluguel também terão sua renda impactada pelas dificuldades econômicas generalizadas.

Parece claro que será preciso pactuar novas regras do jogo. No entanto, todo e qualquer projeto de alteração legislativa precisa levar em conta os dados que caracterizam a situação de locatários e locadores no país. É preciso ter um diagnóstico complexo do problema para propor medidas emergenciais que possam, de fato, amparar os mais vulneráveis.

A Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE de 2018 fornece os dados mais precisos e recentes para compor este retrato. Das 69 milhões de famílias brasileiras, 11,7 milhões, ou 17%, tiveram alguma despesa monetária com aluguel. No agregado, as famílias gastaram com aluguel pouco mais de R$6,5 bilhões, em valores de 2018.

Esse montante, distribuído entre as 11,7 milhões de famílias que tiveram desembolso com aluguel, equivale a um gasto médio mensal de R$555, ou 58% de um salário mínimo (SM) da época. Entre essas famílias, isso equivale a 20% de sua renda mensal.

É necessário interpelar estes números, uma vez que a distribuição dos valores é muito heterogênea entre as diferentes faixas de renda, refletindo em larga escala a distribuição desigual de renda do país.

Entre as 11,7 milhões de famílias que tiveram algum desembolso com aluguel, 77% têm rendimento mensal de até 6 SM e 29% têm renda mensal total até 2 SM. Apenas 10% das famílias que pagam aluguel têm renda maior do que 10 SM.

Quando olhamos para o número das famílias que pagam aluguel, as frações de inquilinos são relativamente uniformes nas faixas que abarcam mais de 2 SM até 25 SM. A maior discrepância está nas caudas, ou seja, nas faixas de menos de 2 SM e de mais de 25 SM. Estamos falando de mais de 3,4 milhões de famílias no primeiro caso e de um pouco menos de 190 mil, no segundo.

Embora as famílias tendam a gastar com aluguel conforme sua renda, os gastos são relativamente maiores para os mais pobres. Como fração da renda, estes gastos também são bastante desiguais, tanto entre como dentro dos grupos.

Entre as famílias de até 2 SM, os gastos com aluguel equivalem a 34% da renda. Já para o grupo mais rico, estes gastos não passam de 4% de toda renda mensal da família. Ainda que o gasto em reais seja quase cinco vezes maior, como fração da renda, o gasto com aluguel dos mais ricos é apenas 13% do que gastam os mais pobres.

Para montar este quadro complexo, também é preciso olhar para o outro lado, ou seja, para os proprietários. Das 69 milhões de famílias brasileiras, 3,4 milhões, ou 4,9%, geram renda monetária com aluguel.

No agregado, estas famílias receberam pouco mais de R$6,1 bilhões, em valores de 2018. Distribuído entre as 3,4 milhões de famílias, isto equivale a um rendimento médio mensal de R$1.827, ou 1,9 SM da época, o que equivale a 17% da renda destas famílias. A distribuição destes valores também é altamente desigual.

A proporção de famílias que recebem renda de aluguel varia imensamente com a renda. Vai de 1,2% entre os mais pobres a 23,8% entre os mais ricos. Além disso, a renda do aluguel é altamente concentrada: 12,1% das famílias que têm rendimento do aluguel concentram 43,8% de toda a renda de aluguel recebida pelas famílias no país.

A maior parte das famílias brasileiras não têm nem gastos com aluguel (83%) nem recebem renda de aluguel (95%). As despesas feitas com aluguel representam menos de 0,1% do PIB. Por mais que esses números sejam pequenos, vale lembrar que 11,7 milhões de famílias têm gastos com aluguel e que quase 50% delas têm renda familiar total de até 3 SM. Além disso, para cada duas famílias que auferem renda do aluguel há sete que pagam.

É também importante lembrar que os dados da POF são anteriores à pandemia. As famílias mais pobres sofrem impacto ainda maior na medida em que suas fontes de renda são as mais afetadas —em famílias mais pobres, 79% dos adultos ocupados são trabalhadores informais.

O projeto de lei n.1.179 está agora em discussão na Câmara. É urgente que os congressistas olhem para este quadro complexo para pensar em regras de transição para a locação residencial e para os despejos.

*Sérgio é professor de Economia do Insper. Bianca é pesquisadora do CEBRAP e professora do Insper. Artigo publicado na Folha de S. Paulo no dia 21 de abril de 2020.