Por Luanda Villas Boas Vannuchi *

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Foto: Teatro Oficina/Divulgação

No final de setembro, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) deu decisão contrária à construção de duas torres residenciais no Bixiga, bairro da região central da cidade de São Paulo, um grande passo para a preservação dos vários bens tombados existentes no local, e, principalmente, do próprio bairro.

A decisão se justifica pela adjacência do terreno com o Teatro Oficina, edifício projetado por Lina Bo Bardi e tombado pelo Condephaat. O parecer do relator da decisão usou como argumento central que as torres atentariam contra a “visibilidade e o destaque” do bem tombado, indo contra a preservação da sua memória.

A disputa entre o Teatro e a Sisan Empreendimentos Imobiliários, empresa do grupo Silvio Santos e proprietária do terreno, já ocorre há algumas décadas. Polêmica, a disputa levanta questões que São Paulo tem respondido parcamente, sobre a preservação dos bens comuns, da memória e dos usos da cidade, e sobre o papel dos órgãos de proteção do patrimônio e do planejamento urbano no contexto de urbanização capitalista que parece a tudo transformar em shopping e prédio, homogeneizando todos os territórios.

As primeiras tentativas de incorporação imobiliária pelo grupo tiveram início com a demolição de uma sinagoga e de dezenas de casinhas históricas em quase todo o quarteirão entre as ruas Jaceguai, Japurá, Abolição e Santo Amaro. Sobreviveram apenas o próprio Teatro Oficina e um ou outro prédio. Etapa normalíssima na transformação urbana paulistana, a “limpa” deu origem ao grande terreno para o qual se projetou a construção de um shopping center. Seria apenas mais um caso de empreendimento sem nenhuma articulação com o entorno, alheio ao tecido urbano em que se insere e que encerra dentro de si uns tantos atrativos às custas da vida da rua e da cidade, como tantos outros em São Paulo. Mas o projeto foi fortemente combatido pelo Oficina, que temendo ser sufocado pelo futuro vizinho e compreendendo os riscos que ele traria para as dinâmicas socioculturais do bairro, se mobilizou para impedir que o shopping fosse aprovado, dando início à uma resistência de anos que extravasou o campo institucional e atingiu o simbólico, muitas vezes sendo incorporada às montagens teatrais do Oficina.

No campo institucional, é sobretudo pela via do tombamento que tem se impedindo empreendimentos imobiliários no local. O mais antigo deles foi feito pelo Condephaat, órgão estadual, em 1982, e protege não apenas o próprio teatro, mas toda a área em um raio de 300 metros a partir dele, a tal da área envoltória. Seguiram-se a ele, em 2003, o tombamento pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), e o pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 2010.

Nesse período, o grupo Sisan apresentou distintos projetos. Primeiro buscando dialogar com a vizinhança ao incorporar um “teatro de estádio” ao shopping, e, mais recentemente, aproveitando o retorno das classes médias e o avanço do mercado imobiliário nos distritos centrais para lançar um grande empreendimento residencial composto por três torres. Foi este o projeto rechaçado pelo Condephaat no dia 26 de setembro e que ainda aguarda a decisão final do Conpresp e do IPHAN.

Mas o posicionamento dos órgãos de patrimônio não ocorre sem conflitos. A empresa já recorreu de decisões anteriores e os mecanismos atuais de resguardo não têm garantido a proteção definitiva desejada. Isso ficou evidente na reunião decisiva do Condephaat, quando os conselheiros debateram se cabia ou não ao conselho rejeitar um empreendimento que estaria em conformidade com os recém-aprovados Plano Diretor e Lei de Zoneamento do município. Não é uma questão simples.

No Plano Diretor Estratégico de 2014, o terreno em questão está dentro do Setor Central da Macroárea de Estruturação Metropolitana. Esse setor tem entre seus objetivos o respeito ao patrimônio histórico e cultural e valorização das áreas de patrimônio com a proteção e recuperação de imóveis e locais de referência da cidade, estimulando usos compatíveis com a preservação e sua inserção na área central. Mas nem só de princípios e objetivos vive um plano, são necessários instrumentos para garanti-los.

As Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPECs) e os Territórios de Interesse Cultural e da Paisagem (TICP) são os instrumentos específicos do PDE para preservação de bens culturais. Eles já foram explicados em post anterior e não aprofundaremos aqui. Mas vale observar que tanto o Teatro Oficina está marcado como ZEPEC-BIR (Bens Imóveis Representativos), como ele e o terreno vizinho se inserem dentro do TICP-Paulista/Luz. Se é verdade que os Territórios ainda devem sem regulamentados por lei específica, o Plano Diretor já acena a importância de um tipo de preservação que não se refere unicamente ao patrimônio, mas tem como objetivo evitar a descaracterização de uma área de importância simbólica para a cidade, com lugares significativos para a memória e a cultura, preservando seus usos.

Alinhado com o pensamento que deu origem ao TICP, o que o teatro vem mostrando há algumas décadas – bem antes do termo gentrificação entrar em voga – é que os interesses imobiliários são capazes de destruir bairros, não apenas transformando profundamente sua fisionomia, mas impondo usos mais rentáveis que acabam por aumentar os alugueis e expulsar tanto a população de baixa renda quanto os usos pouco rentáveis, como comércios populares e espaços de cultura.

O Bixiga, como é chamada parte do distrito da Bela Vista, está sujeito a esse tipo de ameaça. Bairro tradicional de São Paulo, manteve desde o início do século passado seu caráter popular, fortemente influenciado pela ocupação italiana, negra e nordestina, berço do samba e do teatro paulistano, confluindo uma diversidade de manifestações culturais, das cantinas às escolas de samba. Preserva até hoje não somente um reconhecido patrimônio arquitetônico, vários deles (mas não todos!) protegidos pelos órgãos competentes nas escalas municipal, estadual ou federal, mas também uma miríade de usos sociais e culturais, que fazem do bairro um ambiente único na cidade.

O próprio tombamento do IPHAN reconhece a necessidade de preservação não apenas da sede do teatro, mas dos usos e da diversidade do bairro. No parecer do órgão, sugere-se que o tombamento do Oficina seja o elemento chave para um processo de reabilitação do bairro que dê conta de preservar suas características e vitalidade. O documento também considera que as práticas culturais devem ser preservadas e consideradas prioritariamente ao desenvolvimento imobiliário, visto que, ao contrário de edificações residenciais, de comércios e serviços que não têm outros requisitos locacionais além da acessibilidade, a vida cultural do Bixiga só pode existir ali e deve ser preservada.

Mas, para complicar um pouco mais, na nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, aprovada no início de 2016, o terreno se tornou Zona de Ocupação Especial (ZOE), porções do território destinadas a abrigar atividades específicas, como aeroportos, centros de convenção e grandes áreas de lazer que, por suas características únicas, necessitam disciplina especial de uso e ocupação do solo. A lei define que a regulação para tal disciplina será definida através de Projeto de Intervenção Urbana (PIU), aprovado mediante decreto. Como os PIUs devem passar por consulta pública, essa seria uma possibilidade de se desenhar um projeto de interesse coletivo para o terreno. Mas como o projeto atual é anterior à Lei, os proprietários contam com direito de protocolo e podem prescindir de segui-la.

O que fazer quando um território em disputa é regulado por leis e garantias contraditórias que se sobrepõe, ora mais restritivas, ora mais liberais? Qual direito deve ser garantido? O direito individual dos proprietários ou o direito coletivo à memória e à cidade? São perguntas polêmicas que têm sido respondidas caso a caso, variando conforme a vontade política, o poder do privado, a mobilização da sociedade e a correlação de forças entre as narrativas das partes envolvidas.

A recusa do projeto atual do empreendimento imobiliário pelo Condephaat, embora ainda possa ser contestada e não seja uma vitória definitiva, dá sinais claros de que, tal como está, o projeto é negativo para a cidade e não pode ser continuado. Não significa que o proprietário não tenha direito de empreender ali. Mesmo porque a desapropriação, ainda que tenha sido debatida na reunião do Condephaat, não está realmente em pauta e nem cabe aos conselheiros discutir a política urbana.

Buscando dar fim a essa celeuma, uma alternativa bastante interessante foi proposta pelo próprio Silvio Santos e vinha sendo negociada com o poder público: a troca do terreno por algum outro de igual valor. Isso abriria a possibilidade de dar uma destinação pública a área no Bixiga. Claro que essa é uma opção que depende inteiramente da boa vontade do grupo proprietário e só será concretizada se for de seu interesse. Mas com o veto dos órgãos de patrimônio em relação a um projeto imobiliário no local, fica claro que se optarem por realizar o empreendimento, os proprietários terão que redesenhá-lo reduzindo muito o impacto que ele tem não apenas sobre o Teatro Oficina e sobre os outros quatro bens tombados que também tem suas áreas envoltórias ali (a Casa da Dona Yayá, a Escola de Primeiras Letras, o Castelinho da Brigadeiro e o Teatro Brasileiro de Comédia), mas sobre o Bixiga e a cidade.

Luanda Villas Boas Vannuchi é geógrafa, mestre em Estudos Urbanos pela Vrije Universiteit Brussel e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela FAU USP. Atualmente é pesquisadora do LabCidade, onde investiga espaços públicos coletivos e comuns urbanos e integra a equipe do projeto Observa SP. Lattes